Há aqueles que não aceitam as coisas como elas se apresentam. Outros não dizem amém, nunca. Tem mesmo. E não são poucos, todos sabemos, todos conhecemos algum. Tem aqueles que, uma vez tocados pela maldição da escrita, escrevem — e escrevem contra. Então, os escritos desses são paridos a partir da revolta, de um incontrolável impulso que precisa se fazer em gesto. Fernando Vallejo é um desses. E não é um qualquer. Vallejo é um colombiano, de 1942. Tornou-se escritor, roteirista e cineasta. Vive no México desde a década de 70. E não se conforma com o que se tornou a sua terra primeira. Por isso, escreveu este romance, A virgem dos sicários.
O narrador é um gramático idoso que retorna a Medellín, onde tenta sobreviver. Entre balas perdidas, trinta e cinco mil táxis, igrejas, tevês, ruídos e todo o tipo de violência, esse protagonista perambula pela capital mundial do ódio — “vanguarda do caos urbano que breve regerá toda a humanidade”. Namora. Tem atração por sicários — os jovens matadores de aluguel. Primeiro, Aléxis. Depois, o sicário que mataria Aléxis, Wílmar. O narrador parece seguir o lema: “Amar o próximo. Próximo…”. E, no ar, a música do acaso.
A simultaneidade de acontecimentos se irmana com uma fluida prosa que apresenta ao leitor diversos quadros de um labirinto urbano desordenado. O narrador, personagem central, também conversa com os leitores: interroga, responde, deixa lacunas. A revolta desse narrador, possível alter ego de Vallejo, se traduz, intensamente, em certeiras frases, que até soam como definitivas. O seu regresso à terra natal ganha tons de perplexidade em uma questão: “Mas por que a Colômbia me preocupa, se já não é minha, se é alheia?”. A decepção com o modus operandi da igreja e o seu símbolo maior, Jesus, vira feitio de afirmação: “Cristo é o grande introdutor da impunidade e da desordem neste mundo”. O governo não é, nem poderia ser, poupado: “Quem não está no governo não existe, e quem não existe não fala. Portanto, é calar a boca”. As vítimas sociais também não são economizadas: “Os pobres são assim: agradecem para poder continuar pedindo”. E nem as crianças escapam da metralhadora vallejiana: “Só os velhos podem ter o pleno direito de existir. As crianças têm primeiro de provar que o merecem: sobrevivendo”.
A virgem dos sicários dialoga com a realidade, meio protesto, meio retrato, 100% linguagem, 100% raiva, 100% indignação, 100% incapacidade de aceitar as coisas como elas se dão. Afinal, como diz o narrador: “Não inventei esta realidade, é ela que está me inventando”.
(Ainda: em 2003, Fernando Vallejo faturou o prêmio literário Rómulo Gallegos. Recebeu US$ 100 mil. Doou a quantia aos cachorros e gatos que vivem nas ruas de Caracas).