Vai, Carlos! ser gauche na vida. Este é um dos trechos mais celebrados, citados e analisados da vasta e complexa obra do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) que, segundo boa parte dos críticos, foi o maior poeta brasileiro do século 20. Tal consenso se deve não somente pelo fato de Drummond ter sido um dos poetas mais profícuos de seu tempo, mas, sobretudo, porque seus poemas invariavelmente tornavam mais emblemática a persona do autor, como se fosse possível reinventar o poeta a partir da leitura de sua obra. Esta sempre foi um claro enigma, parafraseando um dos títulos de seus livros. Por isso, mais do que ler, ou reler, Carlos Drummond de Andrade, faz-se necessário conhecer, a fundo, o homem e sua obra. Dois livros de categorias e formatos distintos propõem-se a esse árduo exercício. São eles: Passos de Drummond, do professor e crítico literário Alcides Villaça; e Os sapatos de Orfeu, biografia do poeta de Itabira assinada pelo jornalista José Maria Cançado, morto recentemente em virtude de um infarto.
Crítica e biografia, num primeiro instante, podem parecer gêneros antagônicos, ainda mais se for levado em consideração o fato de os críticos, grosso modo, sempre torcerem os narizes para biografias de escritores. Essa rixa, muito provavelmente, deve-se ao fato de os biógrafos, influenciados, talvez, por uma linha narrativa norte-americana, preferirem discorrer com requinte de detalhes (mórbidos, em alguns casos) a vida particular dos biografados. Estes, aliás, transformam-se, para todos os efeitos, uma personagem, com direito a trajetória plena de altos e baixos. Não, leitor, não é à toa que as biografias vendem e são publicadas aos montes. Nesse sentido, entretanto, é um alento que o professor José Maria Cançado tenha sido o biógrafo de Carlos Drummond de Andrade. Porque ao contrário de fazer um romance de não-ficção com a vida do poeta, ele optou por fazer uma leitura da vida sem necessariamente desatar os nós da obra, recorrendo a esta última sempre que fosse preciso ler as nuances dos gestos enigmáticos de Drummond. Decerto que tal estratagema nem sempre surtiu efeito, mas seria injusto não reconhecer, ali, um esforço de interpretação.
Os sapatos de Orfeu pode ser entendido como a busca pela compreensão de um homem que, para além de ser gauche na vida (como se isso fosse pouca coisa), tornara-se poeta pela impossibilidade de ver as coisas de uma outra maneira [que não fosse a sua]. Desse modo, Cançado divide a biografia em três partes: Livro I – 1886-1930; Livro II – 1930-1959; Livro III – 1951-1987. A opção por um andamento linear, meio que fora de moda entre os escritores contemporâneos, ajuda a conhecer o poeta desde a gestação até alcançar a maioridade como poeta, sem deixar de mencionar sua carreira como funcionário público, bem como o período em que foi militante político da esquerda.
Todos esses detalhes, no entanto, sempre são pontuados pela poesia de Drummond. Num texto fluído, muito graças ao fato de ser jornalista — ou seja, contador de histórias por natureza —, José Maria Cançado não deixa o texto se perder. Em vez de ser algo equivalente a um trocadilho infame com seu sobrenome, o que se lê é uma história cativante desde o momento em que o poeta acumulava experiências para o seu nascimento poético. E, de acordo com a reconstituição, isso se dá muito antes de sair Alguma poesia, primeiro livro de Drummond. É no colégio e na infância no interior de Minas que a persona do poeta foi gestada. Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, disse que “o menino é o pai do homem”. A menção não poderia ser mais exata.
Mas não se deve incorrer na interpretação de que o biógrafo escorregou na psicologia rasteira a fim de explicar sua tese particular sobre Carlos Drummond de Andrade. Em vez de seguir em conjecturas, a despeito de também ser estudioso da literatura brasileira, José Maria Cançado fez um trabalho jornalístico de qualidade ao procurar as fontes e as pessoas que conviveram com Carlos Drummond de Andrade. Assim, Antonio Candido não foi apenas uma referência intelectual, mas um entrevistado, que forneceu, pelo menos, uma história hilária: ao ensaiar um abraço no colega, o crítico foi repreendido pelo rosto lívido e assustado do sempre tímido Drummond.
Ainda no quesito memórias e influências, o jornalista ressalta a importância da leitura dos clássicos para a formação do poeta como literato. O também jornalista Daniel Piza, recentemente em sua coluna Sinopse, em O Estado de S. Paulo, afirmou que os escritores brasileiros de hoje preferem a leitura dos contemporâneos, além de dar audiência a seriados e filmes a seguir uma leitura dos grandes nomes da literatura universal. Explica-se, portanto, no caso específico de Drummond, o fato do conhecimento do mundo das idéias existir antes mesmo de sair da casa dos pais. Além de Flaubert, citado pela leitura de Educação sentimental, outro escritor que aparece na gênese de Drummond é Marcel Proust, de quem o poeta faria a tradução, anos seguintes, de um dos volumes de Em busca do tempo perdido.
