Em setembro, Ferreira Gullar completa 76 anos, e deve concluir o ano com mais dois livros: um de crônicas e outro de ensaios sobre o movimento neoconcretista. As obras completas também estão sendo preparadas e, entre elas, textos inéditos de teatro. Há sete anos, ele não publica um volume de poesia. O último é Muitas vozes, ganhador do Jabuti. No meio do caminho, há os poemas para crianças de Dr.Urubu e outras fábulas, publicado em 2005. Mas este quase não conta. “Isso começou quando escrevi alguns poemas para meu gato sem o propósito de publicá-los”. Nesse período, continuou produzindo poesia adulta e já tem um estoque de novos poemas, mas não publica: “algo me diz que ainda não está pronto”. Gullar não se furta de confessar que vive resmungando “contra os absurdos” do mundo contemporâneo. Nesta entrevista feita por e-mail, ele critica os programas assistencialistas do governo, fala de seu desencanto com a “utopia socialista”, reflete sobre a crise de valores da juventude em relação ao narcotráfico, mas preserva sua fé na luta por uma sociedade mais cidadã. E, claro, comenta a poesia concreta, para ele definitivamente importante como história, mas poeticamente pobre.
• É raro um poeta, dos grandes, escrever para os pequenos. Estou me referindo ao seu ainda recente Dr. Urubu e outras fábulas, livro de poemas para crianças. Como foi essa transposição?
Nunca havia pensado em escrever para crianças. Isso começou quando escrevi alguns poemas para meu gato sem o propósito de publicá-los. A editora Salamandra soube e me propôs editá-los. Já os poemas do livro Dr. Urubu e outras fábulas foram escritos durante viagens que fiz de automóvel do Rio para São Paulo. Lembrei-me dos livros de histórias infantis que costumava ler quando criança, cujos personagens eram quase sempre bichos: o jabuti e o teiú, a onça e o veado, etc.
• Quais os seus projetos atuais? Algum novo livro?
Dois livros meus serão editados este ano: uma seleção das crônicas que tenho escrito para a Folha de S. Paulo, com ilustrações de Antônio Henrique Amaral, e um ensaio sobre a arte neoconcreta, contando minha participação no movimento. Quanto à poesia, não é coisa que se planeje. Meu último livro de poemas, Muitas vozes, foi editado há sete anos quase; de lá pra cá, tenho escrito esporadicamente, como sempre, e já tenho um bom número de poemas. Mas não tenho data certa para lançá-lo; algo me diz que ainda não está pronto.
• Na primeira metade dos anos 50, em A luta corporal, o senhor dizia: “A canção repousa o braço/ no meu ombro escasso” e também: “Vê-se: o canto é inútil”. Mais tarde, durante o regime militar, sua poesia foi de reação. Afinal, que companheira é a poesia?
A poesia é a companheira da vida toda, mas uma companheira que só aparece quando quer e não quando você deseja. Não obstante, é quando a encontro que me encontro, que me descubro e me desconheço. Na verdade, ao fazê-la me invento e reinvento o mundo, a vida.
• Qual a sua avaliação hoje, com distanciamento, do movimento concretista? Sua relação com o grupo foi de casamento e ruptura. Em que pé andam os filhos e netos desse caso?
É necessário distinguir, no concretismo, a experiência dos artistas plásticos concretos, que começou por volta de 1950, e a da poesia concreta, que nasce em 1956. Minha ligação com o concretismo começa no diálogo com os pintores e escultores, na casa de Mário Pedrosa, que se tornara o arauto do movimento. Minha poesia versava outros temas e problemas, muito longe disso. A poesia concreta foi uma proposta dos irmãos Campos e Décio Pignatari que desejavam mudar a poesia brasileira. Meu livro A luta corporal, de 1954, contribuiu para a ruptura com a linguagem tradicional da poesia e isso nos aproximou. Mas, no fundamental, nossa maneira de ver a poesia era distinta e isso levou à ruptura em 1957. Mais tarde, os artistas e poetas cariocas lançaram o movimento neoconcreto, que diferia bastante do rumo tomado pelos concretistas paulistas. Naquele período, concebi o livro-poema, os poemas espaciais e o Poema enterrado, de que falarei no livro referido acima. Creio que a poesia concreta foi um movimento necessário naquele momento de certo esgotamento da poesia modernista. Trouxe para a mesa de discussão uma série de questões importantes sobre a poesia contemporânea, mas, do ponto de vista da criação poética mesma, me parece pobre. Ficará como um fato histórico mas não como criação poética de grande valor.
