A reduzida obra de Murilo Rubião pode ser qualificada como extemporânea, se a analisamos no âmbito estrito da literatura brasileira. Contudo, quando observados sob um ângulo mais abrangente, o da produção literária latino-americana, os contos do escritor mineiro passam a dialogar com o realismo mágico de Borges e Cortázar.
Alguns preferem utilizar a expressão “realismo fantástico” para designar esse subgênero que foi renovado durante o famoso boom da literatura latino-americana de língua hispânica e alcançou uma importância medular na literatura mundial, mas o qualificativo “mágico” reflete melhor essa ficção aparentemente realista, na qual fantasia e realidade confundem-se a ponto de ser impossível, algumas vezes, discerni-las com precisão. Os elementos extraordinários ou maravilhosos encontram-se inseridos na normalidade, nunca obscurecidos pelo corriqueiro, mas despontando aqui e ali, de maneira a provocar guinadas no enredo, extasiar ou confundir o leitor, ou simplesmente inocular desconsolo, espanto, estranheza. Trata-se de uma literatura que privilegia o insólito, mas sem ferir a congruência interna das narrativas, criando, sob a aparência de absoluta naturalidade, uma verossimilhança cuja lógica está fundada no irreal, mas não necessariamente no fantasmagórico ou no terror.
Em sua tentativa de rastrear as origens do realismo mágico, o filósofo mexicano Ramón Xirau, no ensaio Crisis del realismo (in América Latina en su literatura, Siglo Veintiuno Editores/Unesco), procura “os diversos sintomas e diversos caminhos de uma busca literária que não se conforma com um realismo relativo aos fatos”, e os encontra nas primeiras narrativas da literatura espanhola, como no Cantar del Mío Cid: “[…] nesta literatura real e de vulto, às vezes exposta brutalmente, sem paliativos, está muitas vezes presente uma maneira de violentar a realidade e transcendê-la. El Cid é real e concreto; não esqueçamos que ganha sua última batalha, já herói mítico, depois de morto”.
Com certeza, não são essas as raízes do realismo mágico de Rubião, mas talvez elas remontem àquela primeira narrativa da descoberta, quando, sob o olhar de Pero Vaz de Caminha, os índios tornam-se “tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode ser mais!”, sem esquecer das descrições sobre o Éden enfim reencontrado, que conformam um relato nitidamente onírico, no qual já se anunciava, segundo a observação de Luciana Stegagno Picchio (História da literatura brasileira, Editora Nova Aguilar), “o mito sempre colimado […] do eldorado edênico, ‘visão do paraíso’, na feliz expressão de Sérgio Buarque de Holanda […]”.
Decepções irremediáveis
No entanto, se de fato forem essas as raízes do realismo mágico brasileiro, Murilo Rubião utiliza tal herança de maneira felizmente adversa, destruindo qualquer possibilidade de esperança, subvertendo o ideal do paraíso à crua realidade, na qual o tédio, a amargura, o amor irrealizado, o desespero irremediável e as buscas decepcionantes são intensificados pelo elemento de delírio que, ao invés de oferecer uma possibilidade de escape, massacra ainda mais os personagens aflitos, quase sempre medíocres, escravizados às suas familiazinhas pequeno-burguesas — ou tentando inutilmente fugir delas — e ao cotidiano mesquinho.
