O terror da incerteza

Don DeLillo realiza uma brilhante síntese sobre a precariedade da existência humana para reafirmá-la
Don DeLillo por Fábio Abreu
01/01/2013

We die of words.
George Orwell, Robert Conquest.

1.
Logo em seu primeiro romance, Americana (1971), Don DeLillo já mostrava um domínio invejável de uma arte que qualquer escritor sonha em ter: a do diálogo. Pegue-se um exemplo ao acaso. Uma mulher e um homem conversam na varanda de uma residência qualquer: “‘Você bebe muito?’, ela perguntou. ‘Bebo um bocado. Sim, eu bebo um bocado.’ ‘Você conhece um garoto chamado David Bell? Ele bebe uma quantidade incrível de bebida. Faz isso sempre. Ele realmente se agüenta.’ ‘Eu sou David Bell’, eu disse. ‘Fiquei confusa. Quis dizer Dick Davis.’ ‘Um lapso freudiano’, eu disse. ‘Dizem que se você usa o nome de alguém por engano significa que você gosta muito daquela pessoa.’ ‘Pare de pensar besteira.’ ‘Estava apenas brincando.’ ‘Seus pais são muito legais.’ ‘Os seus também. Você me acha bonito, Amy?’ ‘Isso é pergunta que se faça’”.

Está tudo aí: a conversa que esconde mais do que revela, a confusão com as palavras e os nomes, o “ruído” — palavra importantíssima para a futura obra de DeLillo — de comunicação entre as pessoas, o desejo de ser algo que não se pode ser simplesmente porque o mundo lhe é impenetrável. Este parece ser o caso de David Bell, o executivo de televisão que é o primeiro de muitos sobre o qual este escritor nascido no Bronx, em 1936, escreveria: um deslocado em seu próprio meio, sem uma identidade que lhe dê não só um sentido para continuar adiante, mas também uma autenticidade que poucos percebem que existe em um ambiente contaminado de máscaras e mentiras. Para suportar tudo isso, Bell torna-se um homem imediato, um típico “filisteu”, nos dizeres de Kierkegaard, que prefere a aparência à essência e que quer ter o controle de tudo que não lhe diz respeito. Até que chega o momento em que se descobre entediado e resolve abandonar o que construiu a favor de uma existência mais verdadeira, mesmo que seja à custa de uma jornada pseudo-espiritual, em busca dos estereótipos americanos (a estrada, as pradarias, os subúrbios, o patriotismo e a obsessão pela felicidade). O estopim dessa mudança é a incapacidade de lidar com a angústia diante da morte, em especial a da sua mãe, devastada por um câncer no útero, e de como isto o perturba no relacionamento com seus próximos e consigo mesmo.

O luto sufocado é a linguagem da dor que não pode ser dita porque implica que deve-se aceitar também a ambigüidade do mundo. Contudo, o mundo tem alguma espécie de expressão — mesmo que ela seja indizível. Este choque é representado de maneira satírica no segundo romance de DeLillo, End zone (1972), que mistura futebol americano e guerra nuclear, Beckett e Wittgenstein, a virilidade de um Hemingway e o ceticismo de um William Gaddis para contar a descida ao silêncio de Gary Harkness, um jovem que foge de seu passado violento para uma universidade no Texas e, de repente, descobre que o esporte que pratica é também uma metáfora para algo além das expectativas: a destruição impossível de ser articulada em uma linguagem considerada normal. A única possibilidade de comunicar aos próximos uma revelação tão aterrorizante fica entre o ascetismo espiritual e a honestidade do silêncio.

Este impasse entre essas duas estruturas — a da linguagem que busca uma expressão justa e a de um mundo que se revela em sua constante injustiça — está simbolizado na paralisia diante do real de Bucky Wunderlick, o superstar do rock’n’roll que resolve se esconder de tudo e de todos em Great Jones Street (1973), em que DeLillo também mostra o fascínio por um tema o qual o tornaria mais conhecido: a paranóia. Recluso em um apartamento infecto, perseguido pelos fãs, pelos empresários que querem apenas sugar o que resta de seu trabalho criativo e por uma seita misteriosa hippie que cria uma nova droga capaz de deixar afásica a população de Nova York, Bucky também percebe que a fuga e o silêncio são novas formas para renovar a relação que há entre o mundo e a linguagem. Após tudo isso, ele pode voltar a relacionar-se com o que está ao seu redor — e enfim redescobrir uma nova criatividade fundamentada em compreender o que seria a nossa própria extinção deste planeta.

