A construção de um autor

"Travessia de verão" possui os elementos que marcariam toda a trajetória literária de Truman Capote
Truman Capote: capacidade de amarrar descrições a um mergulho na natureza dos personagens.
01/12/2006

“Não existe nada melhor para mudar de ares do que uma travessia durante o verão”, responde Lucy McNeill a um curioso repórter antes de embarcar com o marido para a Europa. É bem verdade que Lucy é uma personagem que não aparece tanto, mas a descrição psicológica que o autor lhe dá capta rapidamente a atenção dos leitores, sobretudo quando ela é colocada frente a frente com sua filha, a contundente Grady McNeill, que sempre que pode enfrenta a mãe quando esta deseja impor suas vontades…

O trecho acima corresponde a um microcosmo do que é apresentado pelo escritor Truman Capote em Travessia de verão, que agora é publicado no Brasil. Cabe dizer, também, que só recentemente este breve romance tornou-se conhecido por parte dos responsáveis e especialistas da obra de Capote. Conforme se lê no posfácio, tanto Gerald Clarke, o biógrafo do autor, como Alan Schwartz, advogado e trustee do romancista, apenas souberam da existência dos originais deste livro por acaso. É que o autor de Bonequinha de luxo aparentemente deixou este escrito num apartamento que abandonou logo após à roda da fortuna que se seguiu à publicação de A sangue frio, sua grande e última obra-prima. No fim de 2004, os originais foram colocados à venda num leilão.

A explicação é necessária, mas pode desvirtuar a atenção do leitor. Isso porque, ao contrário do que possa parecer, a obra do romancista norte-americano é importante não somente pelo ineditismo, mas, sobretudo, porque o texto desse Capote precoce já possui os elementos que marcariam toda sua trajetória como escritor e, melhor dizendo, artesão da palavra. Aqui, é preciso aludir ao repertório cinematográfico daqueles que assistiram ao filme Capote, estrelado por Philip Seymour Hoffman, vencedor do Oscar de melhor ator pela performance. Com efeito, o que se vê nas telas pode ser comprovado nas páginas dos livros assinados por Truman Capote, posto que, no filme, os espectadores percebem um autor obcecado pela criação literária, seja construindo imagens e metáforas, seja descrevendo o perfil psicológico dos personagens a partir de um invejável método de observação — detalhe que alguns professores de jornalismo insistem em repetir para os alunos como sendo prova de capacidade essencial de reportagem (uma bobagem completa, diga-se). Em síntese, os elementos que fariam de Capote um grande escritor já estão presentes nesse livro, a começar pela história.

Travessia de verão traz como personagem central a jovem Grady McNeill, uma garota rica cuja família possui um ideal de status que ela ignora quase que por completo. Quase porque ela sabe que tem privilégio de não pertencer à classe trabalhadora, mas isso não a impede de aproveitar as benesses de uma vida de sua classe social. Nesse contexto, o que faz de Grady uma personagem peculiar é o fato de ela nadar contra a corrente e não somente desafiar seus pais (em especial, afrontar sua mãe), como também quebrar as regras tácitas que não aprovam o namoro com um rapaz mais pobre, para ser mais específico: um guardador de carros. Clyde Manzer era o seu nome. A atração que Grady sentia por ele estava além do porte físico, obviamente assinalado por Capote, mas recaía, sobretudo, por sua presença de espírito, conforme se lê no trecho a seguir:

Gostava do jeito como ele andava, do jeito que suas pernas pareciam se demorar, cada passo preguiçosamente espaçado e estranhamente comprido: era o andar de um homem alto. Ele sempre usava uma calça cáqui de verão e uma camisa de flanela ou um suéter velho: era um tipo de roupa muito mais bonito e que lhe caía muito melhor do que o terno que ele tanto se orgulhava.

