1.
Tzvetan Todorov, na sua Introdução à literatura fantástica, de 1970, divide esse gênero em dois tipos: a literatura fantástica clássica e a moderna. Dos dez capítulos do livro, nove são dedicados à forma clássica e seus arredores: a de Hoffmann, Nerval, L’Isle-Adam, Mérimée, Maupassant, Poe, Gogol, Henry James e outros. Apenas o décimo e último capítulo é dedicado à forma moderna e seus entornos, tendo como paradigma solitário a obra de Kafka. A de Maurice Blanchot também é citada, mas en passant. Pena que autores tão conhecidos de todos nós, como Borges, Cortázar, Rulfo e García Márquez, não sejam mencionados, talvez porque na concepção do ensaísta esses autores não pertençam à literatura fantástica (calma, não se assuste, respire fundo e continue lendo). Segundo Todorov, a definição dos dois gêneros é obrigatoriamente diferente, pois na passagem do século 19 para o 20 a literatura fantástica sofreu uma radical mudança de rota.
Nunca perdendo de vista o estudo do ensaísta francês de origem búlgara, começarei com o fantástico clássico. O elemento característico desse gênero é a ambigüidade. Sem ela, a obra deixa de ser fantástica e passa a pertencer a outro gênero: ou à literatura estranha ou à literatura maravilhosa. O fantástico pertence exclusivamente à prosa de ficção e fundamenta-se essencialmente na hesitação do leitor quanto à real natureza dos fabulosos acontecimentos narrados no conto, na novela ou no romance. Outro requisito básico: para germinar, o fantástico só encontra terreno fértil na prosa que não foi contaminada pela poesia, ou seja, na prosa realista, ou seja, na prosa cuja maior pretensão é a de fixar os dados concretos e objetivos da realidade. A escrita automática, o fluxo de consciência, o discurso polifônico, os jogos de palavras, as assonâncias e as aliterações, tudo isso espanta o fantástico.
À extrema esquerda do fantástico está o estranho, à extrema direita, o maravilhoso. Se por alguma razão a hesitação desaparecer, dependendo da maneira como isso se der, a narrativa cairá ou para a esquerda ou para a direita.
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2.
Exemplo de história fantástica clássica: Fred e Diana, conceituados neurocirurgiões brasileiros recém-aposentados, compram um antigo palacete nos arredores de Lisboa e mudam-se para lá, em busca do dinamismo e do glamour do Velho Mundo. Fred é do tipo cético e pragmático. Diana, apesar do rigor científico característico da profissão, acredita na imortalidade da alma e na vida após a morte. Ela, dois anos antes, sofrera um aborto espontâneo (o ultra-som revelara que era uma menina) e até o momento só com muita dificuldade tem conseguido lidar com essa triste experiência. Fora isso, tudo vai bem na nova residência. Fred e Diana fazem novas amizades e logo passam a freqüentar a alta sociedade lisboeta. As festas e os jantares se sucedem freneticamente. A vida não poderia ser melhor, até o dia, ou melhor, até a madrugada em que estranhas manifestações começam a abalar a rotina do casal. No início Diana começa a sofrer de amnésia, de súbitos e freqüentes brancos durante os quais não tem a menor idéia de quem é ou de onde está. Ela é encontrada pelo marido ou pelos empregados zanzando pelos mais diferentes pontos da casa e da propriedade. Então, da mesma maneira como vieram, esses surtos de amnésia desaparecem para sempre.
