Sobre leitores e bibliotecas

Em tempos virtuais, qual o futuro das “ultrapassadas” bibliotecas, suas estantes, seus acervos e seus freqüentadores?
01/11/2006

Em uma sociedade que caminha, cada dia mais, para a utilização massiva dos meios virtuais, em todas as áreas e com ênfase na educação, que papel é reservado, no futuro, para as bibliotecas? Refiro-me à concepção usual do termo biblioteca, que, aliás, parece ter evoluído bastante em relação ao sentido original, etimológico, da palavra grega bibliotheke — lugar onde se depositam livros.

A imagem de um depósito de livros traz, de imediato, uma idéia de imobilidade que soa incompatível com o conceito atual de biblioteca, como espaço dinâmico de consulta, pesquisa e estudo. Mas devemos lembrar que é esta também uma das funções primordiais da biblioteca: a de armazenar títulos de forma que se possa reuni-los dentro de uma determinada ordem classificatória. Armazenar, diz o filósofo Jacques Derrida, é também acolher, recolher, juntar, consignar, coligir, colecionar, totalizar, eleger e ler reunindo.

Armazenar seria, portanto, o primeiro estágio de uma complexa estrutura que inclui desde a escolha do acervo e sua constante renovação até a disposição do objeto livro e dos periódicos num determinado espaço físico. E é neste conjunto que se deve pensar o papel de todos os atores (instituições, bibliotecários, atendentes, professores, alunos, leitores) envolvidos na questão apresentada no início deste artigo.

Em vez de nos lançarmos à tarefa inútil de prever a sobrevivência ou o desaparecimento do livro e das bibliotecas tradicionais, não virtuais, devemos pensar no perfil do leitor neste início do século 21, num país periférico, com um pé no mundo globalizado e outro (em sua maior parte, diga-se de passagem) num subdesenvolvimento atroz do qual passam longe os benefícios da sociedade tecnológica informatizada. O leitor é, talvez, o elemento-chave dessa reflexão, mesmo porque é para ele que existem, em última instância, os livros e as bibliotecas.

Visita importante
Leitor é, entretanto, um termo vago e impreciso — um conceito que tem sofrido transformações radicais ao longo dos últimos quatro séculos. Para se ter uma idéia mais clara, recomenda-se a leitura do ensaio O leitor incomum, do crítico literário francês George Steiner, erudito professor nas universidades de Cambridge e Genebra, autor de livros como Linguagem e silêncio, No castelo de Barba Azul e Nenhuma paixão desperdiçada, coletânea de ensaios publicada pela Record, em 2001, e da qual o referido ensaio faz parte.

Nele, Steiner relaciona algumas características do leitor do século 18, conforme o pintor francês Chardin o retrata no quadro Le philosophe lisant, completado no dia 4 de dezembro de 1734. Trata-se de um tema comum na época: o de um homem ou uma mulher lendo um livro aberto sobre uma mesa. “Entretanto”, diz Steiner, “se o analisarmos com relação à nossa época e nossos códigos afetivos, a maneira como o pintor se expressou revela, em todos os pormenores e na sua concepção mesma, uma revolução de valores”.

Que valores são estes, presentes no leitor incomum de Chardin e que são tão diversos dos que estão presentes no ato de ler em nossa sociedade tão mais “desenvolvida” e “avançada”? Ei-los, segundo Steiner, mas de forma resumida:

1. Em primeiro lugar, os trajes do leitor: formais, cerimoniosos, até. “O que realmente importa é a elegância enfática, a determinação de estar vestido assim naquele momento. O leitor não vai ao encontro do livro em trajes informais ou em desalinho”. Ele vai ao encontro do livro levando a cortesia em seu coração, como quem recebe uma visita importante.

2. A presença, no quadro, de uma ampulheta, traz para o ato da leitura a noção do tempo. Lembra a condição passageira do leitor (e do homem) em contraste com a longa sobrevivência dos (grandes) livros. “O tempo passa, mas o livro permanece. A vida do leitor mede-se em horas; a do livro, em milênios”, diz Steiner. Tal consciência da efemeridade do ser e da permanência das palavras, nas obras definitivas, aumenta, no leitor, o fascínio e a angústia diante da infinita quantidade de livros que jamais serão lidos por ele. “A areia que cai através do vidro fala-nos igualmente da natureza desafiadora do tempo, que é da palavra escrita, como também da brevidade do tempo disponível para lê-la”.

3. A presença de três discos de metal em frente ao livro, por sua vez, enfatiza também a brevidade do mundo material quando comparado com a longevidade das palavras.

4. Em seguida, destaca a pena que o leitor usa para escrever e que é emblemática da obrigação de resposta inerente ao ato da leitura. Leitura esta que, longe da concepção atual de entretenimento, configura-se como uma interação em níveis profundos da compreensão envolvida no ato de ler. “A boa leitura pressupõe resposta ao texto, implica a disposição de reagir a ele, atitude essa que contém dois elementos cruciais: a reação em si e a responsabilidade que isso representa”. Ler bem é, portanto, “estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total”.

5. E, por último, algo que envolve todos esses elementos presentes no quadro — o fólio, a ampulheta, os medalhões e a pena: o silêncio. Um silêncio que, na pintura, “se manifesta inequivocamente pela qualidade da luz, pela textura da composição”. A leitura é, para o leitor do século 18, representado na obra, um ato silencioso e solitário. “Trata-se de um silêncio vibrante de emoção e de uma solidão abarrotada de vida.”

