Inventário sobre a perda

Resenha do livro "Não me abandone jamais", de Kazuo Ishiguro
Kazuo Ishiguro, autor de “Não me abandone jamais”
01/08/2006

Cada vez mais investido no duplo papel de indivíduo e demiurgo, criador e criação, o homem parece assustadoramente próximo de assumir labores ainda circunscritos ao divino. Tal possibilidade, antes restrita às especulações da ficção, insinua-se nas frestas do real com a monstruosa e fascinante clonagem de animais — que, transportada para a esfera do ser racional, invoca a inevitável indagação: será esse então um homem?

A questão paira sobre as 344 páginas do romance Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro. Vencedor do Booker Prize de 1989, com Resíduos do dia — livro adaptado para o cinema por James Ivory e no qual o autor retratava a decadência vitoriana ante a incipiente modernidade —, Ishiguro debruça-se novamente sobre a perspectiva da fundação de uma nova ordem social. Porém, os tempos agora são outros e as mudanças, talvez ainda mais oblíquas.

O enredo de Não me abandone jamais se desenrola no final dos anos 90, época em que chegam a público as primeiras experiências bem-sucedidas de clonagem animal. Kathy, a protagonista e narradora, tem 31 anos. Seu trabalho como “cuidadora” se resume em vagar por hospitais prestando assistência aos “doadores”, muitos deles seus ex-colegas em Hailsham, o internato de excelência onde se formou. No futuro, e Kathy sabe disso, ela também será uma “doadora”. A finalidade de sua concepção e os rumos de seu destino foram previamente traçados: Kathy nasceu para ceder seus órgãos, e depois morrer.

Não fora inata, no entanto, essa dura consciência. Durante a juventude em Hailsham, povoada de algumas dúvidas e muita inocência, Kathy e seus amigos estudaram, brincaram, sorriram, choraram, fizeram sexo, sentiram medo e se apaixonaram, como qualquer pessoa. O mérito de Ishiguro é potencializar, com engenho narrativo, a extrema humanidade que cada um desses gestos encerra ao simplesmente acontecer. Uma frase, um toque, um olhar, e mundos inteiros se desnudam, e a aura do clone se esfarela.

Assim como os personagens, o leitor é conduzido gradualmente da atmosfera idílica do internato à revelação do porvir inexorável e terrível que os aguarda. O vácuo que o amanhã representa é aceito com resignação, e na esteira de sua carência eles se agarram às próprias reminiscências, como revela a passagem em que Kathy tenta consolar Tommy: “Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem em sua lembrança. A intenção dele, talvez — durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi quanta sorte tivéramos”.

Vertida no humaníssimo sentimento da esperança, a felicidade ficara, portanto, em Hailsham — onde, a despeito do relativo cerceamento, ela e os colegas de fato “viveram”. Lá, o fio do afeto os unia. Ishiguro sublinha essa idéia em cenas líricas, como o instante em que Kathy vislumbra, de longe, um palhaço com balões de gás presos à mão. Os balões estampam desenhos de rostos sorridentes, e ela o escolta, aflita com a eventualidade de se soltarem. A imagem de fora doía dentro: “Pensei em Hailsham e fiz uma relação de seu fechamento com alguém munido de tesouras que se aproximasse e cortasse o barbante dos balões, bem onde todos eles se entrelaçavam no punho do homem. Assim que isso acontecesse, não restaria mais nenhuma evidência de que algum dia eles estiveram ligados uns aos outros”.

Esse intimismo denso e atravessado por metáforas marca toda a narrativa, tornando dispensável a teorização que atravanca um pouco a parte final. Pois é na entrelinha que Ishiguro inventaria com mais força o dilaceramento causado pelas sucessivas perdas que esvaziam a protagonista (e, por que não?, a todos nós). Kathy, Tommy, os cuidadores, os doadores e também os beneficiários de seu padecimento, tendo ou não complacência diante do que vêem, são apenas matéria de memória, à espera da morte, líquida e certa.

Ou à espera de reencontrar, por um segundo que seja, aquilo ou aqueles que se foram, como sucede com Kathy. Ao estacionar seu carro em frente a um campo rodeado de arame, ela repara que a cerca, “única coisa capaz de barrar o vento por vários quilômetros”, travou um amontoado de lixo — e fantasia:

De olhos semicerrados, pensei no lixo […], na franja de objetos vários ao pé da cerca, e imaginei que esse era o lugar onde tudo o que eu havia perdido desde os tempos de infância tinha ido parar, e que se eu ali, imóvel, esperasse o suficiente, uma minúscula figura apareceria no horizonte, lá bem ao longe, e iria aumentando aos poucos, até que eu visse que essa figura era Tommy, e ele me acenaria.

O desenho de Tommy, contudo, rapidamente se desfaz — e Kathy então liga o motor e parte, deixando a quimera e carregando a solidão, para a vida que, mesmo efêmera, segue.

Não me abandone jamais
Kazuo Ishiguro
Trad.: Beth Vieira
Companhia das Letras
344 págs.
Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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