Em busca do líder perdido no exílio e no fim

Raimundo Carrero analisa "JK e a ditadura", de Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony, autor de “Paixão segundo Mateus”
01/01/2013

Cem anos parece pouco para refletir sobre a solidão dos nossos líderes decaídos, mesmo quando atravessamos o tempo em busca do líder perdido. Temos histórias de monarcas expulsos do poder, presidentes jogados mundo afora pelo desconforto político do exílio, renúncias e suicídios, um desfile de angústias e desespero. O poder nem sempre é de festas e de aplausos. Nem sempre de grandes decisões — erradas ou acertadas. Imaginem a ausência do poder. Vem a solidão e a saudade. E, sobretudo, o fracasso.

Nada mais doloroso e inquietante do que o ocaso na vida de um homem poderoso, que contou com todos os aplausos e honrarias. Sem dúvida, um massacre, com perseguições e ameaças, inquéritos e enfrentamentos com possibilidade de assassinato. É o que conta Carlos Heitor Cony em JK e a ditadura, originalmente publicado como Memorial do exílio. Trata-se de um livro profundamente doloroso que narra a história de perdas e danos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, morto em um acidente automobilístico duvidoso entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Na abertura, Cony explica: “O período da vida de Juscelino Kubitschek que me coube levantar e retratar foi uma dolorosa sucessão de perdas. Perdeu o mandato de senador, perdeu os direitos políticos, perdeu a oportunidade de ser reeleito presidente da República em 1965, perdeu a liberdade de viver em seu país, perdeu depois a própria liberdade física, em 1968, perdeu a irmã e a mãe, perdeu a presidência de uma empresa privada, perdeu até mesmo uma eleição para a Academia Brasileira de Letras — única eleição que não ganhou. Finalmente, perdeu a própria vida, num acidente de estrada”.

A sucessão de perdas contrasta, dramaticamente, com a fulminante escalada política, contada por ele próprio em suas memórias. “A mim, coube o ocaso.”

Daí por diante o livro se cobre de sombras e fantasmas num texto muito, muitíssimo bem escrito, começando com uma frase lapidar e dolorosa: “infelizmente, ainda estamos na América Latina”, escrita pelo próprio Juscelino cruzando o Atlântico rumo ao exílio, a bordo de um DC-7. Com certeza, o ex-presidente brasileiro nem sequer desconfiava que ali estava começando os seus cem anos de solidão. Para escrever o livro, Cony reuniu sua convivência com o político, em longas e acalentadas conversas, além da correspondência alimentada durante longos anos. Ainda na apresentação, o escritor confessa: “Juscelino cultivava o gênero epistolar com entusiasmo até exagerado. É enorme o número de cartas e bilhetes que enviou a seus amigos e parentes, expressando saudades e a vontade de voltar ao Brasil, redigia um diário com anotações de seu dia-a-dia, para se apoiar nesses apontamentos quando começasse a escrever a fase final de suas memórias. Parte desse material, com exceção do diário que foi entregue a sua família, ficou em poder do seu editor, Adolpho Bloch, que passou a me cobrar este trabalho, publicado primeiramente em capítulos semanais na revista Manchete”.

Especialmente cruel é o capítulo sobre o exílio. Escreve Cony: “ Não foram mil mas exatamente 976 dias de exílio, cumpridos em duas etapas, a primeira até 4 de outubro de 1965, quando o interrompeu por um mês, veio ao Brasil para ficar ao lado dos seus amigos que comemoravam a vitória de Negrão de Lima e Israel Pinheiro, eleitos governadores da Guanabara e de Minas Gerais. Uma sucessão de IPMs a que foi obrigado a responder tornou a sua presença insuportável, e a 9 de novembro do mesmo ano ausentou-se de novo, ficando no exterior até fins de março de 1967 — com exceção de 12 dias em que recebeu autorização para assistir ao enterro de sua única irmã, Naná, falecida em Belo Horizonte, a 3 de junho de1966”.

Mesmo assim, Juscelino parecia uma ave de arribação, pulando de galho em galho, sem um pouso definitivo. E mesmo na Europa, mudando de um para outro país. Monta apartamento em Lisboa, mas logo está em Madri, Paris, e depois em Washington, nos Estados Unidos. E ali passa de estado em estado para proferir conferências em universidades. Vem, então, o episódio do casamento da filha Márcia, que lhe consumiria esforço e energia, além de lhe tirar um tempo precioso para atividades políticas.

A parte mais revolucionária, porém, está na última parte do livro, O beijo da morte, onde se conta aquilo que muitos chamam de assassinato de Juscelino Kubitschek, através do choque do carro que o conduzia numa carreta em lances cinematográficos. Cony assume a primeira pessoa depois de usar uma falsa terceira pessoa — com técnica de primeira —, além de transcrever artigos que escreveu sobre o acidente. Sem esquecer que cria a voz de um outro narrador — a figura de um repórter que narraria a trajetória do próprio Cony em busca do líder perdido. Ou, mais especificamente, sobre a morte do líder brasileiro no final da primeira parte do século 20 no Brasil. O livro, então, sofre um corte radical, para explicar, entre outras coisas, que o projeto das memórias vem de muito longe, desde que escrevia artigos semanais para a revista Manchete.

O episódio do acidente, apesar das voltas e contravoltas, não deixa muito claro se foi apenas um jogo do destino ou um assassinato como se proclama ainda hoje em certos círculos políticos. Há coisas bem estranhas, é verdade. Como a presença de um assessor bem próximo do general Golbery nas providências para o enterro do ex-presidente, indicando e tomando decisões definitivas. E da surpreendente revelação de que Juscelino se decidira pela estrada porque precisava se encontrar com a amante Lúcia Pedrosa num hotel. Muitas dessas coisas foram escondidas para não ofender a memória do criador de Brasília.

No capítulo das revelações sobre a morte do ex-líder houve apenas uma voz objetiva e sincera, a do dr. Miguel Arraes de Alencar: JK foi assassinado.

Um livro muito bem escrito, equilibrado e sensível, mostrando um Cony, além de jornalista, dominador das mais sutis técnicas novelísticas.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho