Tempos difíceis, tempos de superação

Os tempos difíceis requerem muita clareza, ousadia, determinação e firme propósito para que se tornem tempos de superação
Ilustração: Tereza Yamashita
01/03/2024

Em um mundo explicitamente conflagrado social e politicamente, seria uma irresponsabilidade escrever sobre política pública para o livro, leitura, literatura e bibliotecas assumindo uma atitude inspirada na célebre obra de Eleanor Porter de 1913. Definitivamente é preciso ficar distante da conhecida “síndrome de Poliana”, na qual uma boa dose de boa vontade acaba encontrando o “lado bom das coisas”, até nos fascismos e na sanha violenta e bélica da ultradireita. Com tantas evidências nas quais constatamos a intensificação de genocídios perpetrados por potências mundiais e regionais com finalidades de aumento de seu poder territorial e econômico, assim como o registro dos avanços de discursos e práticas de ódio fomentando o racismo, o xenofobismo, o antifeminismo, a homofobia, entre outras discriminações, é impossível não se inquietar com os tempos difíceis pelos quais passa a humanidade.

Se os aspectos lúdicos, sensoriais e afetivos provindos da leitura são absolutamente necessários para o desenvolvimento de políticas públicas para a formação e a manutenção de leitores e leitoras, há algo urgente para se tomar consciência: compreender que, antes de tudo, ao buscarmos o direito à leitura, estamos realizando um ato de conquista democrática da cidadania plena.

O que isto quer dizer? Se recorrermos às mais avançadas análises de pesquisadores e ativistas nos últimos 50 anos, observamos evidências que levam à convicção raciocinada de que há uma intencionalidade na nossa tradição política em manter enormes setores da população impossibilitados de ter acesso total à informação e ao conhecimento institucionalizado, o que possibilita também que a maioria de nossos compatriotas seja alijada de se comunicar plenamente com os instrumentos da leitura e da escrita que cada vez mais se impõem no século 21. Ao conhecido jargão de que vivemos a era da informação e do conhecimento, contraponho as perguntas: quem a vivencia totalmente? Quem não faz parte deste axioma contemporâneo?

Na história recente pela conquista do direito à leitura e à escrita para todos os brasileiros e brasileiras, essas preocupações não apenas estão presentes como também se baseiam em conceitos unânimes.

A construção coletiva e democrática do primeiro Plano Nacional do Livro e Leitura do Brasil, o PNLL de 2006, em seus princípios norteadores reafirma que

a leitura e a escrita são percebidas aqui como práticas essencialmente sociais e culturais, expressão da multiplicidade de visões de mundo, esforço de interpretação que se reporta a amplos contextos; assim, a leitura e a escrita são duas faces diferentes, mas inseparáveis, de um mesmo fenômeno. (…) A leitura e a escrita constituem elementos fundamentais para a construção de sociedades democráticas, baseadas na diversidade, na pluralidade e no exercício da cidadania; são direitos de todos, constituindo condição necessária para que cada indivíduo possa exercer seus direitos fundamentais, viver uma vida digna e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa.

(Caderno do PNLL, atualizado em 2010, p. 32, publicada pelo MinC/MEC-PNLL, disponível na internet).

Esses princípios norteadores foram consolidados e estão presentes na primeira lei que estabeleceu uma política de Estado para a formação de leitores e leitoras, a Lei 13.696/2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, principalmente no seu Artigo 2º, incisos I, II e III.

Se juntarmos a crise nacional e global, que caracterizei como “tempos difíceis”, às perspectivas teóricas da nossa luta política pelo direito à leitura no Brasil, felizmente chancelada pela lei da PNLE e por diversas experiências exitosas do primeiro PNLL, impõe-se o dever de, ao enfrentar essa difícil conjuntura, realizar na prática aquilo que concordamos teórica e legalmente.