E será em Ratner’s star (1976), um de seus livros mais ambiciosos e complexos, que Don DeLillo desenvolverá este temor da extinção humana em pinceladas civilizacionais e com a precisão de uma equação matemática. Em um jogo arriscado que brinca com os pólos do cientificismo (a ideologia de poder por trás da ciência que quer explicar tudo) e do misticismo (a ideologia da religião que acredita que tudo não passa de um inviolável mistério), o romance conta o cotidiano de uma equipe de cientistas que vive no subterrâneo e que pretende decifrar uma mensagem que pode (ou não) vir de outra galáxia, dentro de uma região misteriosa chamada Estrela de Ratner. A paranóia de Great Jones Street torna-se um enigma repleto de trocadilhos que homenageiam ninguém menos que o Lewis Carroll de Alice no país das maravilhas. Neste caso, o centro da equipe não é uma menina, mas um rapaz prodígio, Little Bill Twilig, um especialista em Pitágoras completamente incapaz de se envolver emocionalmente com quem quer que seja. Enquanto tentam descobrir o que significa a tal mensagem e o que acontece com seus próprios sentimentos, o excêntrico time científico não percebe que a destruição terrena já começou e de nada adianta decifrar códigos e resolver teoremas intrincadíssimos. Nos desconcertos do mundo e da linguagem que o reflete, o cientificismo e a superstição vivem de mãos dadas porque não passam de realidades alternativas que aliviam, mas não impedem a angústia surgida da impermanência de todos nós.

A consciência disto se une com a paranóia para resultar em um terceiro componente, cada vez mais explosivo: o terrorismo. Em Players (1977), DeLillo lida com um tema que lhe acrescentaria outro adjetivo nas análises literárias: o de profeta. Ao narrar a singela e tediosa história do casal Lyle e Pammy Wynant, o primeiro trabalhando em um banco de investimentos, a segunda em uma empresa de Manutenção de Luto localizada em um então recém-construído World Trade Center, temos a princípio o que parece ser mais uma análise do vazio existencial e do tédio doméstico. Mas depois de um atentado que ocorre no escritório onde Lyle trabalha, este começa a investigar o que aconteceu e passa a se envolver com um grupo terrorista que quer apenas “purificar a sociedade de seus males para que o terror então possa recuperar toda a nação”. O spleen dá lugar à violência cuidadosamente planejada — e, nesse meio tempo, Pammy se envolve com um casal de homossexuais e tudo parece alegre e maravilhoso, até o dia em que ela também se confrontará com outro tipo de destruição. Com seus toques de sinistra previsão, especialmente pelas sombras das Torres Gêmeas que perseguem a consciência dos personagens, Players discorre sobre o significado de seu próprio título: o fato de que todos somos apenas jogadores, seres que vivem de forma transitória e, depois que o jogo acaba, ou aceitamos ou sucumbimos à loucura.

A aceitação da transitoriedade do homem e (por que não?) do mundo onde vivemos pode levar ao questionamento irônico do palco onde tudo isso acontece: o da História. Disfarçado sob a roupagem de um thriller de espionagem, Running dog (1978) tem uma premissa insólita: o que leva um grupo de pessoas — um senador americano, um agente secreto e uma repórter de uma revista de contracultura — a ir atrás de um filme pornográfico que teria sido filmado no bunker de Adolf Hitler enquanto os aliados invadiam Berlim em 1945? Seria o fascínio pelo Mal? Seria uma mera perversão erótica? Seria o desejo de ter um furo de reportagem antes de todos? Ou seria algo mais: apenas o bom e velho controle, querer ter a História em uma espécie de coleira em que todos estão amarrados a todos e sem nenhum prazer em vista? DeLillo deixa essas respostas em aberto porque, na verdade, prefere a ironia e o sarcasmo: no fim, descobrimos que Hitler é mais uma caricatura do Mal, um sujeito comum que adora imitar ninguém menos que Charlie Chaplin para crianças que sequer imaginam o que acontece fora do bunker — e que a tal da História gosta mesmo de ficar fora do controle de todos nós, principalmente daqueles que sonham em possuí-la como uma mulher dissimulada.

2.
A partir da década de 1980, aobra de Don DeLillo, reconhecida como uma das mais interessantes da nova literatura americana, ganha uma intensidade luminosa que já estava em preparação nos livros anteriores. Ao ver que o desejo pelo controle é, no fundo, o desejo de pessoas que querem o que as outras também querem, ele se aprofunda na análise de uma rivalidade mimética que coordenaria o comportamento humano. Não apenas imitamos o que os outros querem, mas também queremos sê-los em sua essência aparentemente particular. Invejamos os próximos porque gostaríamos de tê-los em nossas mãos, visto que mal suportamos a precariedade das nossas próprias vidas.