Mas os fatos desagradáveis não param por aí. Pouco tempo depois Diana acorda no meio da noite, ao escutar um chamado de criança que parece vir do quarto ao lado. Ela levanta da cama e vai até lá. Porém, a cada passo que ela dá, o chamado também parece se deslocar. Já não vem mais do quarto, parece vir da sala, depois da cozinha, depois do pomar. Até que cessa. Na manhã seguinte Diana não comenta nada com Fred. Ela atribui essa ilusão auditiva ao excesso de atividade social e a certos fenômenos atmosféricos, principalmente ao vento, que em noites muito quentes faz as velhas paredes do palacete gemer. A vida volta ao normal e Diana acaba esquecendo esse incidente. Até que semanas depois, novamente de madrugada, ela torna a acordar com o mesmo sussurro choroso de criança. Ao abrir a porta do quarto, Diana dá de cara com uma luz azulada no corredor, flutuando a meio metro do tapete marroquino. A mulher está apavorada, mesmo assim não consegue fugir ou gritar. A luz, que devagar vai adquirindo os contornos e o volume de uma menina de dez anos, é sedutora demais. Diana caminha devagar na sua direção. A menina quer que ela a siga, indicando a parede no fundo do corredor. Nesse momento Fred aparece na porta do quarto e, segurando o braço da esposa, quebra o encanto que a aprisionava. Diana, aparvalhada, antes de cair no choro ainda tem tempo de ver a menina fugir por uma porta fantasmagórica aberta na parede do fundo do corredor.
A partir daí os fatos vão se sucedendo num ritmo vertiginoso. A menina continua aparecendo para Diana, que é a única a vê-la. Fred, preocupado com a saúde mental da mulher, atribui essas alucinações a surtos de esquizofrenia, diagnóstico rapidamente confirmado pelos médicos locais. Certa tarde Diana ouve de sua cozinheira o assombroso relato da menina assassinada pela mãe enlouquecida (o marido a abandonara para ir viver com outra mulher), que em seguida se suicidou. Onde isso aconteceu? Aí mesmo, num dos quartos do palacete. O velho motorista do casal, por sua vez, revela que há um quarto oculto na residência, provavelmente no andar de cima. Um quarto cuja porta, antes de ser lacrada, ficava exatamente na parede do fundo do corredor. A mesma parede que a menina costuma atravessar. Diana manda quebrar a parede e a informação se confirma: havia mesmo um quarto oculto aí. Porém, exceto pelas bonecas e pelos vestidos de menina guardados em antigos armários e baús, ele está totalmente vazio. Fred contrata um investigador particular para resolver o caso. É possível que alguém, por razões ainda desconhecidas, esteja brincando com o casal. Diana, a cada dia que passa, vai ficando mais confusa e desesperada. A menina morta continua aparecendo para ela, mas, dessa vez, a menina a convida a sair de casa e ir até o pântano que há depois do pomar. As peripécias vão se sucedendo. O investigador descobre que alguém da alta sociedade está interessado no palacete. Não sabe quem, possivelmente a mesma pessoa que no passado tentou, sem sucesso, comprar o lugar. Mas por quê?
Há boatos de que um pequeno porta-jóias recheado de valiosos diamantes está escondido em algum lugar da propriedade. A narrativa se estende por mais cem páginas, ou até mais, sempre nesse pingue-pongue entre o sobrenatural, a loucura e o crime. O investigador é encontrado morto próximo ao pântano. A polícia prende o suposto assassino: Mefisto de Almeida, chefe da máfia lisboeta, que confessa ter contratado o serviço de dois ex-mágicos do Cirque du Soleil para, a partir de uma tragédia antiga e verdadeira — o assassinato da menina —, criarem a ilusão de que havia um espírito atormentado assombrando o palacete. Os mágicos são presos e explicam tintim por tintim como fizeram para iludir Diana, e apenas ela. Caso resolvido e os bandidos na prisão, o casal já pode dormir em paz. Até a noite em que a menina morta aparece outra vez — esquizofrenia ou fantasmagoria? — para mostrar a Diana onde está escondido o porta-jóias cheio de diamantes. Seria outro truque dos mágicos que, fazendo uso de sua arte, haviam acabado de escapar da prisão? Seria mesmo o espírito da menina assassinada? Ou teria sido a própria Diana quem, num de seus surtos de amnésia, tempos atrás encontrara o porta-jóias e o escondera novamente, aí mesmo onde o encontrou pela segunda vez? O romance termina assim, com um belo ponto de interrogação estampado na testa do narrador e do leitor. Fim.
