O cirurgião

Conto de Rubem Mauro Machado
Rubem Mauro Machado, autor de “Lobos”
01/08/2006

O carro de reportagem avançou chacoalhando pela rua de costelas, barco no mar grosso, sob a ameaça grave de ali deixar para sempre os ossos de lata. As moléculas vibravam na geléia espessa de ar quente, nossas bocas de pouca saliva engoliam os gomos secos da poeira que levantávamos. Incomodados por aquele terremoto, seguíamos calados. Na frente dos casebres de esgoto a céu aberto, crianças barrigudas pela verminose nos olhavam com curiosidade estática. Três ou quatro vira-latas expressavam seu protesto feroz por nossa mobilidade num mundo estagnado.

Por isso é que gosto desta profissão mal paga, pensei; cada dia traz uma aventura e se aprende alguma coisa diferente. Aquela podia se intitular viagem ao coração da miséria, proclamei, um tanto melodramático. É claro que eu já sabia como são as vísceras de uma favela; mas uma coisa é saber, a outra é estar dentro delas. Na birosca onde nos informamos, homens desocupados de olhos raiados de sangue bebiam em copinhos diminutos a trégua do dia, enquanto estapeavam moscas invisíveis.

— A casa é aquela — o que parecia mais velho apontou. E acrescentou com sarcasmo, num eco de risadas — O Lobisomem mora ali.

Diante da porta, Boneco estacionou onde uma fatia de sombra esparramava-se com mansidão dentro da tarde. Desligou o motor e disse, agarrando-se ao volante como um náufrago agarra-se a uma bóia:

— Eu espero vocês aqui — e não conteve um bocejo antecipatório.

Boneco aproveitava cada parada nossa para um cochilo, mas dessa vez não fizemos nenhuma piada com a preguiça proverbial do nosso piloto, de olhos já por natureza estreitados na cara grande e morena de nordestino, picotada pelo sarampo; e talvez não fosse preguiça, talvez fosse apenas o cansaço proletário de quem pouco pode dormir; mas tudo serve de pretexto para se tirar o pêlo de um camarada. Eu e Pedrão descemos, ele parecendo um guerreiro com seu colete verde de muitos bolsos e seus canhões fotográficos. O cabelo loiro grudava na cara redonda e gorda de menino. Um filete de suor me escorregava pelo ramal da espinha. Levei os nós dos dedos de encontro à madeira áspera da porta.

— Pode entrar — comandou, lá de dentro, uma voz um tanto rouca e abafada. Walter nos esperava.

— Nós somos do Diário — apresentei-me ociosamente, só para ter o que dizer — Obrigado por nos receber.

— Tenham a bondade de sentar — disse o homem com delicadeza, depois de apertar nossas mãos na semi-obscuridade do casebre de uma única peça, afora a latrina dos fundos.

Eu, apesar de curioso, tentava olhar o menos possível para o seu rosto, para não ser indelicado. Pedrão ao menos tinha a desculpa de se ocupar com as lentes e com o fotômetro. Sentei na cadeira de palha esfiapada, provavelmente recolhida do lixo. Pisquei os olhos, ainda machucados do sol de lá de fora. Como começar?

— Às suas ordens — Walter facilitava as coisas.

Era um homem magro, estatura média. Vestia calça escura, camisa branca de mangas compridas e um casaco preto, além de sapatos com meias: tinha orgulho, não queria sair mal na foto. Estava sentado na cama improvisada com tijolos e papelão. A um canto, alguns gêneros empilhavam-se sobre um caixote, junto a duas panelas, uma caneca de alumínio e um fogareiro a álcool.

— Seu nome completo? — perguntei, enquanto destampava a caneta Bic e abria o bloco de anotações. A gente sempre deve começar com perguntas neutras. Ele disse, anotei.

— Sua idade?

— Cinqüenta anos.

— Vive sozinho?

— Sim.

— Não tem parentes?

— Tenho uns parentes distantes, que vêm aqui umas duas ou três vezes por ano. Aí eles me trazem uma bolsa com arroz, feijão, macarrão, óleo, essas coisas básicas. Depois somem.

— Sei. Você estudou até que série?

— Parei de estudar quando faltavam dois anos para terminar o curso colegial. Tinha de ganhar a vida. Pretendia voltar aos estudos, mas nunca fiz isso.

— Você foi trabalhar em quê?

— Fiz um curso técnico rápido e fui trabalhar como auxiliar de dentista. Sempre tive habilidade com as mãos. No consultório aprendi muita coisa sobre assepsia, anestésicos, coisas assim.

— Quando foi o seu acidente?

— Há 17 anos.

— Você morava onde?

— Numa casinha alugada, no Parque União.

— Você se importaria de contar como foi?

— Não. Vocês estão aqui para isso, não é mesmo?

Nesse momento o estouro de um flash nos anunciou que Pedrão agia. Percebemos que ele tivera a sensibilidade de apanhar Walter de perfil. O entrevistado não parecia estar preocupado com ele.

— Cheguei em casa tarde da noite, de volta de uma festa — Walter tomou alento, suspirou fundo — Nessa época eu namorava uma moça bonita, de Minas, pretendia me casar com ela. Mas havia ficado desempregado uns meses antes.

— Você tinha bebido?

— Um pouquinho. A bebida não foi a causa do acidente.

— Continue, por favor.

— Subi numa escada de madeira, dessas de mão, para pegar alguma coisa no alto de um armário. Sabia que ela estava podre, mas não avaliei o risco. A gente só pensa nas coisas depois. A escada quebrou, me desequilibrei, caí com o rosto sobre a lasca afiada da madeira. Ela entrou como uma lança pelo meu rosto, acabou com ele.