Volto a este tema, que já tratei direta ou indiretamente nesta coluna, porque entendo que se abre novamente uma janela de possibilidades para avançarmos no direito à leitura e à escrita na perspectiva de reconstrução nacional que estamos vivenciando neste tempo de grandes desafios.

E se aprendemos algo com o tempo, é que não devemos perder de vista a indissociabilidade da formação de leitores com o avanço da luta contra a desigualdade e da defesa da ordem democrática. É essa dinâmica política que levará à crescente conquista da cidadania, só possível com a capacidade plena de leitura e escrita da maioria da população ao exercer sua autonomia intelectual e capacidade de compreensão e juízos próprios, usando os códigos atualmente em mãos de uma elite minoritária e excludente. Este será o caminho mais efetivo para se fazer frente à manipulação crescente da comunicação massiva, notadamente nas redes sociais, que se utiliza de códigos de fala e escrita que são inacessíveis para a maioria da população. Os índices vergonhosos e alarmantes da pesquisa Indicador de analfabetismo funcional/INAF, de 2018, na qual apenas 12% da população de 15 a 64 anos é proficiente no uso dos códigos linguísticos predominantes, atestam empiricamente as afirmações deste parágrafo. (https://alfabetismofuncional.org.br/)

Os tempos difíceis requerem muita clareza, ousadia, determinação e firme propósito para que se tornem tempos de superação. A história é plena de exemplos onde situações limítrofes rumo à barbárie conseguiram criar oportunidades para mudanças radicais e abertura de novos horizontes mais comprometidos com o bem-estar e com o desenvolvimento humano. Sabemos, no entanto, que se essa ação é possível, ela jamais foi construída sem o enfrentamento duro das forças que jogam no campo do individualismo exacerbado e na proteção a qualquer custo dos seus privilégios.

Pesquisas demonstram o grau de enfrentamento dos tempos atuais. O Relatório Desigualdade S.A., divulgada pela OXFAM Internacional em janeiro de 2024, demonstra que lutar pela igualdade é algo fundamental para a nossa vivência no planeta. Talvez para a nossa sobrevivência! As conclusões são alarmantes e demonstram o quanto a humanidade terá de se superar. O primeiro parágrafo do documento dá o tom de gravidade que deveria acender nossos alertas máximos:

Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram suas fortunas. No mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o planeta ficaram mais pobres. Privação e fome são uma realidade cotidiana para muita gente. No ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos. (www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/desigualdade-s-a/)

Esta explosão da desigualdade mundial é a marca mais profunda dos tempos difíceis e seríamos Polianas se a entendêssemos desconectada dos fatos que marcam toda a atividade do livro e da leitura. Ainda mais se insistirmos em conduzir a formação de leitores como se fosse algo supérfluo e não vital para o desenvolvimento sustentável. Apenas um exemplo: examinemos os dados de venda em nosso país.

Segundo o relatório Panorama do Consumo de Livros, da Nielsen BookScan e Câmara Brasileira do Livro em janeiro de 2024, apenas 16% dos brasileiros compraram livros entre outubro de 2022 e outubro de 2023. A mesma pesquisa revela que o Brasil possui uma livraria para cada 68 mil habitantes. Com agravantes: a cada 100 livrarias, 39 estão em São Paulo quando no Maranhão, por exemplo, existem apenas 21 lojas. Em termos de comparação, o Japão possui uma livraria para cada 10.500 habitantes.

Para o entendimento desses dados complexos, não devemos contabilizar apenas as diferenças de renda per capta dos países dominantes, mas também, e entre outras, o nível de investimento em educação e cultura em todos os níveis, os índices de emprego, de moradia, de transporte, saúde, de dignidade civil, enfim.

A pergunta é o que aprendemos e o que queremos ser, Estado e Sociedade, para reiniciarmos um tempo de superação. Para isso é preciso sintonizar kayrós e chronos e enfrentar a decisão da centralidade da formação de leitores como estratégia de Estado.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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