3.
Aí está o fantástico clássico: entre o mundo real e o mundo sobrenatural. Ele se fundamenta na hesitação do narrador e do leitor, que não sabem, nem têm como saber, qual seria a verdadeira explicação dos acontecimentos que vão passando diante de seus olhos. Quando as evidências parecem apontar para determinada direção — o plano de uma mente criminosa ou a loucura do protagonista ou o mundo sobrenatural — novos acontecimentos vêm mudar o rumo da história e confundir o narrador e o leitor. É o que acontece, por exemplo, no romance A volta do parafuso, de Henry James, no qual até mesmo no desenlace o discurso do narrador não permite que o leitor saiba se os fantasmas existem mesmo ou se tudo não passa de alucinações da protagonista. Aí a ambigüidade jamais desaparece. Talvez por isso o fantástico clássico tenha tido vida tão curta, não conseguindo chegar com todo o seu vigor ao século 20. Mesmo fora da literatura são raros os exemplos, no teatro e no cinema, desse gênero tão específico. O que mais se encontra por aí são os vizinhos do fantástico: o estranho e o maravilhoso.
Voltemos ao drama de Diana, apresentado como enredo exemplar. A tendência corrente é a de, no final da narrativa, o autor resolver a crise acabando com a hesitação e a ambigüidade. Depois de capítulos e capítulos de dúvidas, nas últimas páginas o autor decide explicar os fenômenos que foram atravessando o caminho de todos. Essa explicação pode ser racional: tudo não passou de elaboradíssimos truques de mágica ou de uma sucessão de alucinações da protagonista. Nesse caso estamos no terreno do estranho, em que as leis da natureza continuam intactas. O conto A queda da casa de Usher, de Poe, e o romance O cão dos Baskervilles, de Conan Doyle, são bons exemplos desse gênero. Por outro lado essa explicação pode ser sobrenatural: espíritos e maldições de fato estavam assombrando o palacete e Diana. Nesse caso estamos no território do maravilhoso, em que vigoram novas leis da natureza, leis até então ignoradas pela ciência. Os relatos de assombração e os filmes como O sexto sentido e Os outros se encaixam nesse gênero.
Mas, como está ilustrado no quadro acima, nem só do estranho, do fantástico e do maravilhoso puros vivem os autores e os leitores. Há outros matizes que precisam ser levados em consideração. Todorov atribui um nome composto à narrativa híbrida, essa mesma que começa cheia de hesitação e termina no estranho. Dado o início ambíguo e o arremate racionalista, essa narrativa é considera por ele como sendo do tipo fantástico-estranho. Já a que começa cheia de hesitação e termina no maravilhoso é, para o ensaísta, do tipo fantástico-maravilhoso. Nos dois casos o efeito do fantástico se produz somente durante parte do enredo.
4.
A partir de tudo o que ficou dito é difícil aceitar que continue sendo chamada de fantástica boa parte da literatura produzida no século 20. Refiro-me à literatura de Kafka, Borges, Bioy Casares, Cortázar, Rulfo, Becket (os romances), Dinno Buzzati, García Márquez, Murilo Rubião, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles (certos contos), Campos de Carvalho, Victor Giudice e tantos outros. Afinal esses autores não lidaram com a hesitação entre o real e o sobrenatural, mas com o imaginário, o fantasioso, o mítico e o mágico. Já que a obra desse contingente não se encaixa na definição acima apresentada, por que não deslocá-la rapidamente para a categoria do maravilhoso, e ponto final? A resposta é simples: porque a própria categoria de maravilhoso sofreu algumas modificações. Pequenas, é certo, mas nem por isso sem importância.
