Claros sussurros de celestes ventos apresenta encontros fictícios entre escritores — Lima Barreto e Cruz e Sousa, por exemplo —, além de encontros entre seus personagens — Olga, do Policarpo Quaresma, e Núbia, de Broquéis. Vivem em outros tempos e outros cenários. Sets estranhos tanto a criadores quanto a criaturas, palcos onde atores e figurantes desfilam sob o mesmo status.
Escrever sobre o encontro de Cruz e Souza com Lima Barreto pode parecer fino despropósito, mas Joel Rufino o faz com arte e sensibilidade, e isso pode levar o leitor curioso a um mergulho nas obras desses autores. Mas, atenção: Joel Rufino exigirá toda a sua atenção, por vezes disperso leitor, pois você estará frente ao fantástico, ao inverossímil e, por vezes, ao virar uma esquina/página, esbarrará num fato histórico. Modernismo, crise de 1929, Revolução de 1932, por exemplo. Isso tudo disposto com a precisão de um paisagista dos jardins de Versailles.
Ficção, fatos históricos, personagens e seus autores, tudo ao mesmo tempo, ontem e agora. O que é isso? Confusão? Equívocos? Pecado mortal de quem pensou dessa forma. O crente do convencionalismo terá só decepção frente a esse grande exemplo de ousadia e criatividade. Tudo isso, mas sem perder a ternura jamais.
Claros sussurros de celestes ventos, além de seu grande significado ficcional, remete a aulas de teoria literária sem que isso desmereça seu caráter ficcional, tampouco desabone a criatividade desse autor fora dos padrões. O “fora dos padrões”, no universo deste aprendiz, significa o mais alto elogio.
A obra traz elementos do conto, da reescritura, do histórico, da intertextualidade, do humor e sobretudo da arte refinada de unir imaginação — a mais rocambolesca — com um tempero de suspense que instiga a leitura. Não confundir suspense com expectativa de sobressalto, por favor.
Criatividade e imaginação: escritores (mortos) convivem e dialogam com personagens fictícios num tempo presente.
Sei que está em voga a intertextualidade, difícil encontrar livro deste nosso desanimador tempo cultural onde tal aspecto não seja evidente. E gratuito. A pena de Joel Rufino está fora desse compasso constrangedor, seu intertexto tem tudo a ver com o contexto.
Claros sussurros de celestes ventos levará o atento leitor — este aprendiz se inclui — a uma série de reflexões. Antes, no entanto, um resumo da história: começa pelo dia da morte de Lima Barreto, na trama chamado pelo primeiro nome, Afonso. Cruz e Souza é João da Cruz, casa com sua personagem Núbia, dos poemas de Broquéis.
A história de Cruz e Souza (João da Cruz) será acompanhada pela história da cidade de Nossa Senhora do Desterro, que adiante ganharia o nome de Florianópolis.
Após o fracasso de uma relação amorosa, João da Cruz deixa sua cidade, muda-se para o Rio de Janeiro, onde encontra Raul. Tornam-se amigos. Raul, o Pompéia, consegue um emprego para João da Cruz na Biblioteca Nacional. Cruz será acusado e processado por supostamente danificar um livro.
Raul, o Pompéia, é demitido e se mata; João da Cruz morreria mais tarde de tuberculose. Deixa cartas, numa delas confessa seu amor por Núbia, amor interdito pelo fato de João da Cruz ser negro.
O que é inquestionável em Claros sussurros de celestes ventos é o fato de esta obra brilhar sozinha em meio ao quase deserto criativo pelo qual rasteja nossa atual produção literária. Criatividade, imaginação, fabulação, literatura como literatura, nada a ver com alguns boletins de ocorrência ou exageros sentimentalóides que atulham as estantes das livrarias.
Comme il faut
Disse anteriormente que Claros sussurros estimulava uma série de reflexões. A primeira: Rufino não inventou a roda, sabe dar-lhe finalidade. Ao juntar personagens e autores não trouxe novidade, de certa maneira assemelhou seu trabalho ao de André Gide, que em O diário dos moedeiros falsos dialoga com os personagens, simultaneamente à criação do romance Os moedeiros falsos. Um dos personagens mais instigantes, e também merecedor da maior atenção de Gide, é Edouard, que pretende escrever um romance intitulado “Os moedeiros falsos”.
Edouard, assim como Gide, escreve um diário. As semelhanças entre esses escritos permitem ao leitor a percepção de um livro dentro do livro. Diário dos moedeiros falsos permite visualizar a construção dos personagens e deixa nítidas as marcas metaliterárias.
Em A arte do romance, Milan Kundera diz que o gênero se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso, e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários concede imensas áreas de expressão.
Outra reflexão diz respeito ao fato de Rufino juntar numa narrativa escritores mortos, tornando-os personagens, como fez Gonçalo M. Tavares ao criar um bairro, mais precisamente uma rua, onde moravam Kafka, Lorca e Joyce. A história traz referências a fatos das vidas desses autores.
Para concluir, tangenciando o gênero, podemos apontar relações com a reescritura. E aqui de uma forma sutil, conforme exige esse viés literário. Reescritura, sempre oportuno lembrar, muito bem apresentada em Lúcia, de Gustavo Bernardo, a partir de Lucíola, e Hamlet, de Marici Passini. Antes de continuar, acrescento que o tema reescritura tem merecido uma série de estudos acadêmicos e livros equivocados. Livros que reescrevem livros que já reescreveram livros. Um horror! Voltarei ao tema em ocasião oportuna. Espero.
Delicadeza, humor, sensibilidade e consciência social, abundantes na obra, levam este aprendiz a não abordar o tema vergonhoso do racismo. O autor abordou o caso comme il faut.
Agora, para encerrar, Todorov: “Todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria […]. Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero”.