Observador atento do cotidiano, o mineiro Ivan Angelo usa a realidade como matéria-prima para suas crônicas, contos e novelas. Nascido em 1936, na pequena Barbacena (MG), Angelo sempre andou de mãos dadas com o jornalismo e a literatura, com passagens pelo Correio de Minas e o Jornal da Tarde — neste como editor, secretário de redação e colunista — e escrevendo crônicas semanais para diversos veículos da imprensa brasileira. Seu segundo livro, Duas faces (1961), o colocou no primeiro time de contistas brasileiros. Em pleno regime militar, publicou o romance vencedor do Jabuti A festa (1975), no qual compõe um painel das gerações que chegam aos anos 1970 no país. Angelo voltaria a vencer o Jabuti com seu outro romance, Amor? (1995). Suas crônicas publicadas na revista Veja São Paulo desde 1999 lhe renderam a coletânea Certos homens (2011), que traz desde casos bem-humorados a crítica social, na melhor tradição desse gênero tão brasileiro. Nesta breve conversa, Ivan Angelo fala de seu cuidado com o acabamento do texto e sua preocupação em não aborrecer o leitor, dispensa obsessões literárias e indica um livro para a presidente Dilma Rousseff.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Não sei se é assim que funciona. Quando você está desenhando e pintando umas coisas quando criança, você não está “querendo” ser pintor, está “sendo” pintor. Acho que é assim mais ou menos com o escrever. A gente vai escrevendo e gostando daquilo, não pensa em futuro. Escrever nessa fase é tentar imitar. Quem leu e se encantou com o que leu, escreve para encantar. São garatujas, tudo bem, mas são expressões. Acontece alguém gostar daquilo, e esse gostar aqui e ali vira um incentivo. O escrevinhador sente-se encorajado, e a cada reincidência mais capricha, e coloca mais de si, e acaba querendo fazer principalmente aquilo, ser escritor. E aí começa a trabalheira toda.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Não cheguei a desenvolver manias. Hábitos talvez. Por exemplo, não abandonar uma frase enquanto não a sentir acabada. Até posso mexer com ela depois, bem depois, olhando o conjunto, mas não gosto de deixá-la estropiada no meio do caminho para consertar depois. Quanto a obsessões, definitivamente não as tenho.
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
No dia-a-dia é bastante coisa, jornais, suplementos, revistas, entrevistas, artigos, visões de mundo. Coisas que me situem.
• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, uma visão de Brasil sem mistificação.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Ter certeza de que vai valer a pena. Porque escrever é penoso.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Depende da leitura. Filosofia exige silêncio, mente bem alerta, é melhor ler de manhã. Jornais e revistas, qualquer barulho combina com a leitura. Poesia, literatura, é melhor ler num lugar tranqüilo, com janela, se possível com paisagem, para as pausas meditativas. História, biografia, vida moderna, vão bem com avião, salas de espera, sofá da sala, vida ao redor.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Encontrar as soluções, mesmo que não seja o texto definitivo, saber que é por ali que eu devo seguir, saber como vou desenvolver essa ou aquela passagem, com que estruturas e vozes narrativas vou trabalhar — isso já me faz ganhar dias de trabalho mais à frente, sem travas. Aí dá para dizer como Drummond: “Ganhei (perdi) meu dia”.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O acabamento. Sem dúvida nenhuma, é retomar o escrito depois do ponto final e trabalhar em cima dele. É quando você se debruça sobre o seu trabalho de escritor, interfere para melhorá-lo, se avalia, se ouve, se corrige, se envaidece, se critica. O acabamento é o seu último ato amoroso com aquele texto.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
São vários: a pretensão, a vaidade, a satisfação fácil, a pressa.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não convivo tanto com as pessoas do meio a ponto de sentir incômodos. Mesmo assim, meio à distância, me incomoda a louvação exagerada de quem não é lá essa coisa toda.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
No Brasil, Ivana Arruda Leite, autora de Falo de mulher. Fora daqui, o americano Raymond Carver.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível é qualidade muito forte para qualquer livro. Imprescindível é comida, água, ar. Mas gosto de ter e reler livros densos e criativos, de poetas. Destaco um poema febril, Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Destaco também um livro de história escrito por um poeta americano, In the american grain, de William Carlos Williams. Descartáveis são os livros escritos para o mercado, fiéis ao mercado, servis ao mercado. Como disse o velho Thomas Fuller, lá no século17, a cultura tem lucrado mais com os livros que dão prejuízo aos editores.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Acho que a falta de acabamento. E também certas misturas: política com literatura, teses com ficção, mensagem com poesia, racismo e preconceito em qualquer gênero.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não dá para descartar assunto. Se não for para defender posições, qualquer assunto vale. O que não vale mesmo é falar do que não conheço, e aí é muita coisa.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Uma guarita envidraçada da polícia na rodoviária de São Paulo. Um migrante estava sendo maltratado ali dentro e ninguém tinha coragem de falar nada, porque vivíamos acuados pelo regime militar. Foi inspiração para minha novela A casa de vidro.
• Quando a inspiração não vem…
O ato de escrever não depende de inspiração. A idéia inicial talvez, esses estalos que a gente tem. Mas, vá lá, chamar de inspiração esses momentos em que o texto corre mais fácil, momentos que nada mais são do que o resultado de preparo, de amadurecimento do assunto. Quando vai ficando difícil, há que se preparar de novo, pesquisar, retomar partes do texto para encontrar veios que não foram explorados.
• Qual escritor – vivo ou morto – gostaria de convidar para um café?
Maquiavel. A malícia dele haveria de me divertir.
• O que é um bom leitor?
O que pega o livro com o espírito de um gourmet, disposto a ter uma boa refeição. Esquece outros paladares e se prepara para novidades, sem preconceitos. O que relê as boas passagens, grava e degusta. E depois sabe motivar uma pessoa amiga a experimentar sensações com o mesmo prato, perdão, livro.
• O que te dá medo?
Viver além do confortável e do suportável.
• O que te faz feliz?
Doce de leite. O ócio produtivo, principalmente. O amor ou a literatura sem o ócio gera insatisfações e desencontros. Não misturo literatura ou amor com sacrifícios, martírios.
• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
Dúvida é se vai valer a pena. Certeza é que vai valer a pena.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
É não aborrecer o leitor. Posso até lhe dar trabalho com a leitura, de meditação, de consultas, de recuos, de desmontar truques, de escolher entre ambigüidades, mas evito tudo que me pareça aborrecido, longo, explicativo, sem graça, sem função, menosprezo à inteligência do leitor.
• A literatura tem alguma obrigação?
Ela, em si, não. Ela é. Quando não é, não é, embora alguns chamem de literatura o que não é. Os escritores é que têm obrigação com a literatura, com a arte literária.
• Qual o limite da ficção?
Como texto, a compreensão. Uma escrita esquizofrênica dificilmente será uma ficção literária, que depende de uma narrativa conseqüente dentro dos códigos conhecidos da linguagem, compreensível. Já uma pintura resultante de um delírio não pede compreensão, pode ser uma obra artística.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu lhe diria delicadamente: “Não temos líderes, senhor. Temos governantes, mas não são líderes. Aqui no Brasil temos uma governante muito respeitada e respeitável, que terá prazer em falar com alguém respeitoso que não é do partido dela”.
• O que você espera da eternidade?
Que mantenha os livros como manifesto da grandeza e da transitoriedade humanas.