O relacionamento de Clyde e Grady não era estável, até porque suas personalidades intempestivas por natureza não condiziam com esse status. Mesmo assim, Grady não pensou duas vezes antes de deixar o rapaz morar com ela no apartamento dos pais enquanto estes estavam na Europa em férias. Trata-se, aqui, do início da travessia de verão da jovem Grady, que, a partir daí, conheceria um turbilhão de novas sensações junto do namorado: ciúmes, prazer, euforia, tristeza e abandono. Todas as sensações vividas com a alta dose de intensidade que, por sua vez, é transmitida ao leitor pelas precisas palavras de Truman Capote, autor capaz de amarrar descrições a um mergulho na natureza dos personagens, unindo as histórias como um fino alfaiate do texto. Nesse sentido, os detalhes da família de Clyde Manzer são narrados a partir de uma brecha sutilmente deixada pelo escritor. À primeira vista, pode parecer uma simples coincidência, algo que não é parte da estrutura do romance. No entanto, também o enredo de um romance, como se pode confirmar por este livro, está articulado com os intervalos, com as pausas, e com o retorno de idéias e fragmentos aparentemente soltos ao longo da narrativa, tornando, assim, o texto coeso a partir do desenvolvimento desses fragmentos e idéias.

Tal processo de retomada e desenvolvimento, numa outra perspectiva, mostra que o autor também escolhe as passagens que deseja realçar, em especial aquelas que podem referendar a tese remarcada do contraste social entre o casal Clyde e Grady. Entretanto, não há, aqui, um discurso ideológico, ou politicamente correto, como que para indicar que o sonho americano só existe para os mais abastados. Os contrastes são, sim, apresentados a partir das descrições e, principalmente, das reações aos gestos e às atitudes de cada um. É uma explicação mal dada, por exemplo, que desencadeia uma “cena” de Grady e faz com que Capote apresente ao leitor a triste história da irmã de Clyde, a problemática Anne. De certa forma, o autor dá uma volta para realçar a vida de uma personagem secundária; cumpre observar, todavia, que a compreensão do jeito um tanto taciturno de Clyde passa pelo entendimento da vida de sua família. Capote, anos mais tarde, usaria esse mesmo recurso para explicar a natureza dos assassinos da família Clutter em Holcomb. O estilo, afinal, é o homem.

De volta à narrativa, o verão de Clyde e Grady conta, ainda, com um terceiro elemento, o jovem Peter Bell, que, apesar da amizade e estima da rica família McNeill, não consegue atrair a atenção da garota. O desfecho que o autor dá para essa espécie de “triângulo amoroso” não é conflituoso, uma vez que acontece no âmbito da vontade particular de Grady, mas nem por isso deixa de ser contestadora. Num exercício de crítica aos costumes estabelecidos, talvez seja correto afirmar que Truman Capote quisesse provocar uma classe média conservadora com um romance improvável entre dois jovens de realidades sociais totalmente distintas, que, mesmo assim, se pareciam entre si e se completavam em sua paixão incontrolável e irresponsabilidade, características elementares no caráter do jovem daquela época e dos adolescentes de hoje.

Em Travessia de verão, Truman Capote delimitaria os detalhes que constituiriam sua obra, composta por outros romances, contos e perfis. Obviamente, como ressaltou Alan Schwartz no prefácio, não se trata de uma romance superior ao que o escritor publicaria no auge de sua carreira. Contudo, está longe de ser menor do ponto de vista literário. Justamente por trazer um relato inédito, o que se lê nesta história é a tentativa de construção de um autor. Mais do que uma personalidade singular, com maneirismos e afetação esnobe, deve-se ressaltar Capote por aquilo que, em certa medida, sempre o norteou: a vontade de ser um grande escritor. Nesse aspecto, o paralelo com o título do seu primeiro livro não poderia se ajustar de melhor forma: em seus primeiros anos, a travessia era de Truman Capote.

Travessia de Verão
Truman Capote
Trad.: Fernanda Abreu
Alfaguara
144 págs.
20 contos
de Truman Capote
Trad.: Vários
Companhia das Letras
280 págs
Truman Capote
Nasceu em Nova Orleans, em 1924, e morreu em 1984. Estreou na literatura aos 24 anos com Other Voices, Other Rooms. Além de A sangue frio, um clássico do chamado new jornalism, é autor de Bonequinha de luxo, Música para camaleões, entre outros.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho