Atenção, leitor. Está aberta a temporada das reedições. Mês passado tratei aqui no Rascunho de A idade da paixão, de Rubem Mauro Machado, agora é a vez de O desastronauta, de Flávio Moreira da Costa, que reaparece após 35 anos de seu lançamento.
Confesso não ser dos mais entusiasmados com essa onda de reedição que em alguns casos pode ser encarada como tentativa vã de ressuscitar determinadas obras. As duas citadas não preenchem os requisitos que as levariam ao repouso no além.
Comentando com um amigo, este me dizia que tais obras deviam ser examinadas com as lentes daquela época. Discordei, pois os meus exemplares não traziam como brinde a máquina do tempo e também nunca vi tal argumento guiando observações a respeito de Dom Quixote, Grande sertão: veredas, Retrato do artista quando jovem, O continente, para não citar uns outros vinte. Voltar no tempo pra quê? Pra dizer o que já foi dito? Sendo assim, a obra não resiste à voracidade das décadas e o sentido da sua reedição também já terá evaporado.
O desastronauta é um caso à parte. A ficha catalográfica afirma se tratar de um romance. Quem vai discutir com a dita cuja?
A inventividade do autor não merecia tanta limitação, pois Flávio Moreira mexe com requinte de mãos de chefe um caldeirão de gêneros onde o tempero mais forte é a inquietação do autor e de seu protagonista, Cláudio Crasso — “Construo minha geografia”.
Cláudio Crasso por estar em todos lugares ou em lugar nenhum. Da terra natal, Barro Vermelho, quase uma vila na fronteira do Brasil com Uruguai, à agitada vida no Rio de Janeiro, Cláudio se propõe a contar suas memórias. Ambicioso, sem papas na língua, declara: “Minha vida é a elaboração matemática da tomada definitiva do Poder. Nasci imperador do mundo, não me contento em ser síndico do meu edifício”.
“Ah, tudo é símbolo e analogia!”, já dizia Fernando Pessoa; e Flávio Moreira não foge à regra nesse seu trabalho. A noite, o silêncio, o medo dão panos pras mangas nesse quesito. É no silêncio que os medos costumam aflorar e o menino Cláudio descobre que “a infância também tem noite”. E se tem noite, se tem medo, se tem silêncio, conseqüentemente terá tristeza. A vida só atinge a transcendência quando somos capazes de nos salvar como homens. Flávio primeiro é homem, depois autor, e o homem socorreu-se no autor para contar-nos algumas coisas de sua vida, dos mais variados e criativos modos. “Contar a vida — se pergunta Unamuno em Como se faz uma novela — não é por caso um modo, e talvez o mais profundo de vivê-la?”
Não há enredo propriamente dito na narrativa nada linear de Flávio Moreira. Um antecedente bastante visível de O desastronauta é Esperando Godot, de Samuel Beckett, porém se neste o traço forte é a passividade dos personagens, as ausências; naquele o aspecto emblemático é justamente a inquietação de Cláudio Crasso que mora na esquina da Boulevard Saint Michek com Fifth Avenue e quando se cansa caminha até a Praça Sintagma ou Piazza dei Fiori. No entanto, algo os aproxima ainda mais, se Vladimir e Estragon são reféns da ausência, Cláudio Crasso paga o preço por flanar pelas ruas das cidades e vendo-se nas pessoas vê-se preso nelas.
Então há uma pitada de absurdo na narrativa de Flávio? No entender deste aprendiz, sim. Do contrário como justificar a ambição de Cláudio, um zé qualquer, em dominar o mundo?
À espera
Tanto em Esperando Godot como em O desastronauta, a presença dos diálogos é forte, muito mais na obra do irlandês, é óbvio, mas Cláudio Crasso e Vladimir e Estragon parecem buscar a concretude na tentativa de conseguir algo que lhes dê a ilusão de que existem. Necessitam que chegue Godot. E Godot não pode chegar — mas isso somente o autor sabe — porque então a espera não passaria de uma cópia de um momento da vida real e não da vida absurda. Cláudio necessita que o país adquira, defina uma identidade, não mais rural e ainda não totalmente urbana, para que ele possa transitar em busca do seu lugar no exato momento em que o autoritarismo pisoteia a liberdade e seu sonho maior — escrever um livro com a pureza de um blues — está ameaçado. Cláudio busca sua identidade, ele que já foi arqueólogo no Egito e guerrilheiro em Caracas, e diz que na verdade não passa de um sambista da Estação Primeira de Mangueira, mas também continua sendo James Joyce e Nelson Cavaquinho, Cristo e Trotski, Gengis Khan e Macunaíma. Cláudio Crasso é o caos. Um caos dos mais notáveis. Riquíssimo como personagem e sincero como espelho. Apesar disso, Cláudio ainda é um personagem puro que almeja colorir o cotidiano para então se estabelecer sem conflitos. O desconhecido, matéria dos astronautas, não lhe desperta o interesse. Mas enquanto tentava pintar com cores vivas o seu dia-a-dia, grossas nuvens cinza chumbo assombravam o país. A calamidade mostrava sua cara.
Ler O desastronauta é como ver o autor escrever a história. É isso mesmo, o livro de Flávio Moreira é completamente inusitado, misto de quebra-cabeças com jogo dos erros, abusa das referências literárias com a mesma facilidade com que reproduz nada econômicos textos de outros autores. Cartas, citações, poemas, fotos perfazem uma colagem estética e prática ao longo da narrativa cativante, séria e descontraída ao mesmo tempo.
Quem prefere histórias com começo, meio e fim não deve se aventurar pelos caminhos deste O desastronauta. Nele o que vigora é a descontinuidade, a fragmentação, é pop, é pós-moderno. Em muitos trechos, pode-se dizer que existe uma reescritura, prática pouco difundida por estas bandas que tem em Marici Passini outro grande nome, antecipou tendências, fez o que se propôs e ainda há o que fazer. Em meio a tamanha salada e inovações, não surpreende a presença de algumas gotas azedas de bobagens, destemperos formais que se não empanam a obra na sua totalidade também não permitem desconsiderá-los. Não podemos encerrar sem apontar a agudeza do sutil crítico social Flávio Moreira da Costa. Sua critica à sociedade não aponta para a tentativa de trocá-la por outra melhor. Dá a entender que se dará por satisfeito com a transformação e o aperfeiçoamento do homem, da condição humana. Reedição pra lá de justificada de um livro que trata do ser humano, esse confuso esconderijo de valores contraditórios onde se misturam medos e complexos, arrogâncias e desvarios e sua consciência não tem a claridade de um espelho para apontar-lhe o bem e o mal. Viram como não foi necessário utilizar a máquina do tempo para revermos o livro de Flávio?