Em A casa do girassol vermelho, por exemplo, no livro de mesmo título, a narrativa começa sob um clima de alegria sensual. O êxtase físico marca as páginas iniciais, onde os ânimos são inflamados pelo sentimento de libertação. “[…] Naquela manhã quente, queimada por um sol violento, a Casa do Girassol Vermelho, com os seus imensos jardins, longe da cidade e do mundo, respirava uma alegria desvairada”, diz o narrador. Pouco a pouco, a sombra do velho Simeão, “porco imundo” e “puritano hipócrita”, pai adotivo de todos os personagens, falecido subitamente, retorna ao convívio dos filhos, pois suas agressões são inesquecíveis. Então, a atmosfera de entusiasmo se arrefece, não só por causa das lembranças opressivas, mas também pela morte de um dos irmãos, o desbocado Xixiu, que submerge nas águas da represa. A partir desse ponto, é como se o velho Simeão jamais tivesse morrido. “Olhavam-me mudos”, diz o narrador, “os rostos sem esperança. […] Tudo se quebrara.” Eles viviam “o último dia”, sem nada que pudesse amenizar a existência, contaminados pela morte e pelas dores que toda a euforia inicial não conseguira abrandar. Assim, sem qualquer explicação, os personagens se entregam a um fado de silencioso desespero, enquanto o narrador vê nascer, no ventre de uma das irmãs, “as primeiras pétalas de um minúsculo girassol vermelho”.
A mesma irrecuperabilidade encontra-se em O lodo (in O pirotécnico Zacarias). Os desencontros marcam, desde o começo, a relação entre Galateu e o psicanalista Pink da Silva e Glória, a quem o primeiro procura, motivado por “uma depressão ocasional”. O diagnóstico surge antes mesmo do término da primeira consulta: “[…] repreensivo, assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal”. Sem nada entender, o paciente se recusa a continuar o tratamento. Perseguido por Pink, que insiste em curá-lo, Galateu se debate em um delírio crescente e angustiante. Depois de ter um pesadelo — “uma faca penetrava-lhe a carne, escarafunchava os tecidos, à procura de um segredo. Sua irmã Epsila e o analista, debruçados sobre seu corpo, acompanhavam atentos os movimentos irregulares da lâmina” —, ele acorda e, ao se olhar no espelho, vê que, no lugar do mamilo esquerdo, “despontara uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates”. O pesadelo deixara sua marca. O espanto, contudo, é superado. Passados dois meses de aparente tranqüilidade, a intuição de que voltaria a ser perseguido pelo médico faz a ferida reabrir. E, realmente, tudo recomeça. Sob intensa pressão, Galateu não resiste e adoece. Inesperadamente, a irmã surge para cuidar dele, acompanhada do filho “retardado mental”. A partir desse ponto, tudo se precipita e o horror se instala, até chegarmos ao final, quando a cena do pesadelo se concretiza, com Pink e Epsila debruçando-se “sobre o corpo moribundo”.
Desde os primeiros parágrafos, uma culpa apenas presumível se introduz no relato, como se o animal libertado durante a primeira sessão de análise não pudesse mais ser contido. Finalmente, a culpa explode a carne, mas só depois se revela na confirmação do incesto entre os irmãos, levando a uma sucessão de acontecimentos que acabam por condenar Galateu. Quando não há mais espaço para qualquer atitude lúcida, quando tudo é invadido pela incoerência, resta apenas a ferida aberta ao sadismo dos algozes.
Essa narrativa atroz não pretende, no entanto, comunicar qualquer moral. Não se trata de uma parábola nos moldes bíblicos e tampouco de uma alegoria. Mais do que a pretensão de transmitir valores sob uma forma figurada, o conto objetiva criar um microcosmo terrível, sufocante, no qual o narrador fornece apenas os elementos essenciais para manter a lógica interna do enredo. A história fecha-se em si mesma de tal maneira, que o desvendamento de alguns supostos símbolos seria um exercício fútil.
Sarcasmo e zombaria
Mas Rubião tem momentos de bom humor. No conto O ex-mágico da Taberna Minhota (in O pirotécnico Zacarias), apesar do desconsolo que acompanha toda a narrativa, o mágico — suspenso em uma existência sem passado e desejando um fim impossível, enfastiado de viver — decide tornar-se um burocrata, pois “ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos”. Meses depois, quando volta a precisar de seus dotes de ilusionista, descobre que “a faculdade de fazer mágicas […] fora anulada pela burocracia”. Uma evidente crítica mordaz, na qual o serviço público aniquila inclusive o que é fabuloso ou incomum.
