Trouxe isto para você.
Devia comer antes que esfrie. E não dê os ossos da galinha para a cachorra. Pode morrer. Os ossos quebrados podem perfurar o estômago e ela morrer.
Você devia abrir um pouco mais isto aqui, para ventilar e tirar esse cheiro de azedo e espantar as moscas um pouco. E não deixar tudo tão largado.
Aliás, você devia sair um pouco.
É! Te faria bem sair um pouco. Caminharem um pouco. Você e a Fifi. Não é mesmo, Fifi.
Você precisa levá-la para passear um pouco, tomar sol um pouco. Ela está meio apática! Ela está doente? Talvez seja essa comida estragada que você dá para ela. Você precisa cuidar um pouco melhor dela, senão nem ela vai querer saber de você daqui a pouco.
Vai morrer sozinho. Assim parado desse jeito.
Seu pai era assim.
Seu pai costumava ficar horas parado, pensando em coisas sem nenhuma importância. Enchia uma grande xícara de café preto, se sentava aí, ou lá fora, debaixo do pé de pêra, e ficava horas pensando em coisas sem importância. Sabe-se lá Deus o quê. Não falava nada. Não falava nada a ninguém do que estava pensando. Parecia um fantasma assim parado desse jeito. Às vezes ficava um dia inteiro sentado, somente pensando, aí nessa poltrona escura ou lá fora, debaixo do pé de pêra.
Não era sem motivo que minha mãe o achava meio vagabundo.
Há quanto tempo você não sai para passear um pouco? Vai acabar perdendo as pernas desse jeito. Conheci um homem que perdeu as pernas desse jeito. O filho daquela mulher chata que se achava melhor que os outros só porque falava inglês e tinha morado com o marido no exterior e tudo. Como era mesmo o nome dele? Tinham-lhe cortado as pernas. Também, ele não precisava. Diziam que passava o dia inteiro na frente de um computador, vendo sei lá o quê. Acho que era viciado naquilo. Só conversava se fosse pelo computador. Até sexo, todo mundo dizia, só fazia se fosse pelo computador. Imagine. Um dia foi se levantar e despencou no chão. As pernas eram muito finas e fracas e não agüentaram o peso do porco gordo. Os médicos disseram que atrofiaram. E que não tinha solução. Cortaram-lhe as pernas e colocaram no lugar duas coisas de ferro. Era horrível aquilo. Castigo de Deus, todo mundo comentava, por sua mãe ser tão metida com os outros e tudo. Mas ele nem ligava. Só precisava passar de vez em quando um oleozinho, ele dizia. Mas isso já faz tanto tempo. Nunca mais o vi. Como será que está? Deve ter se tornado um velho imenso, um leitão gordo. Mas os médicos diziam que as pernas de ferro eram muito mais resistentes, duráveis e saudáveis que as normais, que podia continuar engordando sem problemas. Deve então ter se estourado de tanto engordar na frente daquele computador, fazendo sabe-se lá o quê. Talvez até estivesse roubando ou vendendo fotos de menininhas de doze anos peladas em posições indecentes. Estas coisas acontecem muito. É só sobre o que falam os noticiários na televisão. Pena que não consiga lembrar o nome dele.
E você? Tem notícias da… Como era mesmo o nome dela? Querida aquela menina. Gostava tanto dela. Pena vocês não terem se casado. Podiam ter tido várias criancinhas e tudo. E era tão bonita. Parecia uma dessas atrizes de cinema que todo homem sonha em beijar um dia. Eu já fui assim, igual a ela um dia. Vários homens, de todos os tipos, correndo atrás de mim. Eu era linda. Alguns ficavam até meio bobos por minha causa. Teve um que até tentou se matar por minha causa um dia. Mas esse era meio retardado de nascença. Falaram que morreu no hospício, levando eletrochoques e tudo. Como era mesmo o nome dela? Foi ela que lhe deu essa cachorra, não é mesmo? A Fifi. Ao menos te faz companhia. E tão boazinha. É! Devia levá-la para passear, um pouco. Tomarem sol, um pouco. Aproveitar e passar na casa da sua tia Bernadete, aquela que me ajudou a cuidar de você quando pequeno. Tem perguntado por você. Realmente acho que devia visitá-la, um pouco. Não vai durar muito. Disse que está bem, mas acho que não vai durar muito. Também já passou da hora, não é mesmo? Nem andar consegue mais direito. Vive deitada enfiada debaixo daqueles cobertores reclamando do frio. Diz que a casa é muito fria e que lhe doem os ossos o frio. Devia levar-lhe rosas. Ela adora rosas. Só fui lá porque dizem que sempre convém fazer as pazes com quem está quase morrendo. Não acredito muito nessas bobagens, mas sei lá. Também não custa ser caridoso nessas horas, com quem está morrendo, não é mesmo? Mesmo com essas mulheres falsas pervertidas, que te olham felizes, te abraçam, te enchem de falsos beijos e, rindo, se dizem suas grandes amigas e tudo e quando menos se espera lhe traem pelas costas. Lhe tentam roubar o próprio marido e tudo. Dentro de sua própria casa e tudo. Sua própria tia. Sempre fui a mais bonita, mas ela era mais assanhada do que eu. Vivia olhando para todos os homens. E agora está lá morrendo largada. Eu é que não gostaria de morrer desse jeito. Sozinha e abandonada. Nos meus últimos dias, gostaria de passar horas segurando as mãos de todas as pessoas que eu gostasse muito. Que passaram a vida comigo. E nessas horas, rindo elas chorassem. Rindo disfarçando para que eu não chorasse, mas que elas, não se agüentando, meio rindo, chorassem. E quando eu morresse, sentissem a minha falta.
Mas para que pensar nisso? Ainda tenho tanto tempo, não é mesmo?
Acho que devia comer antes que esfrie.