Poemas de Guilherme Scalzilli

Leia os poemas "Tempos", "Lavra", "“Entendeu?”", "Hotel Royal, duzentos e quatro" e "(*) ERRATA"
01/08/2006

Tempos

Onzes de janeiro de dois mil e dois
haverá aos bilhões.

Agora é daqui
há pouco.

Dez minutos
sequer têm tempo
para esses seiscentos segundos
que os recheiam.

As hélices dos ponteiros,
as sombras girassóis,
a areia que esvazia,
enquanto anunciam,
sonham perenidades ínfimas,
prenhes de acasos remotos,
nanoabismos de augúrios
que orbitam num infinito
de culpas, anseios e júbilos.

Agora,
o agora
já era:

brilho cansado,
expira no olhar do bebê
— a mesma luz anciã
que sorriu nas pupilas fundas
do seu avô quando nasceu.

Seiscentos mil milésimos de tempo:
memórias de letras
que terminam nunca;
nódoas que não vemos
num fotograma negativo
daquele ímpeto que viria se.

Tempo é,
faz tempo.

Minutos, segundos, milênios
(é?)
são momentos.

Mas o tempo
— esse dá medo.

Lavra

Esfarinhar a palavra granulada,
arrancando-lhe dermes e músculos,
até a medula do mármore precário
que aprisiona sua gloriosa fatuidade.

Fazer dos sentidos catacumbas
onde apodreçam os desabafos;
da vigília silente e insalubre,
um assalto à normalidade abjeta.

Corromper a palavra benta
enquanto esperança sem nome;
não basta engolir-lhe os fluidos,
há de esganá-la no útero árido,
antes que luza outra certeza vulgar.

Afogar os discursos insípidos
nesta fossa de metros exemplares,
a purificá-los de futuros,
rindo de seu refulgir afásico.

Da palavra lograda,
monumento faustoso,
limpar a porção pedra
que impregna de acridez
sob a urina dos anônimos.

Ainda que obsedado por luzes,
ignorar as emanações de alento
jorradas desse absurdo intenso
que tudo engolfa, conota e eterniza.

Dissecar a palavra cadáver,
extrair o cisto que a explica
e exsudá-lo na seiva ignara
que se oferendará ao mar.

Esperar que adormeça, decantada,
reciclando sua sina de resíduo,
buscar na areia a mensagem impossível
e então, à brasa do sol, castigá-la.

“Entendeu?”

Te abro em vanglórias,
emborcadas às paredes
e às coisas do apartamento.

Tuas sobras, que ainda guardas,
driblando as vigílias tormentosas,
afoita de fugidia lucidez,

tateiam, serpentes pegadiças,
coçando nos contornos débeis,
roçando também os nossos, lentos.

Chove horrores há horas;
na jaula calma desembestas
e destilas, nessa dança nervosa,

a teia de esperanças ariscas
que nos fazem (a mim e às coisas),
antes intrusos, ora detentos.

Hotel Royal, duzentos e quatro

Ora,
se o Quintana queria ter nascido
num cachorro sentado
(escreveu-o naquele quartinho,
penteadeira, criado-mudo com moringa),

eu queria ter rompido
amanhã bem cedinho
com sol na minha cara feia.

Hoje sei que li
um trecho desses
do Quintana
(velhote traquinas,
chapéu e bengala,
atropelado),

corri pra gaveta pesada

puxei o revólver

e dei um tiro de vida no ouvido.

(*) ERRATA:

depois de 18/07/97,
onde lê-se “e se usássemos
também o poema imediato
para lucubrações fantásticas”,
leia-se: “faz bem a morena
em correr para casa
com essa maresia fria
dando arrepio na sua pele exposta,
à mostra, tão tarde da noite”.
Doravante assim.

 

Guilherme Scalzilli

É historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela), entre outros livros.

Rascunho