A estrada de lava (I)

O cinema egípcio não é somente o já clássico Abou Seif Salah (também escritor) ou o internacionalmente premiado Youssef Chahine
Cena de “Bedaya wa Nehaya” (1989)
01/12/2006

O cinema egípcio não é somente o já clássico Abou Seif Salah (também escritor) ou o internacionalmente premiado Youssef Chahine — se é que, aqui no Brasil de Lula, já se ouviu falar em Salah, realizador de Bedaya wa Nehaya, e no diretor de Seraa fi Mina.

Se eles são, por um lado, os dois mais aclamados cineastas do Egito, há outros talentos, contemporaneamente — cairotas e não-cairotas — trabalhando na capital superpovoada e sob os céus mais transparentes do interior, no Delta e na província mergulha no “sem-tempo” africano. Produtores, roteiristas, diretores, homens e mulheres (mais homens do que mulheres) trabalham afanosamente nesse cinema que não se exporta o bastante, é meio recôndito e recolhe desde as emanações do passado remoto aos conflitos do mundo islâmico, no Oriente onde o Ocidente ainda mete a sua colher de intruso, se não as armas e as tropas da “doutrina Bush” de invasões punitivas desastradas. Mas deixemos para lá a política insana, por um momento, ao menos, de refresco lítero-cinematográfico sob céus mais rosados, à volta das margens do Nilo e suas aves (uma das quais acaba de sujar o meu boné, na pequena praça em homenagem a De Lesseps — um lugarzinho na periferia da Gizeh que nem é mais “periferia” do Cairo, alongando-se como um pesadelo de quase dezesseis milhões de habitantes).

Estou longe de casa e ainda mais longe — aparentemente — do centro da terra deste jornal que permite que eu viaje e trate do cinema entranhado no coração da literatura, sentado aqui debaixo das fuças de bronze do engenheiro que morreu com palmeirais nos olhos, lembrando-se da tatuagem dançando no ventre de uma bailarina suada deste mesmo bairro onde crianças que não parecem tomar banho (um engano) improvisaram um pequeno campo de futebol. São pobres, alegres e ruidosas — e chutam a bola (já muito gasta) com vontade: ela chegou, neste momento, junto dos meus sapatos empoeirados do pó fino que se deposita, por toda parte, nas bordas do deserto, e eu a chuto de volta, enquanto Ommar Qutb se aproxima, com seu jeitão malandro.

Reparo nos sapatos do autor de Daimon. Também estão embaçados da poeira, aqui maior do que na capital imensa, enorme. É preciso sair da cidade de ônibus, para se entender o que vem a ser uma metrópole horizontalmente alargada até muito além da areia cinzenta — e não branca — do deserto egípcio. Eu saí, rumo à fronteira israelense, na madrugada fria sob o céu africano, pensando que o Cairo nunca ia acabar de sair da visão das janelas entreabertas, o frio chegando aos ossos mesmo através da camisa quente, debaixo do paletó grosso (que só por acaso eu trouxera na mala). Nunca me preparo o bastante para a frieza e o calor estrangeiros. Para o calor, até que eu vou mais ou menos preparado (sou nordestino, assim como Qutb é do Nordeste geral, digamos, deste país igual a si mesmo, no espaço e no tempo), mas com os graus — e degraus — da frieza eu nunca acerto, enquanto, enfatiotado, cumprimento o cineasta vestido esportivamente, no entardecer mais do que fresco para o repórter improvisado neste vale de ladrões — ainda em atividade.

É sobre o que ele me fala, inesperadamente: não de cinema, Rogério, mas das antiguidades ressequidas, dos linhos de múmias riscados de demótico e fragmentos de papiros hieráticos cuja venda, aos pedaços, “dispersa todo o sentido dos documentos” (já não muito certo, penso eu, mesmo nos rolos íntegros descobertos nos lugares secos e como que asfixiados pelo passado que entope este país de tempo e, demasia)…

Em tempo: não há mais tesouros incalculáveis para se prospectar nos sítios mapeados e escavados desde a época de Mariette sinceramente preocupado com o saque promovido pelo Ocidente, depois dos presentes dos Paxás: um templo inteiro para Turim, dois ou três sarcófagos para Boston, uma múmia para o Imperador-“cientista” do Brasil e outra (ainda mais bela) para a belíssima cantora de ópera de 1900, assustada com o esquife na sala. Fecha parênteses.

Cena de “Daimon” (1976)

Ommar, eu já disse, é o autor do estranho Daimon, um filme parecido com Limite, do nosso Mário Peixoto (mas apenas parecido — assim como Evo Morales apenas se parece com o finado trapalhão Zacarias). Daimon foi descrito como “uma obra radicalmente nova sobre a luz num corredor de tábuas envernizadas”. Quem viu o filme — e (importante) reviu — talvez considere minimalístico demais, digamos, como descrição.

“Um corredor pode ser o assunto de um longa-metragem?”, pergunto a Qutb — enquanto volto a devolver a pelota para os meninos, com ridícula inabilidade. Eles sorriem, Qutb sorri (“você deveria ser bom nisso”, diz ele, só depois eu entendo a piada, pois sou brasileiro, “ah”), sim, pode ser feito um filme sobre isso, sim, tudo pode ser mostrado no espelho invertido do cinema, “sucessor da literatura”. Completa: “Eu já fiz um filme sobre as paredes de um hospital vistas por um doente imobilizado: há manchas no teto e, nessas manchas, ele começa por ver imaginações proustianas, as lembranças dos outros”…

A bola remendada volta aos meus pés pela terceira vez, eu desligo o gravador e proponho entrarmos numa padaria que mantém uma esplanada sobre a água, atrás (a água das margens onde Qutb é o filho de um piloto de paquete de turismo e não uma celebridade: todo o mundo o cumprimenta — eu vi, depois — como se fosse um sapateiro remendão e não o ganhador do único Urso de Ouro até agora conquistado pelo cinema de persianas e escadas, mulheres tensas em trajes ocidentais e homens de túnicas e chinelos nos pés circundados da poeira onipresente na província onde os nomos perdem seus nomes impronunciáveis), a água escassa que “explica o Egito”, segundo a mudança — constante — de assuntos de Qutb.

“O meu filme mais novo é baseado num livro sobre uma mulher que não sai da cabeça de um homem.”

Também eu tenho uma mulher na cabeça. É uma turista, por acaso, e não a passante dominada — dominada por um mendigo — do filme que recorta mais do que a cabeça de um homem dominado por sua desconhecida.

A minha eu a vi pela manhã — talvez sueca, talvez finlandesa (seus calcanhares tinham aquela cor de ruge na base — a pele branca irrigada de vermelho do sangue a se denunciar como se fosse batom rosa —, o que me fez pensar em azulejos, peixes, esmaltes, tampões e luminárias feitas de…

Continua na edição de janeiro.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho