Make-up

Conto de Tiago Torres da Silva
Tiago Torres da Silva, autor de “Timbó — aventuras de um português no Brasil”
01/12/2006

Para Gal Costa, cuja interpretação lancinante em “De volta ao começo” de Gonzaguinha me sugeriu esta estória

Ele pegou no pincel e alisou as sobrancelhas. Tê-las-ias depilado com maior cuidado se tivesse tido tempo para o fazer. Da forma como tudo aconteceu teve de as arrancar um pouco atabalhoadamente e agora era preciso redesenhá-las em arco por cima das pálpebras coloridas de um azul intenso e fúnebre.

Trataria dos lábios mais tarde. Tinha sido necessário injectar um pouco de silicone no lábio superior para torná-lo mais carnudo e, apesar disso, ainda não resolvera se, ao desenhar a boca, não tentaria aumentá-la ligeiramente para fora dos lábios.

— A sua mulher morreu — era só o que ele ouvia dentro da cabeça de longos caracóis louros.

Pôs-se à escuta. Teve de parar com todos os movimentos de maquilhagem. Pousou o lápis dos olhos. Fechou o tubo do batôn. Pôs-se à escuta demoradamente. Do quarto ao lado não vinha nenhum som. Sorriu. O riso abriu-lhe grandes fendas nas montanhas do rosto. Faltava-lhe pôr pancake para disfarçar os poucos pêlos que em tempos uma gilette tratava de rapar.

— A sua mulher morreu — dizia o médico, como quem diz que um dente do siso se tinha partido.

— Elisa! — balbuciou ele enquanto ajeitava algumas madeixas prateadas que teimavam em não se enlaçar ao resto do cabelo — Elisa!

Havia alguns dias — meu Deus!, parecia ontem — Elisa apoiara-se à ombreira da porta branca que agora, entreaberta, não deixava passar nenhum som, e sorrira feliz. Sentiu estremecer a porta. Elisa iria entrar sorridente e cansada:

— Acho que chegou a hora!

— Não! Não! Não. Não era nada disso. A porta não mais se abriria. Elisa não mais se encostaria à ombreira da porta. Não mais sorriria nem estaria cansada. A sua mulher morreu! A sua mulher morreu!

Não havia batôn da cor que desejava. Percorreu com o dedo indicador a gama de cores que havia. A unha comprida e vermelha não tinha aderido bem à unha roída e masculina do seu indicador. Era preciso colá-la outra vez. Mas antes o batôn. Não demasiado escuro para não adensar a profundeza azul dos olhos. Não demasiado alegre por causa da ombreira da porta. Optou por um Vermelho-Gal Costa. Precisava de alguma vivacidade nos lábios para se sentir vivo. Encostou o batôn ao lábio superior e estacou. Começou a trautear uma canção. Talvez fosse o batôn que cantasse por ele:

O menino com o brilho do sol na menina dos olhos sorri e estende a mão entregando o seu coração e eu entrego o meu coração …

Pareceu-lhe ter ouvido um pequeno ruído que perturbava o silêncio necessário à maquilhagem. Abriu a porta para o quarto do lado. Espreitou. Estava tudo calmo. Não naquela desorganização de rímel, pó-de-arroz e corrector de olheiras que lhe entornava a cara para dentro do espelho.

— A sua mulher morreu — dizia a enfermeira de bata imaculadamente manchada de sangue com um ligeiro sorriso na cara que parecia dizer:

— Também não é o fim do mundo. Os esfomeados da Índia e os sobreviventes dos terramotos na Turquia estão em muito pior estado do que o senhor.

O senhor… A mão tremeu-lhe um pouco. O fino traço que lhe delineava os olhos em forma de amêndoa alargou subitamente ao seu tremor.

— Merda!

Era preciso agora apagá-lo e ele não queria voltar a ver-se sem lápis. Apagou quase todas as luzes para, na penumbra, evitar um contacto muito íntimo com a sua cara masculina. Pegou num círculo de algodão, deitou-lhe uma gota de desmaquilhante e passou-o no olho esquerdo. Apesar da penumbra conseguia ver o seu olho esquerdo triste, desmaquilhado, viril. Era esquisito ver-se assim. Com um olho brilhante e desenhado em cores garridas e o outro mortiço, sombrio, igual à ombreira da porta a que Elisa não mais se encostaria, à espera da vida que a pintura lhe haveria de dar.

Tornou a pegar no lápis. Tornou a passá-lo seguramente pela parte debaixo do olho prolongando-o um pouco para além dele na direcção da orelha rasgando o olhar como um sorriso.

No quarto ao lado reinava a maior quietude. Elisa entraria pela porta branca e diria:

— Vem deitar-te agora. É tarde.

Era tarde. Nenhum movimento, nenhuma brisa perturbava a calmaria do quarto ao lado. Nada.

— Graças a Deus! — disse ele.

