A imitação do amanhecer, de Bruno Tolentino, é, sem erro, um dos melhores livros de poemas publicados no Brasil nos últimos anos. Pena que seu autor se guarde numa torre de marfim. Sobre qualquer questão que lhe é colocada para — digamos — uma entrevista, afirma que já tratou do assunto nas orelhas de seus livros. Como é difícil entrevistar orelhas de livros e jornalista da área cultural honesto não costuma copiar tais textos, essas palavras se inutilizam. Fique bem claro: ninguém é obrigado a conceder entrevista, mas que isso seja comunicado logo no primeiro contato e ponto final. O que não pode é levar esse processo por mais de vinte dias, recebendo as perguntas por vários e-mails e no prazo limite para entregar as repostas, informar que tudo que se tem a dizer está na orelha de seus livros. Mas já que as orelhas de A imitação do amanhecer não são assinadas por ninguém, equivale dizer que pertencem ao autor.
Então vejamos. O primeiro parágrafo da orelha do novo livro de Tolentino:
Apogeu de um poeta maior, A imitação do amanhecer conta-nos de como o “coração peregrino” vai “da Alexandria da emoção/ à Meca do real”, com a dramatização de um encontro amoroso vivido na famosa urbe mediterrânea em 1922, segundo o testemunho de E.M. Forster. Dispostos em seqüências temáticas encadeadas, 538 sonetos-estrofe mapeiam o percurso do drama, ao mesmo tempo em que transbordam no todo maior que os engloba.
Particularmente, admiro os poetas atuais que escrevem sonetos e poemas metrificados, até mesmo com rima, como um exercício literário. No caso do soneto, de 10 ou de 12 sílabas, ele constitui uma espécie de desafio a que todo o poeta que se preze tem de se impor, como trabalho de linguagem. Alguns asseguram que essa forma de poesia pertence ao passado. E daí? Tolices à parte, voltemos ao livro de Tolentino. Dele não se saberá por que publicou um livro com 538 sonetos ou por que cultiva essa forma de poema. As manifestações do autor estão nas orelhas de seus livros. Mas para este livro, ele dispensou o trabalho promocional da editora Globo. Indicou uma pessoa de sua relação para fazê-lo. Ao primeiro contato, essa pessoa me perguntou se Rascunho era um jornal ou uma revista. Antevi o que teria pela frente. O texto distribuído pela editora explica: “Com A imitação do amanhecer, Bruno Tolentino revisita a cultura do Ocidente e se afirma como um dos importantes sonetistas na poesia contemporânea do Brasil”.
Isso lhe deve ser importante, como poeta que é. Mas penso que o autor escreve ainda sonetos perfeitamente metrificados e com rimas não pelo domínio que pode ter do poema e da palavra, mas porque é, antes de tudo, um poeta antigo. Um grande poeta antigo. Seria, por exemplo, um grande amigo de Álvares de Azevedo, se vivesse em São Paulo em 1850, a recitar versos de Byron em alucinações da época. Mas não seria amigo do poeta romântico brasileiro por muito tempo. Já no início do século 20, gostaria de sofrer como Augusto dos Anjos. No entanto, não conseguiria, por lhe faltar certa verdade condizente com os poetas verdadeiros, com o perdão da redundância. Mas talvez exemplos assim com dois poetas brasileiro não sirvam. Talvez melhor seria com poetas ingleses. Ou franceses. Alemães. Talvez russos. Espanhóis. Quem sabe de Portugal? Talvez não sirva exemplo algum. As estrelas são sempre únicas, a qualquer tempo, em qualquer lugar. Há sempre um instante na vida das pessoas em que a admiração se transforma numa profunda e angustiante decepção. Como se a imagem se diluísse no espelho. Sumisse e somente restasse o desapontamento.
Há alguns anos, Tolentino ganhou notoriedade ao fazer um ataque agressivo e justo à mediocridade brasileira, que coloca Caetano Veloso nos livros escolares como exemplo de grande poeta, ao lado de Camões, Fernando Pessoa, Bandeira, Drummond e outros. A mediocridade continua viva, talvez mais forte. Este é um país que chama Cazuza de “poeta de uma geração”. Um deboche. De qualquer maneira, não dá para combater a mediocridade quando se tem atitudes medíocres. O novo livro de Tolentino tem momentos de brilho, com versos assim: “Para encontrar em cada coisa a pura essência/ há que dispor primeiro de tudo o que a sustente:/ do fruto há que excluir a morte da semente,/ a parte da agonia na febre da existência”. Ou ainda: “A vida toda é um relicário itinerante/ uma precária coleção de alumbramentos”. E também: “Se eu quisesse fazer que soluçassem as flautas,/ bastaria pedir ao Orfeu sempre-vivo/ que imitasse na lira o seu rosto festivo/ e ininterrupto como o riso das cascatas”.