No último capítulo da Introdução à literatura fantástica, Todorov convoca Freud e Sartre para redefinir o conceito de fantástico e o de maravilhoso, sendo que o de estranho perderá autonomia e retornará misturado aos dois primeiros. Para Freud, muitos dos temas até então comuns à literatura fantástica desapareceram com a chegada da psicanálise, pois o desejo sexual não precisa mais travestir-se de vampiro, demônio ou assombração para se manifestar ficcionalmente sem correr o risco de ir parar na fogueira da Inquisição. Os demônios e a má consciência do positivista século 19 precisavam ser exorcizados de alguma forma, e a literatura fantástica era essa forma. Porém agora temas fortes e polêmicos, como a necrofilia ou o incesto, não necessitam mais se ocultar sob o manto da bruxaria e do sobrenatural, como vinha acontecendo durante séculos. Esses temas já podem ser tratados livremente, sem o auxílio do disfarce e dos símbolos.
Por sua vez, Sartre, no ensaio Aminadab, levando em conta apenas a arte e a literatura modernas, também sugere que a definição que dá conta do fantástico clássico, perfeita para caracterizar o fantástico do século 19, já não cai bem em boa parte da literatura e da arte do mais fantástico dos séculos, o 20. Para Sartre, no fantástico contemporâneo a questão da ambigüidade e da hesitação não é mais relevante. A partir de agora o que passa a valer é certa representação social do mundo: apenas a normalidade deve ser contrariada, não as leis naturais. Além disso, agora apenas o ser humano e as criaturas naturais devem ser focalizados, ou seja, os fenômenos sobrenaturais não devem mais aparecer. O homem coisificado, de que também fala Camus n’O mito de Sísifo, o homem-marionete, o homem-fantoche cuja rotineira existência se assemelha a uma prisão sem paredes ou grades, esse é o grande protagonista do fantástico contemporâneo. Aqui o Estado totalitário e a burocracia, ao reduzirem as relações humanas à mera troca de mensagens cujo sentido inicial já se perdeu, instauram o absurdo moderno, muito mais inquietante do que a hesitação e a dúvida. No fantástico contemporâneo é justamente a existência rotineira que, contrariando-se — como se tivesse vontade própria —, se volta contra o protagonista. O espantoso e o sinistro estão agora no corriqueiro e no familiar, afirmou Freud no ensaio O estranho. Em outras palavras, o estranho se caracteriza justamente por algo que era familiar e se tornou súbita e inexplicavelmente… estranho e assustador. Kafka é o grande nome ligado a esse gênero, e O processo e O castelo, as grandes obras. No pólo oposto, o maravilhoso passa a ser toda narrativa em que vigoram as manifestações mágicas do mundo, sendo García Márquez seu autor mais constante e fiel, e Cem anos de solidão, a obra mais incensada.
Dois mundos, dois modos de representar nosso mundo. De um lado vigoram a sombra, o pesadelo, a claustrofobia, a opressão, a maldição, a angústia, o inferno, a multidão, a relação perversa entre o proletariado e a aristocracia. Do outro imperam a luz, o sonho, a excitação, a liberdade, a bendição, a epifania, o paraíso, o indivíduo, a utopia social. O grotesco está presente dos dois lados, mas de maneiras diferentes. No fantástico contemporâneo o grotesco aparece com sinal negativo, certamente por ser herdeiro do grotesco romântico de que fala Bakhtin na introdução de seu estudo sobre Rabelais. No maravilhoso contemporâneo, ele aparece com sinal positivo, e é a manifestação mais próxima do extinto realismo grotesco, festivo e utópico, da cultura popular da Idade Média e do Renascimento. Por meio do grotesco, as personagens, o narrador, o escritor e o leitor pressentem que para além da ordem visível há a invisível, oculta, simétrica, ora torturante, ora orgástica.
5.
Justiça seja feita. A introdução da literatura fantástica contemporânea em nossa gigantesca província se deveu não a um, mas a três autores: Rosário Fusco, Murilo Rubião e José J. Veiga.