Ainda não acabara. Precisaria de mais tempo. Que horas eram? Duas? Três da manhã? Não fazia a menor ideia e não tinha nenhum relógio por perto. Elisa não gostava de relógios porque o tic-tac a impedia de adormecer. Por que é que ele não se lembrara de lhe colocar um swatch no bolso antes de ela ter ido para o hospital? Mas quem é que podia imaginar?

— A sua mulher morreu!

— Elisa, Elisa, Elisa!

Estava quase a terminar. Faltava-lhe colar os cílios. Sempre tivera umas pestanas ralas, de cor escassa. Colava agora umas enormes, redondas, negras. Não sabia muito bem se obedecia à ordem correcta para uma maquilhagem perfeita. Afinal, era a primeira vez que se via na emergência de borrar a cara para ficar bonita. Por isso, colou as pestanas com muito cuidado. A ordem não devia estar muito errada porque ele não se borrou nem um bocadinho. Ergueu-se. Despiu-se. A confusão era enorme. O peito peludo, as coxas grossas, a cintura mal marcada, o pénis que flacidamente pendia para cima do testículo esquerdo… O seu corpo não rimava com as cores que a sua máscara apresentava. Pensou é preciso vestir-me depressa. Escutou. O silêncio transpirava pela porta imaculadamente manchada de sangue. Respirou profundamente quase aliviado.

— Elisa.

Rapidamente vestiu uns collants de lycra que quase escondiam as formas masculinas das suas pernas. Foi buscar um bocado de silicone. Injectou-o no peito. Não queria umas grandes mamas, nunca gostara de as ver ou de as sentir entre as mãos frementes de desejo, mas era preciso qualquer coisa para encher o soutien de renda branca. Tinha comprado número 36. Pareceu-lhe suficiente. Injectou por debaixo da pele o silicone necessário para que os seios pudessem ser cobertos com uma mão fechada. Colocou umas luvas de pele para esconder os pêlos que lhe subiam pelas costas das mãos. Dirigiu-se ao armário. Este era o momento que tanto temera. Abriu o guarda-fatos. Elisa perguntaria:

— Queres que ponha o vestido azul ou o vermelho.

— O vermelho — respondeu ele.

Não, o vermelho não, o vermelho não!, é preciso fazer luto, ainda que aliviado. Já a lycra lhe parecera exagerada mas ele não conhecia outra forma para esconder as curvas que o pénis lhe criava entre as coxas musculadas.

— Não, o vermelho não.

Experimentou diversas saias. Não se sentia bem. Pensou por que não umas calças? Escolheu umas pretas de imitação de couro, vestiu-as. Pareciam feitas à medida do seu corpo.

— E que bem ficarão com os sapatos dourados que comprei no Martim Moniz.

Calçou-se. Os 12 centímetros do salto não lhe faziam falta mas mesmo assim ele sentiu-se bonita ao ver-se tão alto. Enfiou um top também dourado. Poderia sair agora. A noite esperava por ele de tão bonita que estava. Que sorte nunca ter tido pêlos no antebraço. Podia sair assim com as costas à fresca e afinal estava calor. Estava muito calor.

— Desligas a ventoinha antes de te vires deitar — diria Elisa.

Que sim que sim.

— Mas não te esqueças.

Quem lhe dera agora esquecer-se. Mas ele nunca mais se esqueceria. Estava calor demais. Quis despir-se. Pensou mesmo em não sair, mas a hipótese de ver outra vez o seu corpo peludo reflectido no espelho assustou-o tanto que ele começou a encher a bolsa dourada que lhe completava a toillete.

Não sabia muito bem com que as mulheres enchem as malas. Colocou a cigarreira, o isqueiro.

Algum dinheiro e o cartão de crédito. Não sabia o que lhe podia acontecer depois da sucessão de vodkas que aquele calor faria escorregar pela gargantilha dourada. Assim, bonita, sabia que se queria deitar com alguém. Fazer amor. Embora não soubesse muito bem quem poderia interessar-se por ele. Era a primeira vez. Achou que era melhor colocar uns preservativos na bolsa dourada. Tinha medo que o top de lamê caísse se ele dançasse com a fúria que a indumentária lhe pedia. Iria trocar de roupa? Do quarto ao lado silêncio? Podia sair? Pareceu-lhe ouvir alguma coisa. Não foi ver. Não queria ver. Pôs música. Preparou uma taça de champagne que se apressou a beber. Era melhor beber um pouco antes de sair. Não sabia como reagiria se alguém lhe soltasse um piropo mais ousado. Nunca ninguém lhe dissera comia-te toda mas ele gostou de ouvir essas palavras nas bolhas do champagne.

Cantava:

E é como se eu despertasse de um sonho que não me deixou viver e a vida explodisse em meu peito com as cores que eu não sonhei…

Mais uma taça de champagne. Serviu Elisa. Ela também teria calor e uma taça de champagne é sempre a melhor forma de dar início a uma noite quando não se sabe onde ir.

— E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim...

