Para que servem os mitos? Pergunta repetida à exaustão desde que a máquina e os números concederam certo ócio ao ser humano para que ele pudesse pensar racionalmente e com mais afinco sobre questões mais ao céu do que à terra — não sem antes lhe arrancar um pouco da sua própria humanidade, é verdade.
É quase certo que Homero, o maior de todos os poetas gregos, seja ele quem tenha sido (ou eles), não se pegava a pensar se as histórias de deuses encrenqueiros e heróis dotados de habilidades sobre-humanas eram ou não uma maneira mais profunda de dar sentido ao mundo. Os deuses, heróis e criaturas mitológicas de seu tempo e de tempos passados, eram muito mais do que representações da psique humana. Eles eram vivos, atuantes e presentes. Figuras carimbadas do cotidiano, que pareciam ter espaço garantido em todos os tipos de discussões do povo grego, das mais sérias até as mais descontraídas.
No caso de Virgílio, o poeta latino que precisou inventar às pressas um novo mito fundador de Roma a pedido do imperador Augusto, é bem provável que ele já possuísse uma visão menos ingênua sobre a força dos mitos com os quais tratava. Postura quase parecida com a de Camões que, ao escrever Os lusíadas, precisou colocar sua imaginação para correr na mesma medida e ritmo em que permitiam os dogmas religiosos aos quais estava atrelado, sob o risco de não ter sua grande obra publicada.
De tão complexa, a tal “função do mito”, para usar linguajar mais adequado aos tempos nos quais vivemos sem escolha ou querer, precisou de mais de centenas de cabeças para ser mais ou menos esclarecida.
Na linha de frente, o antropólogo e folclorista escocês James George Frazer, com a publicação de O ramo de ouro, fez virar estrada o que antes era apenas uma picada aberta em mata densa por alguns pensadores anteriores. Caminho percorrido e alargado posteriormente por nomes como Wilhelm Wundt, Sigmund Freud, Otto Rank, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Jean-Pierre Vernant e uma infinidade de outros que, caso citados, serviriam mais como prova de uma erudição pedante e atabalhoada do que como elemento didático minimamente aproveitável. Portanto, os deixemos em paz.
E o que dizem tais autores? Difícil afirmar de forma uníssona e inequívoca. Parece-me que, ao olharem pela fechadura da história, cada um deles parece ter visto diferentes detalhes de uma mesma figura. Uns, viram os braços; outros as pernas, e assim por diante. Na tentativa de explicar o que faz um mito e de que ele é feito, as conclusões podem ser as mais variadas: histórias criadas como formas para explicar fenômenos naturais; narrativas fantasiosas, criadas sob efeitos de substâncias lisérgicas; histórias inocentes, frutos de mentes primitivas, ainda na infância da humanidade etc.
Até mesmo J. R. R. Tolkien se aventurou a dar pitacos eruditos sobre a “função do mito”, concluindo que eles nada mais eram do que histórias que traziam em si resquícios de uma verdade há muito ocorrida e que ainda reverbera por aí.
Hoje, os mitos tornaram-se mais uma vítima do marketing e da publicidade. Entraram para a estatística e viraram terreno fértil para o cultivo de teorias e práticas que prometem destravar os mais variados arquétipos de empreendedores em busca do tão prometido sucesso, ajudando-os a derrotar seus dragões e a resgatarem suas princesas. Tudo embalado em releituras rasas e de um dolorido mau gosto.
Mas, mesmo em meio a tantas incertezas e desvios, eles ainda dizem muito sobre a vida humana, seja aquela vivida agora entre telas e algoritmos, ou aquela de milênios atrás.
