Quando linguagens contam histórias diferentes

A disjunção é a relação na qual texto e imagem podem, ambos, apresentar discursos autônomos em relação ao outro
Ilustração: Maíra Lacerda
01/04/2024

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Estamos habituados a ter nos livros de literatura a primazia da linguagem verbal, que na maioria das vezes se apresenta como a única responsável pela narrativa, especialmente nos livros para adultos. Pensadas muitas vezes de forma restritiva ao seu atributo estético de adorno, as ilustrações acabam sendo vistas como supérfluas, e seu potencial no objeto livro, pelo senso comum e pelo preconceito estabelecido no mercado, acaba sendo reduzido ao seu caráter atrativo, que se mostra determinante para o consumo da infância, pelo fato de nessa etapa os leitores ainda não dominarem leitura e escrita. Já demonstramos, no entanto, que as funções das imagens nos livros — qualquer que seja o gênero e o público-alvo — mostram-se bem além disso. Todos os elementos que constituem o objeto livro participam de sua construção de sentidos: texto, ilustração, projeto gráfico (na escolha da tipografia, definição das margens dentre outros) e materialidade (tipo de papel, formato, encadernação etc.). Mas no livro ilustrado, gênero cujo grande diferencial é a próspera e extensa relação estabelecida entre texto e imagem para a construção da narrativa, essa participação é ainda mais preponderante, posto que esse gênero literário é concebido como um sistema global. Na coluna anterior, pusemos em foco a colaboração, uma das três relações possíveis entre texto e imagem, segundo a especialista Sophie Van der Linden. A disjunção é a relação sobre a qual vamos nos debruçar agora.

Uma ida à praia, mesmo em um dia frio demais para entrar no mar, pode render muitas aventuras. Mas aos olhos dos adultos e das crianças, essas aventuras podem ser bem distintas. John Burningham, ao escrever e ilustrar Fique longe da água, Shirley!, traduzido no Brasil por Claudio Alves Marcondes, deixa para o leitor a tarefa de construir a história, a partir das diferentes partes que entrega em cada linguagem. O texto verbal, sempre apresentado nas páginas pares, à esquerda do livro, e composto em sua totalidade pelas falas dos pais de Shirley, divide o espaço com as ilustrações que os mostram sentados em suas cadeiras, de onde dão orientações práticas à menina:

Por que você não vai brincar com aquelas crianças?; Não brinque com o cachorro, Shirley, você não sabe por onde ele andou; Preste atenção onde joga essas pedras. Vai acabar acertando alguém; Nem pense em levar essas algas fedorentas para casa, Shirley.

As páginas ímpares, à direita do livro, por sua vez, são ocupadas em sua totalidade por ilustrações e demonstram algo bem diverso do que oferece o texto verbal. Nessas imagens, acompanhamos a menina enquanto rema até um navio pirata, se engaja em uma grande combate, é salva da prancha por seu amigo canino, escapa com um mapa e encontra um grande tesouro. Tudo isso com cenários ricos em detalhes e muito coloridos, em oposição ao fundo branco das imagens à esquerda.

Como essas duas realidades se juntam? O que Shirley vivenciou nesse dia na praia? Qual a história efetivamente contada por este livro? Cabe ao leitor construir essa narrativa, juntando as peças, construindo pontes entre texto e imagem das páginas esquerdas e aquilo que vê na página ao lado. Adultos, a partir de suas compreensões de mundo, podem inferir sentidos bastante próximos ao conjunto criado por esta obra, mas é preciso considerar que as respostas não estão dadas no suporte. A construção de uma narrativa única é de responsabilidade do leitor.

De acordo com Linden, a disjunção é a relação na qual texto e imagem podem, ambos, apresentar discursos autônomos em relação ao outro. Situação bastante diferente da redundância — na qual as linguagens buscam se repetir e reforçar — e da colaboração — na qual existe uma complementaridade entre elas, em que a apresentação de novos sentidos direciona para uma mesma narrativa. Na disjunção, por vezes os discursos podem entrar em contradição explícita, ou então podem seguir por caminhos paralelos. Essas configurações solicitam particularmente a capacidade do leitor para um distanciamento crítico e uma atividade criativa durante o ato de leitura.

Situações semelhantes são apresentadas em O passeio de Rosinha e Nunca acontece nada na minha rua. No primeiro caso, o curto e clássico texto de Pat Hutchins descreve o calmo passeio da galinha pela fazenda, enquanto as ilustrações mostram uma raposa — nunca mencionada no plano verbal — que tenta a todo custo pegar a protagonista, que não chega nem a perceber sua presença. Já na obra de Ellen Raskin, o texto em primeira pessoa reflete o ponto de vista do personagem Luís Rodolfo, que enumera todas as variadas e divertidas atividades que acontecem em outras ruas — desfiles de banda de música, índios a caminho da batalha, desbravadores de mares profundos etc. —, e lastima a realidade da sua rua: “Mas nunca acontece nada na minha rua. Quando eu crescer, vou me mudar”. Todavia, o leitor se depara com uma situação muito diferente nas ilustrações, pois enquanto o personagem fica sentado no meio fio a reclamar, toda sorte de confusões acontece ao seu entorno: crianças pregam peças na vizinhança e confundem uma mulher que acaba jogando água no carteiro; bombeiros vêm atender a um pedido de socorro e apagar um incêndio; um ladrão é perseguido pela polícia; um homem pousa de paraquedas no meio da calçada e muito mais.

A disjunção instaura possibilidades instigantes à literatura ao não apresentar uma relação direta de convergência entre as linguagens. Nesse movimento, o leitor precisa entrar no diálogo apresentado no papel e buscar por conexões. Nas palavras da especialista a respeito do livro ilustrado:

Devido ao seu confronto no espaço da página dupla, textos e imagens mantêm necessariamente uma ligação estreita. Cabe ao leitor levar em conta seus respectivos discursos e a produção de sentido global que emerge de sua articulação.

Dessa forma, para unir a realidade tangível dos pais de Shirley e a onírica da menina, a realidade do passeio pacato da galinha e de risco iminente que ela está correndo, a realidade perceptível de Luís Rodolfo e a que acontece à sua volta, o leitor é o protagonista.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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