Tinha medo de sair assim. Queria passar depressa aquela fase de ser desejada ou não. Queria cair logo na boca de alguém ou rodar de colo em colo bebendo taças de champagne em gargantas desconhecidas.

— Não faças barulho — gritou ele para a ombreira da porta — era evidente que a ordem do silêncio se estava a alterar.

Tinha de sair imediatamente. A sua mulher morreu. Elisa gostava do Bairro Alto. Talvez começasse a noite lá. Portas Largas, Frágil. Talvez estivesse lá alguém que lhe pudessse indicar outros lugares onde pudesse sentir-se tão bonita e dançar, dançar, dançar…

— E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim…

Pegou nas chaves. Elisa deixara o chaveiro no lugar de sempre. O ouro do porta-chaves ia bem com a sua vestimenta preta e dourada. Olhou-se uma última vez ao espelho. Congratulou-se por toda a vida ter frequentado o ginásio. Todos os seus amigos estavam com barriga e ele, do alto dos seus doze centímetros de salto, tinha um ventre firme e delicioso.

Faltava o perfume. Não sabia que odor iria bem com aquela indumentária. Pegou num Azzaro, mas o cheiro trazia-lhe memórias de olhos olheirentos e lábios finos e acastanhados. Não! Ele estava tão bonita que precisava de um perfume novo. Que estupidez! Lembrara-se do batôn, da peruca, do silicone, e esquecera a merda do perfume. Levou um braço até ao nariz, As luvas negras conservavam um pouco do último perfume que Elisa usara e que começava a evaporar graças ao calor das mãos peludas dele. Ok. Sairia só assim. Elisa estava morta e as luvas compunham bastante.

— A sua mulher morreu!

Abriu a porta da rua triunfante, linda, importante. Quando ia a fechá-la atrás de si, o bebé chorou. Era como se a ombreira da porta do quarto tivesse subitamente limpo as manchas do sangue coagulado de Elisa e do outro lado o bebé chorasse só para evitar que ele saísse. Não! Não! Não! Vodka! Sexo! Música!

— Foda-se!

Voltou atrás. O champagne começava a esborratar-lhe a boca. Arrancou a peruca. Um monte de cabelos mal cortados e negros apareceu.

Abriu a porta do quarto. O azul da sombra dos olhos começava a desfazer-se pelas bochechas abaixo. O bebé continuava a chorar. A porta imaculadamente branca fechou-se atrás dele. Ele acendeu a luz.

— A sua mulher morreu!

— Elisa! Elisa! Elisa!

O bebé parecia estar com problemas. Meteu-lhe um dedo na fralda. Estava enxuta. As luzes da noite brilhavam na rua chamando por ele. Pegou no bebé ao colo. Elisa! O que fazer? Cantar, cantar para ele adormecer:

— E o menino com o brilho do sol na menina dos olhos sorri e estende a mão.

Não se calava. O bebé não se calava. Ele levou-o para a frente do espelho. Toda a maquilhagem se começava a desfazer em suor e champagne. O bebé não se calava.

— Calma, calma, a mamã está aqui.

— A sua mulher morreu.

O bebé não se calava.

— E eu entrego o meu coração e ele entrega o seu coração.

O bebé não se calava.

Ele então baixou o decote do top de lamé dourado, desapertou o soutien e meteu o bico do seio 36 na boca do bebé que sugava com ânsia e sofreguidão.

— A mamã está aqui.

O batôn escorria para a cabeça do bebé como se o sangue de Elisa imaculadamente lhe manchasse a testa. O bebé sugava, sugava, sugava.

— A mamã está aqui.

E enquanto o bebé se enchia de silicone e restos de batôn coagulado, ele cantava, linda como nunca para lhe acalmar a fome:

— E é como se então de repente eu chegasse ao fundo do fim …

Tiago Torres da Silva

Nasceu em Lisboa em 1969 e desde 1990 divide sua atividade entre o teatro, a escrita e a música. Troxue ao Brasil o espectáculo É o mar, Alfonsina, é o mar, ao Festival de Teatro de Curitiba, onde se apresentou no Teatro do Paiol, ao Teatro da Casa da Gávea (Rio de Janeiro) e ao Sesc Pompéia (São Paulo). Mais tarde dirigiu Bibi Ferreira em Bibi vive Amália, espetáculo de que é também autor. Nos últimos anos, tem se destacado como letrista em Portugal. No Brasil, suas letras foram interpretadas por Chico César, Daniela Mercury, Elba ramalho, Francis Hime, Joanna, Maria Bethânia, Mônica Salmaso, Ná Ozzetti, Ney Matogrosso, Olivia Byington, Pedro Luis e a Parede, Rodrigo Rodrigues, Zeca Baleiro e Zélia Duncan. O seu último livro (o sétimo da sua carreira) chama-se Timbó — aventuras de um português no Brasil. Nele o autor dedica-se a contar dezenas de estórias ocorridas em suas longas estadas no Brasil. O e-mail do autor é [email protected].

Rascunho