Claro que estes são alguns dos 7.532 versos do livro. No entanto, podem dar a idéia da poesia que contém o livro, o que se aplica também a tolices completamente fora do contexto, como esta: “Dois elefantes incomodam muita gente,/ mas dois amantes incomodam muito mais;/ e incomodam muito mais especialmente/ se cada um no mesmo par for um rapaz”. É engraçadinho. Mas para apagar esse clima de versos chulos, há outros momentos preciosos: “A mim que importa o belo acorde dessas rosas,/ perfeitas por inertes, mentiras da escultura…?”. Ou: “Vais-te tornando pedra, meu coração, e sinto/ que é bem essa a atitude de quem ama demais…”. O primeiro verso do soneto 62, da parte III, é uma sentença: “A arte não tem escrúpulos, tem apenas medida”.
Entre os comuns
Mas voltemos à orelha de A imitação do amanhecer. O segundo parágrafo da orelha diz coisas assim: “A verdadeira matéria do poema-livro é a relação entre o instante e o tempo rumo ao caos final da morte, ou ‘a desaparição, o impasse’. Nessa ótica, cada unidade-soneto seria menos a descrição que a representação, o ícone de cada instante, enquanto em seu todo o livro tomaria a si a representação do tempo pleno”. A seguir o autor observa que
as três epígrafes de Borges não são casuais, porque o tema central da obra não é o amor nem o tempo, mas a onipresença da morte, aquele “nada que é tudo” do mito segundo Pessoa. Daí que a reflexão se vá fixar na tensão presença/ausência, o maior dos temas. Que Tolentino enfrenta na arquitetura sinfônica de um livro grandioso, tecido de grandes e belos poemas, e polissêmico até na mimese da construção musical em “movimentos”, como um concerto grosso.
A orelha continua: “Polissemia perceptível sobretudo na transição do andante spianato, dito As epifanias, para o largo com variazioni , subtitulado As antífonas, quando a abordagem metafórico-narrativa torna-se metafórico-conceitual e a fabulação órfica cede a um questionamento da natureza da História e das antinomias Ocidente/Oriente”. O texto distribuído pela editora Globo também informa que
Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Filho de família tradicional e abastada, deixou o Brasil em 1964, indo viver por 30 anos na Europa. Um ano antes, publicaria seu primeiro livro de poemas, Anulação e outros reparos, que recebeu o Prêmio Revelação de Autor do júri composto entre outros, por Manuel Bandeira e Ledo Ivo.
E ainda que o autor
ensinou literatura em Oxford por 11 anos e também foi professor em Essex. Publicou livros de poesia em inglês e francês. Autor de extensa obra, em 1994, lançou no Brasil As horas de Katharina, que recebeu o prêmio Jabuti, e em 1995 mais dois trabalhos, Os deuses de hoje e Os sapos de ontem (polêmico ensaio contra o Concretismo). No ano seguinte, sairia A balada do cárcere, que recebeu o prêmio Cruz e Souza. Em 1998, foi reeditado Anulação e outros reparos, que o poeta considerou a edição completa de seu livro de estréia.
As informações dizem ainda que “seu último trabalho, O mundo como idéia, reúne 40 anos de sua produção poética e foi publicado pela editora Globo em 2002, ganhando novamente o prêmio Jabuti no ano seguinte”. O texto e a orelha observam também que Tolentino recebeu elogios de importantes escritores europeus, como W.H. Auden, Yves Bonnefoy, Giuseppe Ungaretti, Saint-John Perse e Jean Starobinski. Assinalam, ainda, que esse elogio também foi feito no Brasil, onde “sua obra foi reconhecida por Antônio Houaiss e João Cabral de Melo Neto, e por críticos como José Guilherme Merquior”.
A bem da verdade, trata-se de um poeta brasileiro que conhece poesia. Mas como a estrela que se faz parecer, essas informações deveriam ser esquecidas num plano inferior. Pertencem ao mundo dos comuns. Até mesmo o livro não deveria ser lançado por uma grande editora. Mas já que está lançado, que morra agora no seu depósito, que não haja distribuição. Isso pertence apenas ao mundo dos simples mortais. Os que vivem nas galáxias não devem ter preocupações tão menores. Mas vamos voltar à orelha. Ela observa que
o livro assume então o caráter de um comovido hino à falta, a ausência traduzida em canto pelo predomínio da metáfora sobre a evocação narrativa. E não qualquer metáfora, mas a elusiva metáfora que é Alexandria, “a órfã de Alexandre, a flor da ambigüidade”, terminal de todos os desencontros, lugar por excelência do não-lugar, por contê-los a todos e a lugar algum, Ocidente e Oriente, presente e passado, mito e memória.