Por um momento ficamos os três imóveis, dava para ouvir uma mosca voar.

— Fui socorrido na Santa Casa. Fizeram o que puderam, me costuraram de qualquer jeito, onde deu, disseram que meu caso era sério, que eu precisava fazer cirurgia plástica; aliás, mais de uma. Mas como eu podia pagar?

— Por que não procurou o INSS?

— Quando fiquei desempregado, parei de pagar o Instituto. Foi o meu erro. Para eles me atenderem eu precisava pagar todos os atrasados. E com que dinheiro?

— É, é uma situação muito difícil — comentei tolamente.

— Fui a vários médicos. Nenhum aceitou me operar de graça. Eu tinha virado um monstro, com um buraco no lugar do nariz, a boca retorcida, os dentes expostos. Tentei alguns empregos, mas as pessoas tinham asco, até mesmo medo de mim. Ninguém me queria por perto. Virei mendigo, vim parar nesse barraco.

— E sua namorada?

— Escrevi para ela, contei sobre o acidente, disse que ficara deformado. Ela respondeu que gostava de mim, que queria me ajudar. Mas sou orgulhoso, mandei dizer que não me procurasse, que me esquecesse. Eu não queria ser um peso na vida dela.

— Por que você não foi aos hospitais?

— Fui, mas ficavam me enrolando, dizendo agora não dá, volte mês que vem, volte daqui a três meses. Eu não acredito mais na solidariedade humana.

Novo flash de Pedrão. Ele se movia em silêncio e estava sendo bem comedido: poucas fotos e nenhum close.

— Na rua, eu era perseguido pelas crianças. Elas me chamavam de monstro, me atiravam pedras — Walter abrira de vez a torneira das palavras — Muita gente se benzia quando eu passava. Há pessoas aqui no bairro que acreditam mesmo que sou o Lobisomem. É assim que me chamam. Eu não saio de noite, com medo de levar um tiro. Esse povo daqui é muito atrasado.

— Você vivia de quê?

— De catar lata, vidro, papelão. Vivia de remexer o lixo. E ainda vivo. Algumas pessoas me dão coisas.

— E como foi a sua primeira operação?

– Eu estava desesperado. Não agüentava mais ser um monstro, passar por tanto sofrimento e humilhação. Mas também não queria acabar com a minha vida; é impressionante como a gente se apega à vida, mesmo quando não tem nenhum motivo para isso.

Calou por um instante, fixando um ponto no chão de terra batida, como se refletisse em seus motivos. Depois pareceu acordar e me olhou:

— Foi então que eu roubei o livro do consultório de um médico.

— Livro?

— É. Um livro sobre cirurgias da face.

— Você foi muito corajoso para fazer o que fez. Não estou me referindo ao roubo do livro, é claro.

— Fui levado pelo desespero.

— Quantas operações você já fez em você mesmo?

— Dezessete.

— Caramba: dezessete!

— A primeira que tentei foi na boca. Eu sabia que para fazer o nariz eu precisava fazer primeiro a boca.

— E deu certo?

— As primeiras operações não davam certo porque eu não sabia que tinha de ligar os nervos. Aprendi no livro e à minha custa. Hoje sei como fazer as costuras e ligações necessárias. Aliás, o senhor acredita que eu acabei devolvendo o livro pro médico?

— E como é que você se opera?

— O bisturi é a metade de uma gilete. Os fios para sutura interna têm de ser especiais, mas, como não tenho, uso linha comum mesmo e uma agulha torta. Utilizo ainda uma pinça, dessas comuns, de sobrancelha. E álcool. E um espelho, é claro.

— E como anestésico?

— Novocol 100. Para aplicar, uso uma seringa de dentista. Um médico que ouviu falar de meu caso disse que foi um milagre eu não ter morrido de infecção. Mas eu fervo tudo antes. E o fato de eu não beber acho que ajuda muito.

— E como você remexe no lixo há anos, deve ter desenvolvido muitos anticorpos — arrisco.

— Não tinha pensado nisso. Pode ser. Muita gente me chama de maluco, mas o senhor precisava ver como eu era antes dessas operações. Esse nariz, eu modelei em acrílico, agora só falta recobrir com pele. Sei que se tivesse sido operado por médicos, num hospital, teria ficado muito melhor. Mas pelo menos agora eu tenho uma cara, digamos, apresentável.

— É impressionante. Ousaria dizer que você é um gênio.

— A necessidade é a mãe de tudo.

— Sou leigo, explique melhor: como você faz para obter pele?

— A pele eu tiro do peito. Para estancar a hemorragia, que às vezes acontece, eu moldei uma peça quadrada de gesso, que coloco sobre a cicatriz e amarro bem apertada no tórax, pressionando os vasos.

Ficamos os três de cabeça baixa, cada um com sua concentração. À saída, apertamos a mão de Walter. Sua emoção se comunica a mim. Estou trêmulo.

— Walter, não sei o que dizer. Espero que a reportagem o possa ajudar de algum modo.

— Eu só quero é me libertar dos apelidos, que me deixem em paz. Que eu possa viver sem que me atirem pedras. Não cortei minha própria carne dezessete vezes por vaidade: acredite, foi simplesmente para sobreviver.

Quando nosso carro arranca, Walter chega à porta entreaberta de seu casebre. Volto-me e aceno-lhe pela janela. Ele acena de volta, parecendo muito digno em sua elegância pobre, imobiliza-se com a mão no ar; sua figura vai diminuindo, até sumir na nuvem de poeira, densa como o tempo, quando ele é apenas esquecimento.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho