Devo contar, mais uma vez, aquela história preferida de Lang?
Era uma das tantas que Lil contava, sentada nos sets de filmagens (as pernas belíssimas cruzadas, a célebre piteira e o falso ar de colegial de férias num terraço dos Alpes).
Lil adorava filmar, representar para as câmeras (o que ela fez durante mais de 60 anos) e contar, entre outros, aquele “caso do rapto” para seus contemporâneos, na fase muda, e para atores e técnicos com os quais seguiu trabalhando na Alemanha, em Hollywood e em quantos lugares mais, onde sentavam ao seu lado — alguns — sem saber quem havia sido a estrrela chamada Lil Dagover.
Lil Dagover! Esse nome já aparecia nos cartazes originais — hoje valendo ouro — de O gabinete do doutor Caligari. Depois, ela fez A morte cansada, em cujas locações teria acontecido o tal rapto, segundo o relato da atriz do filme de Fritz Lang:
“Uma vez, quando fazia A morte cansada, eu fui seqüestrada. Era nova e bonita. Meu papel era o de Junge, a recém-casada disposta a demonstrar seu amor pelo jovem esposo nos jardins suspensos de um oásis, nos mármores enlameados de Veneza e nos confins da China de papelão dos estúdios…”
Ela nunca terminava a história — e sempre a começava de maneira diferente, para o prazer do diretor do clássico de 1921, obra estimada pela crítica e pelo público do cinema silencioso (aquele mundo à parte até mesmo das outras platéias da época, comparecendo aos teatros, às salas de concerto e a auditórios de conferência, com a mais…)
Lil fez uma montanha de filmes. Aqueles melodramas de alpinismo de Leni Riefenstahl superaram, na época, a altura da fama das obras artisticamente mais empenhadas às quais Lil emprestou o seu talento — muito maior do que o de Leni, pelo menos como atriz. E Lil não entrou em confraternização com os nazistas, nem serviu à propaganda do partido, conforme aconteceu com a sua rival de A lâmpada azul, filme adorado por Hitler.
Apesar disso, Lil ficou na Alemanha, sofreu o grande desastre como qualquer cidadã dependente do mercado negro para comprar comida e meias, ao invés de partir com Lang, que lhe disse: “Você terá notícia, não sei quando, não sei onde, de Fritz Lang fazendo um filme chamado A moça branca da Índia, baseado naquele seu rapto bem nos nossos narizes. Mas não deixarei revelarem a fonte…”
Dagover foi a estrela de Der Müde Tod e outros sucessos do diretor que se aclimataria bem em Los Angeles, apátrida como Lil jamais se sentiria, longe das montanhas que Leni também não abandonou, as duas separadas pelas águas do rio claro e do rio turvo da biografia interrompida.
Lil parecia uma sílfide maquilada, uma aparição dos contos de Hoffmann para as lentes propícias aos sonhos e aos pesadelos enevoados que inspiravam os cineastas alemães mais típicos — dos quais Fritz Lang se afastava, um pouco, pelo tom intimista e a vocação internacional, o gosto por filmar tanto na tradição européia quanto no meio do folclore americano, recente, do film noir e do western, de modo que Lil caiu em relativa obscuridade — enquanto Leni ascendia ao Olimpo do nacional-socialismo. Talvez esperasse passar aquela idade de trevas artísticas, ouvindo falar remotamente de Lang, sim, e de outros refugiados como, muito antes, já emigrara a Dietrich muito esperta, muito expedita, muito…
“Sabem? Um dia, fui raptada durante as filmagens de A morte cansada…”
Ninguém esteve interessado naquelas histórias, nem na memória dos clássicos projetados em salas de cinematecas empoeiradas, pelos anos de repúdio da “arte degenerada” e mesmo depois — quando o susto havia produzido o repúdio de coisas tão germânicas como Der Müde Tod.
O filme começa com a chegada de um misterioso senhor — que é a Morte cansada de si mesma — à vila silesiana onde pretende comprar o terreno vizinho (não poderia ser diferente) de um cemitério. Fechado o negócio, a Odiada das Gentes faz construir um muro imenso, ao redor da sua nova “morada”, enquanto conta com descansar um pouco nesse retiro surpreendente, até se deparar com um jovem casal em lua-de-mel. E o noivo, em especial, desperta a atenção do Anjo Negro, que decide levá-lo a um “passeio” mais longe. Ao perceber que o seu marido desapareceu, a noiva…
Lil fazia a garota alemã desesperada, a moça antes feliz e, de repente, em prantos, incapazes de manchar a maquilagem pesada, no dia em que descobre o amado às portas do cemitério, onde uma procissão de almas se prepara para entrar, sem volta (o marido encontra-se entre elas, mas não pode vê-la, e a jovem parte em busca da ajuda de um alquimista local; este se comove com o sofrimento de Junge e lhe recorda a passagem da Bíblia na qual se afirma ser o amor “mais forte do que a morte”, etc., de maneira a influenciá-la a ir mais longe e a tentar pedir, por meio do suicídio, diretamente à própria Ceifadora…
Lil Dagover! Parece o nome inventado por um Karl May de melodramas de bazares, porém Lil existiu, foi uma atriz famosa, apareceu no seminal Gabinete do doutor Caligari e em mais de 50 filmes de diversos gêneros do cinema germânico e internacional, se querem saber a verdade rasteira dos fatos inventariados nas enciclopédias de cinema: “Ms. Dagover was a particular favorite of director Fritz Lang, who cast the actress in such exotic silent classics Die SpinnenSpiders (1919), Destiny (1921) and Dr. Mabuse der Spieler (1922). Lil made one American film, Warner Brother’s The Woman from Monte Carlo (1931) — yet another attempt by Hollywood moguls to create a ‘Greta Garbo’, even though Dagover preceded Garbo by nearly a decade. Returning to Germany, Dagover avoided overt political involvement during the Third Reich…”
Ela está sepultada num cemitério bávaro, debaixo de um plátano.
Lil esteve louca um tempo — breve período de insanidade, que a tornou “mais elegante”, isso ela garantia — e se apaixonou pelo médico responsável pelo seu caso, num hospital da Moldávia mais tarde convertida num protetorado triste, sob a suástica derramando-se das fachadas dos edifícios públicos ocupados.
Lil ficou doida antes da guerra (tudo aconteceu antes da guerra), e tinha saudade desse tempo de loucura tratada no frio, entre écharpes e chás, olhando para um vale à tirolesa, uma mão pousada sobre a manga do paletó de lã do seu psiquiatra tímido, talvez virgem (coisa que ela nunca pôde conferir, na noite de “amor clandestino” tantas vezes proposta ao rapaz recém-formado, segundo a futura “mulher de Monte Carlo” hollywoodiana). Não houve nada de mais sério entre eles, Lil afirmava com um pequeno tremor quase imperceptível na voz. Estava ainda enamorada daquele gênio solene desaparecido na fumaça do tempo, junto com a dos cigarros fortes que ela fumava com a piteira realmente adquirida num antiquário de Smirna? Quando a piteira foi furtada, Lil deixou de fumar (ou, talvez, não tivesse chegado aos noventa anos). Segundo o comerciante turco da cidade renascida das cinzas, a piteira teria pertencido a ninguém menos que a…
E a história do rapto?
O rapto terminara na Índia. Por isso, quando vi o filme que Lang fez (na verdade, seu título terminou sendo qualquer coisa sobre tigres, uma produção anacrônica, “feita no espírito de um passado enterrado” — acertou quem escreveu isso), tantos anos depois…
Quando vi essa produção crepuscular do autor de Metropolis, eu ia dizendo, pensei que a sua antiga atriz, diante da derradeira fantasia do mestre do expressionismo (se é que ela a viu), não poderia ter deixado de sorrir no escuro, a recordar o tempo de bicicletas nas estradas empoeiradas, dos esportistas que iriam sumir para sempre (alguns com um tiro na têmpora) e dos tenistas amadores cujas piadas ficaram pelo meio do caminho, truncadas pelos trens levando o gado humano para as câmaras de gás. “Só o trabalho enobrece”, etc.
Lil foi a verdadeira Garbo — era o que diziam, ao tempo do sucesso de Greta masculina como um hussardo. E Lang ia mais longe: Lil era “saudável como o sol quente”, jamais teria a crise maníaco-depressiva (era o que queria dizer) responsável pelo fim da carreira da estrela sueca, no auge do sucesso. E recontava as histórias da Dagover para quem quisesse ouvi-las, à beira da piscina dos hotéis dos festivais para os quais o lendário cineasta era insistentemente convidado no final da sua vida “longa demais” (conforme ele próprio reclamava, sob o tapa-olho de pirata).
Consta que Fritz se apaixonara por Maria Antonia Siegelinde Martha Lilitt Seubert (o nome — e que nome! — de batismo de Lil, na ilha de Java, onde nascera no seio de uma família holandesa, em 1887). Isso teria acontecido bem debaixo do olho de águia da álgida Thea von Harbou — que fingira não se importar (e também se apaixonar pela ex-Martha Dagover). O diretor foi responsável pela mudança desse “Martha“ original para o curto Lil um tanto improvável — e, verdade seja arriscada, não parece ter sido Fritz quem espalhou, mais tarde, nos festivais desocupados, aquelas historietas ligeiramente obscenas sobre as paixões homossexuais de quase todas as atrizes dos seus filmes (com destaque para “Marlena”, que aprenderia a odiá-lo).