Acesso fácil
O contraste deste leitor com o de hoje em dia reflete bem a noção benjaminiana de “perda da aura” da obra de arte — noção esta que se aplica perfeitamente ao livro, como objeto cultural. Longe de se constituir num objeto de culto, o livro, na sociedade de massa, popularizou-se, com todas as vantagens que isto proporciona, mas também com todos os riscos que isto acarreta. Se, por um lado, ele está mais acessível — grandes obras da literatura universal estão disponíveis, hoje, por exemplo, a qualquer pessoa nas bancas de revista —, poucos são, em termos proporcionais, aqueles que lhe dão o devido valor.

Nada mais irônico que o fato de que as gerações que dispõem, hoje, de um tesouro inimaginável ao seu alcance, seja a que menos se interesse por ele. A idéia de aproximar-se do livro cerimoniosamente, “com a cortesia no coração”, torna-se incompreensível, quando não risível.

É até difícil imaginar a existência de grandes volumes empoeirados, em bibliotecas misteriosas e labirínticas, ao gosto de Borges, quando se pode percorrer as ruas da cidade, entrar e sair de ônibus e metrôs, com uma obra-prima da literatura, no formato pocket book, metido no bolso do casaco. A revolução editorial causada pelas brochuras é, sem dúvida, co-responsável por essa disseminação da leitura, pela facilidade do acesso ao livro, mas há também grandes limitações para o leitor mais exigente.

Como diz Steiner: “Não se consegue em brochura — ou apenas raramente se consegue — a obra completa de um autor. Não se tem acesso, nessas edições populares, ao que é considerado, por juízos de valor do momento, a produção inferior de um autor. Entretanto, a leitura autêntica da obra de determinado escritor só é possível quando a conhecemos integralmente, quando podemos também nos debruçar com solicitude — ainda que impacientes e ranzinzas — sobre suas deficiências e assim construir nossa própria percepção da validade de sua obra”.

O leitor rápido, fragmentário, superficial e não “cortês” das brochuras e dos pocket books, incapaz muitas vezes de “reagir ao texto”, dando-lhe uma resposta crítica, parece ser sintomático de uma civilização na qual ocorre uma “atrofia da memória”, “característica principal da educação e da cultura a partir da metade do século 20”. Atrofia esta que se acentua com os processos de leitura online. Se o leitor de Chardin é aquele capaz de ler com atenção, de “fazer silêncio dentro do silêncio”, conforme definição de Steiner, como poderemos caracterizar o internauta? Ou caracterizar este seria, de certa forma, reforçar o estereótipo do jovem agitado, impaciente e imediatista, para o qual a leitura é apenas uma forma pragmática de obter informações para atingir um objetivo específico (fazer um trabalho, uma prova), inclusive copiando, sem pudor, trechos inteiros de obras sem dar-lhes o devido crédito?

É claro que entre o estereótipo do leitor profundo e solene, do século 18, e o do leitor superficial e informal, do século 21, existe uma variedade de tipos de leitores — mas não podemos deixar de reconhecer que são dois modelos emblemáticos e que correspondem a um certo espírito de época. Num tempo em que a experiência cede cada vez mais espaço para a informação fragmentada e descontextualizada, a imagem do internauta, saltando de um site para outro, no espaço virtual do hipertexto, se sobrepõe cada vez mais à dos amplos salões das bibliotecas com seus leitores solenes e silenciosos.

Revolução editorial
A discussão sobre o desaparecimento ou não da mídia livro parece ociosa. Aliás, como é de conhecimento geral, mas que parece ser freqüentemente esquecido pelas pessoas, a existência dos computadores e da internet tem facilitado a própria difusão das obras impressas: publicam-se mais livros hoje do que em qualquer outro momento da humanidade. Como bem lembra Jason Epstein, em O negócio do livro: passado, presente e futuro do mercado editorial (Record, 2002), as novas tecnologias permitem a uma máquina “copiar, digitalizar e armazenar para sempre qualquer texto criado, a fim de que outras máquinas possam buscar esse conteúdo e reproduzir cópias instantaneamente a pedido em qualquer parte do mundo, seja em forma eletrônica, baixada por uma taxa para um chamado e-book ou dispositivo similar, seja em forma impressa e encadernada por uns poucos dólares a cópia, indistinguível na aparência dos livros brochurados de fabricação convencional”.

E acrescenta, adiante: “Máquinas que podem imprimir e encadernar cópias unitárias de textos com o tempo serão itens domésticos comuns, como as máquinas de fax hoje em dia”. Em outras palavras: já existe tecnologia para que uma pessoa, numa remota localidade do mundo, no Himalaia ou na Amazônia, possa baixar, copiar e imprimir seus próprios livros, formando sua biblioteca particular, sem sair de casa.

Mais do que a sobrevivência ou não do livro, a questão mais premente hoje diz respeito à sobrevivência dos modelos de produção e comercialização, dos direitos autorais, dos grandes conglomerados editoriais, mistos de editoras e livrarias, que, tal como os da música, perdem cada dia mais o controle sobre seus títulos. Mas isto já é tema para um outro artigo. O que se pode dizer, no momento, é que há, de fato, uma revolução sem precedentes em curso — uma revolução jamais imaginada pelo hierático leitor incomum do quadro de Chardin.

Carlos Ribeiro

É escritor e jornalista, autor de Já vai Longe o Tempo das Baleias e O Chamado da Noite, entre outros.

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