Círculo de amizades
Engana-se, no entanto, quem imagina que Drummond seguiu a sina do intelectual enclausurado e recluso a seu universo particular. Apesar de em muitas ocasiões preferir ficar em casa a sair para encontrar com Fernando Sabino, por exemplo, a amizade do poeta com os intelectuais do seu tempo cobre boa parte da biografia. Os nomes são variados e interessantes: Pedro Nava, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. Alguns mais, outros menos faziam parte do círculo de amizades que, de alguma maneira, também são parte integrante dessa história. Afora esses, para além das afinidades eletivas, um outro nome que é bastante lembrado é o de Gustavo Capanema, ex-ministro de Getúlio Vargas. Entre outras coisas, foi ele, por exemplo, quem nomeou Drummond como seu chefe de Gabinete no Ministério da Educação. Nesse período, o poeta já morava no Rio de Janeiro.
E é no Rio de Janeiro que se desenvolvem, segundo nos conta Cançado, os romances paralelos de Drummond. Surpresa para muitos, o poeta mantinha outras afinidades com a também funcionária pública Célia Neves, mulher cultivada e que, para Drummond, era uma espécie de modelo. A despeito dessas e de outras particularidades, como o fato de sair às tardes de domingo junto com a filha para visitar o cemitério, o relato mais relevante elaborado pelo jornalista no Livro II é a propósito de participação política de Drummond. Tendo flertado com o anarquismo, quando instado se era de direita ou de esquerda, o poeta rapidamente se identificaria com as causas do povo e com o engajamento intelectual em prol das causas de esquerda. Isso ficaria para lá de evidente quando o poeta pediu demissão no cargo de funcionário público, posto que já não mais condizia com sua atuação militante, e, quase que imediatamente, passou a colaborar com publicações que estivessem de acordo com a linha editorial do partido. A análise de José Maria Cançado possui uma viva riqueza de detalhes desse período, mais até do que este singelo texto poderia resumir. O que se pode dizer, no entanto, é que mesmo para um Drummond alinhado com a causa da esquerda o patrulhamento intelectual parecia demais — e olha que não falamos aqui de Arthur Koestler em seu O zero e o infinito ou de George Orwell em 1984.
O gauche na vida mostrava-se assim, sobretudo, na sua obra. No meio do caminho, por exemplo, causou misto de estranhamento e admiração, ganhando, inclusive, a tradução para o húngaro, graças ao trabalho de outra de suas afinidades intelectuais: Paulo Rónai. Semelhantemente também, causaria estranhamento a publicação de A rosa do povo, este principalmente pelo fato de ter sido achincalhado pelos intelectuais do partido que — por que isso não chega a surpreender? — consideraram que Drummond tinha se vendido por não partilhar do patrulhamento de idéias. Curiosamente, essa tentativa só foi anotada na biografia como que para ressaltar uma leitura feita com prejuízos e de cunho político.
Passos de Drummond
A propósito das leituras e de crítica, não há como escapar da obra clara e cristalina de Alcides Villaça. Inicialmente, o leitor notará uma saudável diferença do texto deste em relação ao de José Maria Cançado. Enquanto aquele prima por um estilo jornalístico e, para o bem e para o mal, mais prosaico, Villaça chama a atenção pela prosa elegante e não menos contundente. E o livro realiza uma análise de sete poemas drummondianos, discorrendo não somente pelo seu formato, mas, sobretudo, por seu significado, em busca de insights e pistas acerca de Carlos Drummond de Andrade.
Exemplo bastante sucedido, nesse caso, é a observação do Poema de sete faces. Quebrando o poema em estrofes, Villaça comenta cada movimento produzido a partir da leitura. Nenhuma vírgula é esquecida, apostando, aqui, no propósito do poeta em gerar os referidos efeitos indicados pelo crítico. Este, portanto, procede um exercício de justificação de suas idéias a partir da obra de Drummond, relacionando, para tanto, outros poemas afora os analisados.
Existe um espaço entre a publicação de Os sapatos de Orfeu e Passos de Drummond. O primeiro é originalmente de 1993, enquanto o segundo foi recentemente lançado. Cabe lembrar que nenhuma das leituras prescinde a obra do próprio Drummond. Pelo contrário. O que existe é um estimulo e o interesse provocado a partir dessas duas obras que, dentro do vasto mundo lírico e poético do poeta de Itabira, se completam como calçados adequados para uma longa caminhada.