Tem gente — e muita gente — que julga a criação literária uma aventura espontânea, inspirada, ou coisa parecida. E não é desta forma, tenho dito e repetido inúmeras vezes. Pode ser uma meia verdade, talvez. Até porque o mestre genial Arino Suassuna demonstra em sua Iniciação à estética que no território da criação existem dois campos: o campo espiritual da criação; e o campo material da criação, destacando que este segundo pode ser escrito, modificado, alterado, reescrito. No meu Os segredos da criação, penso apenas no campo material, porque o espiritual é quase sempre, ou sempre, distorcido pelos escritores ou candidatos a escritor, escrevendo amontoados de palavradas, justificando que é produto da inspiração e acreditam, sinceramente, porque é assim, justificam.
A inspiração espiritual é filha do Espírito Santo, no que também acredito, mas para ajudá-la vem a inspiração material, formada por técnicas, conselhos e sugestões. Neste plano mais consciente e rigoroso, o autor faz modificações, alterações e sugestões. Ocorre aí o que tradicionalmente é chamado de artesanato literário, tão caro a João Cabral de Melo Neto, mas desdenhado por Manuel Bandeira, espontâneo e livre, desapegado das formas rígidas, envolto numa espécie de crônica que se estabelece no ritmo, desprovido de rimas, métricas, ou daquilo que chamou de lirismo burocrático.
Técnica e história
Um dos autores universais mais apegados à técnica, à história e à elaboração literárias é Thomas Mann, que nos dá lições de esquematização no livro A gênese do Doutor Fausto — Romance sobre um romance — sobre o qual já falei aqui há meses, sem aprofundamento, é claro. Este livrinho — livrinho no sentido afetuoso de agradecimento pela sua grandeza — de apenas cem páginas expõe o cuidado e o zelo com que o notável alemão tratava sua obra desde o primeiro momento em que fazia as anotações iniciais, reunindo recortes de jornais, e refletindo sobre suas condições físicas e psicológicas para empreender a tarefa para a qual se propunha, embora já autor consagrado, ganhador do prêmio Nobel, entre outras honrarias.
Destaque-se que Mann escrevia em meio a duas guerras mundiais, fugitivo nos Estados Unidos, em 1938, embora festejado pela glória, com o título de um dos escritores mais importantes do mundo, basta lembrar os três volumosos livros de José e seus irmãos, que a Bíblia trata apenas em algumas palavras e que lhe serviu de fonte criadora. Este é o primeiro exemplo — técnica? — da preparação de uma obra que nós, pobres mortais, tratamos muitas vezes com descuido, proclamado que tudo é inspiração ou instinto. Basta querer.
Na Gênese do Doutor Fausto, Thomas Mann nos dá logo a primeira lição, explicando que está escrevendo este pequeno livro tomando como motivação a própria vida, a vida de um homem expatriado que precisa cuidar de si para escrever, para materializar os seus sonhos e suas ilusões, sim, sempre as ilusões, até alcançar seus objetivos, a partir da pergunta de um repórter:
Anotações no meu diário de 1945 revelam-me que no dia 22 de dezembro daquele ano recebi a visita do correspondente do The Magazine em Los Angeles — do centro da cidade até nossa casa é uma hora de automóvel —, que vinha tomar satisfação de uma profecia feita por mim quinze nos antes e que parecia não querer se cumprir. Naquela época, tinha escrito um breve relato biográfico, Lebensabriss — 1930. Sumário de uma vida —, também traduzido para o inglês, em cuja conclusão, em parte brincando com algumas simetrias e correlações numéricas em minha vida, fiz a conjecturas de que entregaria a alma a Deus no ano de 1945, aos setenta anos, portanto na mesma idade da minha mãe.
Prestando atenção, verificamos logo que o escritor faz alusão a três técnicas — simetrias, correlações numéricas e conjecturas —, até porque são usadas neste livrinho, cuja principal questão está em sua vida , matéria de que devemos lançar mão para escrever. De minha parte posso assegurar que esta é uma técnica que adotei desde cedo — sempre que precisava, recorria ao meu passado ou aos meus vultos do passado — sombras do passado — para construir meus textos.