A indiscreta, mais provavelmente, fora a sua “querida Thea”, esposa e colaboradora, e por motivos nem tão obscuros assim, embora a maledicência — então, já menos “charmosa” — jamais pudesse ser ampliada (de modo retrospectivamente crível) até o regaço juvenil da Dagover, pelo simples fato de que…
Fale sobre o rapto na Índia.
Não foi na Índia. Foi entre montanhas de cartão postal, como ela dizia, acrescentando que, narcotizada, fora levada de navio, em seguida, rumo ao estranhamento de florestas úmidas e cheias dos braços, enredados em lianas, de Shiva e outras deusas menores (aquelas que se dedicavam ao sexo sagrado e mais despudorado da terra)…
Lil Dagover contava essas histórias?
Com todos os detalhes, se é isso que você quer saber — e se são justamente os detalhes mais sórdidos que interessam ou emocionam, neste tempo de vulgaridade por sobre todas as coisas.
É, “Lil Dagover contava essas histórias”, e mais: afirmava ter encontrado a reencarnação do seu pai num monge cego que pedia esmolas de arroz entre os terraços desabados de um templo que era “pornografia pura” (o que o jovem asceta não podia ver, mas apenas tocar com as mãos iluminadas pela lua, à noite). O monge era filho de uma indiana e de um marinheiro português dos Açores, de modo que Lil guardara noções da língua de Camões na memória prodigiosa, capaz de descrever o rapaz mais de 50 anos depois: “moreno, nariz afilado como eram os narizes na família do meu pai, cabelo preto lustroso dos lusos de pés sujos, porém delicados”.
Claro que a mulher do Ocidente, uma jovem atriz de hábitos mais ou menos livres, vestindo um modelo de seda apertado e de unhas dos pés vivamente pintadas de vermelho (em contraste com a pele muito branca), viria a corromper o coração do mendigo-santo, do “marabu” — como os chamam na África do Norte — diante de uma deusa de carne, osso e cálculo. Ela tencionava levá-lo, tão logo pudesse, bem para o meio da Berlim decadente de antes da guerra (tudo aconteceu nesse momento suspenso), topando, entre as mesas dos cafés de rua, nos sapatos de outras mulheres que levantavam a perna para atropelar a lembrança da inocência passando, sem vê-las, por entre xícaras, taças e guardanapos borrados de batom…
Você não disse que Lil fora raptada? Então, como podia ela pensar em…
A atriz de nariz perfeito jurava em cruz sobre isso, e até enviara postais de ambientes iluminados com lâmpadas de papel meio chinesas (Lang dizia que haviam sido do cenário de A imperatriz da Mongólia), dando detalhes da viagem, coberta de jóias, para o fundo de selvas de elefantes, tigres e homens de bengala e cajados, debaixo de roupa de estopa e da lua também responsável pela menstruação das nativas, nas aldeias circundantes (tudo era uma descrição romântica dessas que inspiravam o prazer de imaginar um mundo perdido entre archotes e fogueiras, címbalos e moças de ventres pintados), alguma coisa que se acompanhava com fascinação pelos olhos ciganos da narradora daquelas peripécias encantando a turma liberal das letras, do teatro e do cinema — antes dos sujeitos de roupa parda aparecerem para vigiar, nos cafés e nas livrarias, principalmente as mulheres que levantavam a cabeça, soltando a cabeleira e dando, para trás, uma ou outra gargalhada igual àquela que dá a Dagover, sinistramente, no fracassado O amor da sombra — um filme autobiográfico que foi autêntico fiasco produzido por Lil, a partir de um conto (que ela encomendou a Klaus Mann) sobre o seu famoso amor do hospital psiquiátrico de Monróvia…
Moldávia.
Sim, da Moldávia — mas que importância tem isso, agora que a “verdadeira Garbo” está morta?
O filme ainda existe?
Claro que existe. Lil doou a última cópia para a cinemateca berlinense, um ano antes de falecer, em 1980, não faz tanto tempo assim, morta de saudade do passado, “dos tempos outros, do ouro da juventude” — como dizia FL (que ela não mais suportava, dando graças por viver ele em eternas viagens, com a mala sempre abarrotada de exemplares do seu livro de memórias). O melancólico, o aristocrático Lang, também sempre disposto a falar de “coisas incomunicáveis”, vividas pela geração nascida no quarto final da glória do Império Austro-Húngaro (isto é, coisas vividas de uma certa maneira “insubstituível”, como ele dizia, com a sua piteira sem mistério devidamente conservada), antes de ser enterrada a Europa que jazia no coração de cada um deles, a Europa de Fritz e Stefan, de Berlim e Salzburgo depois varridas da face do planeta pelo menos como atmosferas para sempre perdidas, reinos de teatro de sombras como as diversões da ilha natal da atriz de A morte cansada, hoje esquecida como se nunca houvesse existido a antiga Maria Antonia, a primitiva Martha Dagover, a Lil que Lang transformou em Junge vencendo a morte…