O romance O agressor, de Fusco, publicado em 1943, é a primeira manifestação bem realizada no Brasil de narrativa fantástica contemporânea. Seu protagonista, David, é um sujeito metódico e apagado, cuja vida não valeria a pena ser acompanhada por literatura alguma. Minucioso como só os medíocres conseguem ser, David gasta seu tempo indo da pensão onde mora sozinho para a chapelaria onde trabalha, da chapelaria para a pensão, e só. Porém, a todo momento coisas estranhas acontecem: cartas e telefonemas insólitos, cenas calientes numa das janelas do prédio vizinho, agressões sem motivo aparente por parte de desconhecidos, sinais dúbios que induzem em David a idéia fixa de que Franz, seu patrão, deseja assassiná-lo, etc. Mas acontecem de tal maneira que nunca se tem certeza — nem David, nem o leitor — se de fato aconteceram, ou se foram só um mal-entendido, mera ilusão de óptica. Tudo porque quem conduz a narrativa — um narrador tão impessoal e burocrático quanto David — descreve os fatos como se escrevesse um relatório: com acuidade analítica e riqueza de detalhes que, em vez de expor a lógica dos eventos, acaba por revelar o grotesco do cotidiano. O paralelo com Kafka, mais do que evitado, tem de ser levado às últimas conseqüências por qualquer leitor que pretenda ler a sério este romance. Não se trata de epigonismo, mas de diálogo entre autores de talento. Quais os motivos que levaram o modernista Fusco a deglutir Kafka, como evitou cair na ingênua imitação e o ganho que a literatura brasileira teve com isso, eis um prato cheio para os estudiosos de Literatura Comparada. Nos romances que se seguiram ao de estréia, três deles fora de catálogo há décadas, Fusco afastou-se bastante da metódica loucura do prosador de Praga e passou a viver sua própria loucura. São eles O livro de João (1944), Carta à noiva (1954), Dia do Juízo (1961) e A.S.A. Associação dos Solitários Anônimos (edição póstuma, 2003).
Murilo Rubião lançou O ex-mágico em 1947. Também aqui foi apontada a presença de certos procedimentos tipicamente kafkianos, embora o contista mineiro alegasse na época não ter ainda conhecimento da obra do prosador tcheco. Todos os contos de Rubião relatam fatos absurdos ou espantosos, provocados geralmente pela estupidez humana ou pela truculência das autoridades instituídas, fatos que acabam produzindo a sensação de estranhamento no leitor. Em todas as narrativas de seus livros vigora, intocada, a visão desencantada da espécie humana. O absurdo nas histórias de Rubião é apenas a metáfora do absurdo da própria condição humana. Encontramos nos contos do livro de estréia e também nos demais (meu preferido é A casa do girassol vermelho, de 1978) o mundo denso e fantasmagórico em que espectros alienados vivem em agonia, mundo no qual o cidadão acaba condenado à esterilidade pela própria incapacidade de modificar esse beco sem saída pelo qual se arrasta.
José J. Veiga estreou com Os cavalinhos de Platiplanto, em 1959. Na obra do goiano, as cidades miúdas do centro-oeste brasileiro, a zona rural e o sertão são o território de ocorrências preocupantes e perigosas, geralmente desencadeadas pela chegada de burocratas de poucas palavras, funcionários de estranhas companhias que devagar vão mudando a rotina local. Os antigos cidadãos passam a viver prisioneiros em sua própria casa (A hora dos ruminantes, romance de 1966) ou a ter que obedecer a estúpidas e arbitrárias leis (Sombras de reis barbudos, romance de 1972). O conto Quando a Terra era redonda, um de meus prediletos, começa assim: “Difícil acreditar que esta parte da Terra já foi redonda, mas os indícios estão aí, e aumentam a cada dia”. E termina de maneira irreverente: “A não ser que — essa idéia me ocorre agora, por influência de Emílio Sorensen e Urbano Santiago — a Terra tem mesmo sido redonda desde os primórdios, e ninguém a está vendo chata. Todo mundo finge estar acreditando na chatice geral apenas por cansaço e também por preguiça de contestar o que foi decretado”.