• Em Romances de cordel, nos anos 60, o senhor dizia: “Mas precisamos agora/ desarmar com nossas mãos/ a espoleta da fome/ que mata nossos irmãos”. O que o senhor diz agora do Fome Zero e do projeto político do governo Lula?
Ao que eu saiba, o Fome Zero não existe mais, foi substituído pelo Bolsa Família, que é o novo nome dado pelo Lula a dois projetos do governo anterior: Bolsa Alimentação e Bolsa Escola. A fusão dos dois projetos foi prejudicial do ponto de vista social, uma vez que misturou um programa de visava apenas dar comida às famílias carentes (Bolsa Alimentação) com o outro, que visava obrigar os pais a colocar seus filhos na escola. Agora, tornou-se difícil controlar o programa que corre o risco de tornar-se apenas assistencialista. Considero que não se pode deixar as pessoas morrerem de fome, mas é necessário criar condições para que elas possam ganhar sua vida dignamente e não viverem de esmolas. Os programas assistencialistas são fonte de votos para os governantes populistas, que preferem manter a população dependendo de sua suposta generosidade.
• Em sua opinião, a dialética marxista recebeu um golpe com a “queda do muro” e o fim da URSS? Ou o diálogo vai continuar?
O marxismo foi uma utopia nascida como resposta ao capitalismo selvagem, que se consolidou na Europa em meados do século 19, e tornou-se o ideal das pessoas generosas dali em diante. Mobilizou as consciências e mudou o mundo. Cometeu erros, mas ajudou a consertar muitos outros. Com o fim do socialismo real, parece-me impossível que a utopia socialista tenha ainda a capacidade de mobilizar a maioria das consciências, mas isso não quer dizer que o capitalismo se tornou bonzinho e que devemos desistir da luta por uma sociedade mais justa.
• Ainda na fase do cordel, em uma das composições, o poeta perguntava quem armara o braço de Aparecida, a favelada suicida. Hoje a pergunta se amplia. Quem armou o braço do narcotráfico?
O narcotráfico é um problema extremamente grave, que pode até mesmo ameaçar a civilização. Não sei qual a solução, uma vez que ele se apóia em grande parte dos jovens que procuram fugir da realidade difícil do mundo de hoje, cujos valores básicos estão sendo questionados. Como estou convencido de que a sociedade humana é fruto de um consensual respeito às normas, a violação generalizada dessas normas só pode conduzir ao caos.
• Em A vertigem do dia, nos anos 80, o senhor reclamava: “e por mais/ banhos que tomemos/ e por mais desodorantes/ que usemos (…) não se acaba esse cheiro”. É o Rio de Janeiro, o Brasil ou o mundo que cheiram mal?
A poesia não trata de generalidades. Cada poema que escrevo resulta de determinada vivência ou espanto ou revolta. Não cabe a mim estender a mensagem do poema a outras situações.
• Também em A vertigem do dia, o poema A espera soa, em certo sentido, premonitório: “Um grave acontecimento/ está sendo esperado/ e nem Deus e nem a polícia/ poderiam evitá-lo”. Vendo as manchetes do dia, esse acontecimento já chegou?
Meus poemas não podem ser interpretados ao pé da letra, nem poema algum, a meu ver. Cada leitor terá a sua leitura própria e sua interpretação.
• Em seus ensaios, o senhor diz que a cultura de massa embota a criatividade — se entendi bem —, mas essa mesma realidade é material para a arte. Isso explica por que o senhor coloca a mão na massa e atua na mídia como narrador de documentários, faz adaptações e textos para telenovelas e minisséries?
Não me lembro de tudo o que já disse e escrevi. Penso que a cultura de massa, pelas condições em que é produzida — como, por exemplo, as novelas de televisão —, tem que se submeter a imposições que contrariam a liberdade criadora e obrigam a soluções estereotipadas e implausíveis. Cabe aos autores das novelas buscar as soluções possíveis para tais limitações. De minha parte, sou jornalista profissional, escrevi para a televisão e colaboro regularmente na imprensa. Sei separar uma coisa da outra. Quando escrevo para jornais, minha preocupação não é fazer obras de arte, mas buscar dar o máximo de qualidade ao que escrevo. Além disso, o jornal nos permite levar nosso pensamento a um número considerável de pessoas. Como não desisto de minha condição de cidadão e quero influir no processo social, minimamente que seja, vejo na colaboração jornalística uma oportunidade de fazê-lo.
• O senhor já trabalhou em rádio, jornal e talk show. Como foi essa experiência? Pautas, entrevistas, o corpo a corpo com o entrevistado e a teleobjetiva?