É até engraçado quando as pessoas dizem, ingenuamente, que isto não é técnica? E o que é técnica, então? Todos os movimentos interiores da obra a que recorremos para vencer as nossas dificuldades, observando, inclusive, o exemplo de outros autores. É sempre justo e correto. Uma técnica também deve ser criada por nós. Afinal, é para isso que somos criadores. Aí observamos que temos outra técnica, a do diário e de suas anotações.
E o que é que Thomas Mann diz disso?
Mas é a partir de meus breves apontamentos diários daquela época que vou procurar construir a história do Fausto, inserida que foi no tumulto e na emergência dos acontecimentos externos, para mim e para meus amigos.
Eis um exemplo magnífico, as anotações como experiência de vida para transformação em obra literária, e que nos vem através de um gênio criador.
Assim surgem as inquietações, as angústias, os dramas interiores que são repassados aos personagens e às situações. Uma pergunta, enfim, que faço a mim mesmo quando encontro meu personagem em situação extrema: “E se fosse comigo, o que eu faria?”. Aí entram as anotações, as leituras, as buscas. Vem, então, uma certeza definitiva: nunca comece um texto sem antes tomar anotações, revendo, inclusive, a sua vida. Em qualquer situação, você estará sempre em primeiro lugar, sempre. Sua sensibilidade e suas questões.
A técnica e vida
A principal técnica de um escritor é ele mesmo, sem autobiografia. Sentimentos e buscas. Sempre. Se deixe envolver pelo personagem. Explico aos meus alunos: entregue sua mente à mente do personagem, sem que nunca deixe de ser o autor, talvez o narrador. Impulsionando o narrador, mas nunca o personagem, embora o narrador seja sempre o principal personagem do autor.
É legítimo, assim, chamar a vida de técnica? Não seria aproximá-la da espontaneidade? Em absoluto. A técnica começa com o impulso, quando o autor sente a necessidade de escrever e se motivasse interiormente como se estivesse inspirado, vem em seguida o impulso, que seleciona os elementos, inclusive as palavras, por fim, a pulsação narrativa que, em princípio, substitui a antiga forma. Este tema é abordado no doutorado da professora Priscila Varjal na UFPE.
Este brilhante doutorado aprofunda exatamente a minha crença na técnica, e a necessidade do seu uso na construção, montagem e escrita da obra. Ou seja, a partir do inconsciente do escritor em torno de sua própria vida ou de episódios que encontram relação com a obra em marcha, e que mereça a correlação com a história que escreve. Não uma autobiografia, autoficção ou simplesmente confissão. Não é bem assim. Deve-se escrever conforme a narrativa se apresenta, privilegiando-a, mas sem esquecer as emoções íntimas.
Acentua Thomas Mann ainda sobre a escrita do seu romance que Nietzsche sempre ocupou um lugar importante nas suas preocupações, daí as leituras formadoras do livro, as anotações de Nietzsche, seguindo-se a obra de Stevenson, O médico e o monstro, o tema oriental para o tema do Fausto, que ainda está longe de tomar forma. “Embora saiba que devo aproximar o patológico do fabuloso, associá-lo ao lendário, a ideia me inquieta, as dificuldades me parecem intransponíveis, a tudo permeia a suposição de que esse empreendimento me assusta porque sempre o considerei como o meu último.”
Vem daí a ideia em Mann de que para compreender o seu próprio eu, “era preciso procurar as raízes profundas que, a partir delas, se entranharam em minha vida”. É correto ainda tê-la colocado, já desde aquele tempo, ao cabo de um plano de vida que sempre foi um plano de trabalho.
Posso concluir que uma obra literária está entranhada — para usar o verbo de Mann — na nossa própria vida e, por isso, uma é resultado de outra.
Pois bem, enquanto escrevia o Doutor Fausto, Mann recorria a leituras, fazia inúmeras viagens de trem, dava palestras, proferia conferências. Não era o caso de leituras espontâneas, por mera curiosidade, mas em busca de elementos para o seu romance em construção.