A epopeia de Beowulf
Composto entre os séculos 8 e 10, em inglês antigo e com diversas referências à mitologia nórdica, o poema Beowulf é considerado por muitos o mais antigo e o mais importante monumento literário do período. Combinando elementos históricos, lendários e fantásticos, o enredo explora igualmente temas universais como o bem e o mal, a vida e a morte, a honra e a amizade. Como é típico desse modelo de narrativa, também estão presentes lições sobre a importância de uma conduta elevada para uma vida mais justa e valorosa. Ensinamentos presentes já em seus primeiros versos:
O senhor da vida, o Regente da glória, concedeu-lhe grande renome: Beowulf, o filho de Scyld, foi famoso, e seu nome se espalhou ao longe por todas as terras do norte. Assim deve ser um homem jovem, de boas ações, generoso com presentes na casa de seu pai, para que, ao envelhecer, ainda que estejam ao seu lado seus caros companheiros, e para que, quando a guerra chegar, o povo o sirva. Comportamento tão admirável faz com que o homem seja próspero em qualquer lugar.
A história do valoroso herói da tribo dos gēatas é dividida em três partes, cada uma com um desafio específico e um inimigo a ser vencido: na primeira parte, Grendel, o monstro devorador de homens; a mãe de Grendel, em busca de vingança pela morte do filho; o dragão que aterrorizava o povo de um Beowulf já em idade avançada e nomeado rei.
A história tem muitos dos elementos mitológicos que influenciaram a literatura fantástica posterior: um herói, profecias, um fiel escudeiro, um dragão e muitas facetas grandiosas. Uma leitura indispensável não apenas para os fãs de fantasia, mas também para quem se interessa por poemas épicos e por mitologia de maneira geral.
A escolha pela tradução em prosa da Editora 34, e não em verso, feita de maneira séria e competente por Elton Medeiros, poderia ser polêmica. Digo poderia, porque a realidade é que apenas os eruditos de carteirinha estão preocupados com a “pureza” das obras. Para eles, a boa notícia é que, além de importantes notas de rodapé, o poema original, no formato de verso, também faz parte da edição.
O resultado dessa escolha é uma leitura fluída, cadenciada, mais compreensível e palatável para o público que terá seu primeiro contato com a obra. A edição conta ainda com outros quatro poemas anglo-saxões importantes (A batalha de Finnsbuhr; Windsith; Deor; A batalha de Brunanburh) e um prefácio de Jorge Luis Borges, que oferece uma excelente introdução aos aspectos históricos e técnicos do poema anônimo, descoberto apenas no século 18, incluindo sua relação com outros grandes poemas, como a já citada Eneida de Virgílio.
Os monstros da modernidade
Os desafios de Beowulf, em nível mitológico/arquetípico, continuam a dialogar com as contendas da vida contemporânea em nível metafórico. Não é à toa que a metáfora usada para tratar da chamada metacrise (o sistema interconectado de crises globais que antes eram vistos como autônomos, como a crise ambiental, a crise hídrica, armas de extermínio em massa e a cada vez mais rápida ascensão da IA) é a da famosa Hidra de Lerna, que só pode ser eliminada quando todas as suas cabeças são cortadas de uma só vez ou com o uso do fogo para impedir que uma nova cabeça cresça quando alguma delas é cortada.
No nível pessoal, todos nós enfrentamos nossos próprios monstros. Sejam eles criados por nós mesmos ou por outras pessoas. O contato com obras literárias que trazem em sua temática o enfrentamento contra criaturas que ameaçam a harmonia de um povo ou do mundo inteiro, são capazes de criar interessantes paralelos entre ficção e realidade. Os tempos mudam, mas os nossos medos mais profundos apenas trocam de roupa. No fundo, eles permanecem os mesmos, apenas com novos casacos e sapatos.
Entender os mitos e as narrativas de heróis como Beowulf pode ser encarado como um mergulho em questões submersas no nosso inconsciente (individual ou coletivo). Ao fazer isso, é possível que, ao voltarmos à superfície, tenhamos encontrado novas armas ou estratégias para encarar as ameaças que rondam as nossas existências e chegar a uma vida com mais significado. Ou apenas tenhamos vivido uma experiência literária prazerosa. Já que nem tudo o que fazemos na vida necessita de profundas interpretações.
Assim como um charuto por vezes pode ser apenas um charuto, como ensinou o doutor Freud, um livro também pode, por vezes, ser apenas um livro.