Esse programa a que você se refere era da STV, de São Paulo, e já parei de fazê-lo faz quase dois anos. Foi concebido como um programa para a terceira idade, como um diálogo com as gerações mais novas. Eu era apenas o apresentador do programa, não o concebia nem escolhia os entrevistados. Procurava atuar como se fosse o público e me limitava a fazer as perguntas que o público faria. Falava o mínimo possível, já que era apenas o entrevistador.
• Seu Poema brasileiro (do livro Dentro da noite veloz) parte de um enunciado que poderia ter sido retirado de um diário: “No Piauí de cada 100 crianças que nascem/ 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”. A repetição desse verso, em recortes formais, potencializa, poeticamente, seu significado. Esse poema expressa sua concepção de que, na poesia moderna, a prosa ganha foros de verso na operação poética?
Poesia se faz com a linguagem coloquial, com a prosa, portanto. O poema é o lugar onde a prosa vira poesia. Esse poema a que você se refere, feito na época da luta pela reforma agrária, antes da ditadura, usa uma notícia de jornal para sublinhar a desigualdade social.
• O choque dos meios de reprodução, referidos por Benjamin, alterou a concepção moderna de arte. Hoje, fala-se em mundo globalizado. Seus poemas Girassol e Mar azul, da fase concreta, ganharam uma releitura digital em seu hot site no Portal Literal (www.portalliteral.com.br) com o nome de e-poemas. Esse é um caminho possível na internet para algo próximo à idéia da poesia convencional no papel?
Os poemas concretos que aparecem no site foram enriquecidos pelos novos recursos possibilitados pela informática. Tive a idéia de dar-lhes movimento real, quando no livro tinham um movimento apenas virtual. Mas esses recursos não podem ser usados em poemas discursivos. Creio que é possível desenvolver uma nova experiência poética a partir das novas técnicas.
• O senhor já se definiu como um cronista bissexto. Mas recentemente participou da Bienal Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, ao lado de Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros. Além disso, escreve regularmente para o caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Como é seu processo de escrever crônicas?
De fato, passei vários anos sem escrever crônicas para jornais. Voltei a escrevê-las por convite de O Tempo, de Belo Horizonte e, depois do Correio Braziliense. Finalmente, a Folha de S. Paulo me convidou para fazer uma crônica por semana, aos domingos, que aceitei. Tem sido uma experiência muito gratificante, porque se trata de um jornal de grande penetração, lido nacionalmente, o que dá mais sentido ao que faço. Escrevo essas crônicas com o máximo de responsabilidade, pois sei que o que diga ali tem ampla repercussão. Também procuro não sobrecarregar o leitor com assuntos pesados e, por isso, procuro alternar os temas mais sérios com outros mais leves e engraçados.
• Como anda o lado tradutor e dramaturgo do poeta Ferreira Gullar?
A maioria dos livros que traduzo é atendendo ao pedido do editor. Não gosto muito de traduzir, a não ser quando se trata de uma obra que me fale particularmente. Quanto ao teatro, tenho algumas peças escritas que nunca foram montadas, mesmo porque não as ofereci a ninguém. Serão publicadas agora pela Nova Aguilar, na edição de minhas obras completas, que está sendo preparada por Antonio Carlos Secchin. Fora essas peças, escrevi um monólogo, que ainda não dei por concluído.
• O senhor passou dois anos devorando gramáticas, quando era adolescente. Também foi revisor de textos em O Cruzeiro e Manchete. E já escreveu sobre a necessidade de educar o educador. Como vê a questão da leitura no Brasil?
Acredito que a situação está melhorando, ainda que aos poucos. As iniciativas oficiais de comprar grande quantidade de livros para as bibliotecas das escolas devem dar resultados positivos. O projeto de estimular as crianças a formarem bibliotecas em casa com livros doados pelo governo também pode ajudar muito a estimular o hábito da leitura entre os jovens.
• Em seu hot site há um link denominado Resmungos — pequenos textos de reflexões e críticas. É uma espécie de reação ao que é política, cultural e artisticamente correto?
Ao ser criado o Portal Literal, pela Conspira, onde está localizado o meu site, teve-se a idéia de cada um dos integrantes do portal escrever, periodicamente, alguma coisa para seu próprio site. Foi então que me ocorreu a idéia de escrever essas notas críticas a que dei o nome de Resmungos. É que vivo sempre resmungando contra os absurdos que marcam a sociedade brasileira e o mundo contemporâneo.