Pesadelo, burocracia e angústia: as três palavras que caracterizam tão bem o universo de Kafka definem com igual perfeição a obra de Murilo Rubião, Rosário Fusco e José J. Veiga. Na prosa desses três autores o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo. Aberta a trilha em território tupiniquim, dezenas de outros bons cultivadores do fantástico seguiram por ela, que logo se tornou uma avenida. Entre eles Samuel Rawet (Os sete sonhos), Hermilo Borba Filho (O general está pintando), Victor Giudice (Necrológio), Uilcon Pereira (No coração dos boatos), Pedro Rodrigues Salgueiro (O peso do morto, Brincar com armas) e, de maneira esporádica, André Carneiro, Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Vilela, Nilto Maciel, Roberto Drummond, Moacyr Scliar, Rubens Figueiredo, Braulio Tavares, Chico Buarque, etc.
Como seria a história de Fred e Diana dentro dessa nova poética? Certamente não haveria o tipo de ambigüidade característico do fantástico clássico, tampouco haveria fantasmas atravessando paredes e revelando o esconderijo de porta-jóias perdidos. Mas o clima tenso e opressor continuaria presente, surgindo agora espontaneamente do convívio com certas pessoas frias e ameaçadoras: os empregados do palacete, a alta sociedade lisboeta, os estranhos que aos poucos vão invadindo a vida do casal brasileiro (mágicos, investigadores, burocratas etc.).
6.
Já o maravilhoso contemporâneo foi introduzido no Brasil por Mário de Andrade, com Macunaíma (1928), e posteriormente ampliado por Campos de Carvalho, com A lua vem da Ásia (1956), Lygia Fagundes Telles (em alguns contos de suas diversas coletâneas) e Aníbal Machado, com os Cadernos de João (1957). O que diferencia esse gênero do fantástico é a poderosa carga lírica que suas narrativas encerram, além, em inúmeros casos, de certa queda para o humor negro e para a prosa poética. A sensação de supra-realidade continua, mas agora ela não traz obrigatoriamente o pesadelo e a burocracia. Traz, em vez disso, o contato mágico e místico com a rica realidade interior do ser humano. O mundo não é mais apenas um local cruel e ameaçador, é agora também uma região surpreendente e milagrosa, como se o inferno e o paraíso estivessem fundidos. Se o fantástico lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os, o maravilhoso vai cuidar basicamente do indivíduo e da vida privada, flagrando nos movimentos da mente o gozo e a epifania. Razão pela qual o fluxo de consciência e o discurso xamânico, ambos contaminados pelo onírico e pela alucinação, serão as estratégias ficcionais mais usadas por parte dos autores na construção de narradores delirantes.
Não foi o que fizeram José Agrippino de Paula (PanAmérica, Lugar público), Paulo Leminski (Catatau, Agora é que são elas), Haroldo de Campos (Galáxias), Jamil Snege (O jardim a tempestade), André Sant’Anna (Amor, Sexo), Antônio Carlos Viana (O meio do mundo, Aberto está o inferno), Osman Lins (Nove novena, Avalovara), José Alcides Pinto (O dragão), Joca Reiners Terron (Não há nada lá, Hotel Hell), Paulo Sandrini (O estranho hábito de dormir em pé, Códice d’incríveis objetos & Histórias de lebensraum), Jorge Pieiro (Caos portátil), Altair Martins (Como se moesse ferro, sE cHOVEREM pÁSSAROS), Amílcar Bettega Barbosa (Deixe o quarto como está, Os lados do círculo), Paulo Scott (Ainda orangotangos) e eu mesmo?
Como seria a história de Fred e Diana dentro da poética do maravilhoso? Totalmente aberta para a fantasia irrestrita.