O texto distribuído pela editora esclarece cada epígrafe de Borges nas três partes do livro, o que não se reproduz aqui para que o instante não se torne enfadonho. A esta altura, peço licença para contar uma história sobre Borges, de cuja obra Tolentino extraiu trechos para utilizar como epígrafes, situando a própria atmosfera dos poemas de seu novo livro. Eu fui o único poeta brasileiro que entrevistou Borges no seu apartamento, no sexto andar de um edifício na calle Maipú, em Buenos Aires, em duas tardes de setembro de 1976. Foram 12 horas de conversa. Tomei chá com Borges duas vezes. Fiz dele 17 fotografias, sentado na sua poltrona preferida. Guardei a entrevista por 25 anos e a publiquei em livro em 2001. Quer dizer: Borges recebeu em sua residência, poucos meses depois da morte de sua mãe, um poeta brasileiro que, na época, tinha pouco mais de 25 anos, e com ele conversou por duas tardes inteiras.
Mas voltemos ao mundo. É bom reproduzir o parágrafo final do texto da editora.
É notável, em todo o conjunto, a inspiração do sagrado, a dar significado às partes, sem que em nenhum momento essa dimensão permita situar esses textos como poemas religiosos. Pelo contrário, sua presença sutil, pontual, repropõe em alto nível o dilema das relações entre o sagrado e o profano mas para se buscar saídas para a vida nesse mundo. Poesia de grande clareza, que flui com naturalidade, que sabe disfarçar com precisão a rigidez da forma escolhida, o soneto, num sem número de recursos e jogos de linguagem sempre empregados sem excesso, insere-se na tradição da modernidade que manteve fortemente seus laços com a dicção clássica e apolínea, visível, por exemplo, na forma como o autor manipula a mitologia antiga.
O texto da editora diz ainda: “Ciente de que só sobram vestígios das visões e dos instantes, a poesia, quando consegue fazer com essas sobras uma imagem, é como a rosa de areia que troca de lugar para fingir que dura. Assim, a poesia é a mais ampla ilusão da eternidade”.
Um ótimo texto, diga-se, até pelo que contém de poesia. Mas caso se pergunte ao autor o que seria essa poesia como “a mais ampla ilusão da eternidade”, o autor por certo faria cara de tédio e prometeria uma resposta num texto “panorâmico” sobre o assunto para não se sabe quando. Não é fácil lidar com as estrelas.
Nada de novo
Mas o texto da editora explica, didaticamente, ser o livro dividido em três partes chamadas de “movimentos”. A obra é precedida “por um soneto intitulado Em frontispício, que situa seu projeto poético”. Observa-se, também, que “a epígrafe do soneto, um versículo de Joel, estabelece as finas relações que o poeta delineia entre o cristianismo e as orientações para a vida humana, sendo desdobrada criticamente no próprio poema”. Convém dizer, então, o que diz a tal epígrafe, um versículo de Joel (2:25): “Eu vos compensarei pelos anos que o gafanhoto comeu…”
Bem, esgotaram-se o texto da editora e a orelha do novo livro do autor. Seria prudente recorrer às orelhas dos livros anteriores. Mas, sinceramente, talvez não seja necessário. O poeta não quer se repetir. É como se tivesse de recorrer sempre às mesmas coisas na falta de coisas novas para dizer. Destaque-se, ainda, outra informação do texto da editora: os 538 sonetos foram escritos ao longo de 26 anos, de 1979 a 1994. Quanto ao livro em si, trata-se de um canto em louvor, afinal, da própria poesia. Até mesmo em louvor dos poetas. Ou, preferível, em louvor da vida. Num dos sonetos, o autor observa que, como Camões, canta a vida de joelhos. Não parece. Muito pelo contrário. É lamentável um poeta ser lembrado por seu comportamento e não por sua poesia. Mas por certo isso não caiba no universo das estrelas. Vale mesmo é o buraco negro onde as leviandades podem ser esquecidas. A poesia brasileira vive em torno de um marketing desprezível. As atitudes infantis não são apenas ridículas. São também incoerentes com a própria obra. O marketing de Tolentino é um certo desprezo que, afinal, o nega como poeta. Não desprezo pela obra criada, pela poesia, pelo poema. Mas uma certa maneira de encarar as coisas do alto, sempre olhando para baixo. É um ser inatingível. Pelo menos se deseja assim. Certamente existe atualmente apenas um poeta sério no Brasil. Uma estrela cintilante. Acima do bem e do mal.