Em Ofélia, meu cachimbo e o mar, presente na mesma coletânea de O ex-mágico da Taberna Minhota, a irrisão reaparece. O narrador nos conduz por memórias tortuosas, marcadas de evidente melancolia, nascida, por sua vez, de uma história de insucessos que atestam a inevitável — e insuperável — distância entre os desejos e a realidade. Durante suas recordações, o narrador reserva à memória do pai dois comentários sarcásticos. O primeiro, de que a última viagem paterna por pouco não havia sido marítima, pois ele “morreu engasgado com uma espinha de peixe”. A seguir — dando seqüência ao relato dos eventos marítimos que distinguem a história da família, apesar de ter nascido em “um vilarejo de Minas, agoniado nas fraldas da Mantiqueira” —, surge a segunda revelação, uma importante referência à higiene do genitor: o pai jamais externara “o desejo de ser navegador, nem tampouco abusou dos banhos”. Ao final, vencida uma série de contradições, tudo se revela falso, incluindo a companheira que o escuta, sua adorável Ofélia, e o leitor percebe, penhorado, que caiu em uma esparrela.
O mesmo tipo de escárnio é encontrado em Memórias do contabilista Pedro Inácio (in A casa do girassol vermelho), a começar por uma das epígrafes, retirada de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. A um passo do final da narrativa, o contabilista descobre que, além de todas as suas memórias serem infundadas, ele é filho de uma prostituta. O que abala seu ânimo, entretanto, é pensar em todos os gastos que teve nos estudos genealógicos sobre sua falsa família e, igualmente grave, o fato de que jamais saberá a origem de sua calvície. Mais uma vez, o narrador/personagem encontra-se suspenso em uma situação dúbia e inexplicável, da qual ele se salva, neste caso, graças à sua ilimitada e incontrolável fixação nos cálculos das despesas e dos ganhos que se escondem na realidade. O insólito, distante do sobrenatural, transmuta-se em fatos rotineiros, plenos de banalidade.
Narrador onisciente
O ex-mágico da Taberna Minhota, Ofélia, meu cachimbo e o mar e Memórias do contabilista Pedro Inácio fazem parte de um conjunto formado por doze contos narrados em primeira pessoa, dentre os 22 que compõem os dois volumes lançados até agora pela Companhia das Letras. Depois dos temas extraordinários, esta é a característica mais expressiva de Rubião. Trata-se de um narrador que se dirige aos leitores às vezes com intimidade, oferecendo descrições eivadas de suposta sabedoria, anunciada pelas epígrafes da Bíblia que abrem todos os contos, mas que acaba sempre por se dissipar, substituída pelo desvario ou pelo erro.
A fórmula se repete tanto, que chega a contrariar. Assim, em um primeiro momento, o tom confessional surge como uma desagradável fragilidade, a chamar a atenção do leitor, insistentemente, para o ato de narrar, como se desejasse lembrar-nos que o texto é apenas ficção. Mais tarde, em uma segunda leitura, ao reencontrarmos o narrador que não só testemunha, mas protagoniza vários relatos, percebemos uma verdade: esse foco narrativo, necessariamente limitado, é a ferramenta justa, em muitos casos, à construção do universo mágico do autor, no qual o realismo comum se desintegra sob a autoridade onisciente da voz que tudo vê e tudo sabe.
Murilo Rubião nos deixou apenas 33 histórias, reescritas incansavelmente. A figura desse funcionário público, com seu bigode bem aparado e sua calva, limando anos seguidos as frases que dão vida ao seu mundo fantasioso, é também ela uma personagem mágica, pois esconde dentro de si o bufão e o burocrata entediado, o confidente de um coelhinho chamado Teleco e Godofredo, caminhando em círculos, de uma mulher a outra, somente para reencontrar a mesma figura, a mesma insatisfação. Ou um morto-vivo como o pirotécnico Zacarias, a perguntar-se, sem encontrar resposta, “que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante?”.