Todavia, como um escritor pode articular essa dinâmica perturbadora em palavras claras e acessíveis? Este será o norte de DeLillo em Os nomes (1981), mistura de thriller político e reflexão sobre a pureza da linguagem em um mundo onde o caos parece ser a única certeza. Ambientado entre a Grécia e o Líbano, em um momento em que a Europa e o Oriente Médio já se encontravam em convulsão social e política, o romance conta como James Axton, um analista de riscos que não suporta o fato de se divorciar de sua bela esposa e se separar de seu filho prodígio de nove anos, fica obcecado com uma seita de assassinos — “os nomes” do título — que sacrifica idosos e indesejados pela sociedade em função de uma força que a modernidade julga ser incompreensível: o poder que há quando se nomeia algo. Se em End zone e Great Jones Street DeLillo debatia-se sobre os problemas de uma linguagem que deveria voltar à sua inocência original para exprimir a incoerência do cosmos e parecia chegar a uma conclusão próxima de uma afasia heróica, agora ele alcança, de alguma forma, uma síntese: a expressão de um mundo está intimamente relacionada ao poder que se origina de classificar e manipular qualquer coisa ao seu alcance. E o escritor tem apenas duas alternativas: ou abraça o horror do vazio (disfarçado de pureza e simbolizado pela imagem recorrente do deserto), destruindo quem estiver ao seu lado, ou vê o mundo com os olhos renovados, próximos aos da criança que, despreocupada, sabe que há algo chamado morte, mas a pressente em intimações de imortalidade que estão muito distantes para serem vividas como antigamente.

Esta síntese abre possibilidades para outro enigma que também o incomodou desde Americana: o fato de que vivemos em uma cultura que sempre se baseou na negação da morte (de acordo com Ernest Becker, uma das grandes influências de DeLillo) e, por isso mesmo, não consegue enfrentar a sensação de que os mortos estão observando constantemente os vivos, à sua espera, como se de tocaia. Tal angústia é a mesma que vive o professor Jack Gladley, estudioso de assuntos hitlerianos mas ignorante em alemão, quando percorre os supermercados e os shoppings da cidade com sua insólita família — composta por sua esposa Babette, seu filho assustadoramente precoce Heinrich e mais três moças que, entre outros hábitos, gostam de fingir que são vítimas de acidentes químicos e procuram remédios de tarja preta na lata de lixo. Este é o cenário de Ruído Branco (1985), romance pelo qual Don DeLillo finalmente ficou conhecido pelo grande público e — talvez infelizmente para a sua obra — por um culto literário que o colocou em classificações inadequadas como “pós-moderno”, “vidente do simulacro”, “escritor da alienação” e outros termos que fazem a delícia da academia. Graças a um estilo que parodia os tópicos do subúrbio e a um intimismo americano que nos lembra John Cheever, ele finalmente articula com clareza o “centro secreto” de seu corpus: seus livros são, no dizer de René Girard, “um longo argumento do princípio ao fim”, implacáveis em sua coerência e cerrados em um rigor ímpar, sobre o que é viver sob o terror da incerteza, em tempos em que decidimos criar falsas personas, existir sob a carapuça do filistinismo, numa pós-modernidade fajuta em seu germe, indecisa se devemos escolher entre a fé, a dúvida ou a ironia.

Isso não significa que os personagens de DeLillo ficarão impassíveis perante uma morte que se apossará de seus pensamentos. Eles nadarão contra a corrente — mesmo que outros sofram as conseqüências, seja o anônimo da esquina ou até mesmo o presidente dos Estados Unidos da América. Pelo menos assim pensa Lee Harvey Oswald, o assassino de John Kennedy e o eixo de Libra (1988), o épico histórico que parte de um evento conhecido por todos para aprofundar-se na dissecação da libido dominandi de sujeitos que acreditam que conhecem o sentido da História. Apesar dos paralelos que a crítica fez com Thomas Pynchon, DeLillo se mostra um escritor anti-paranóico por excelência: em primeiro lugar, não há mais ironia em quem se envolve numa trama como a de uma conspiração para assassinato; agora temos uma tragédia, já que, como o próprio narrador argumenta, “todas as tramas se encaminham para a morte”; e, em segundo lugar, DeLillo está mais interessado nas lacunas da História, nos espaços em branco que dão a impressão de que são mais do que meras coincidências ou sinais de um destino a ser cumprido. A História é um teatro de rivais em que um quer provar que a sua loucura é mais racional do que a do outro — e este crescendo só será resolvido com um bode expiatório (o próprio Lee Harvey), que, após ser eliminado pelo mafioso Jack Ruby, equilibrará a tensão oculta no tecido dos fatos e enfim criará outra versão do evento em que todos acreditarão, esquecendo-se de que, por trás de uma estrutura aparentemente lógica, há sempre uma caveira pronta para devorar o banquete.

A rivalidade mimética que cria um sentido para a História também molda as relações entre as civilizações, em especial o Ocidente e o Oriente. Este é o raciocínio perturbador de Mao II (1992), o “sermão geométrico”, de acordo com Martin Amis, que conta a descida aos infernos de um escritor recluso chamado Bill Gray (obviamente inspirado em J. D. Salinger), o qual se envolve com uma organização terrorista (uma referência ao caso Salman Rushdie?). Aqui, DeLillo faz uma de suas afirmações mais inusitadas: as relações escusas que existem entre arte e terror. Ao praticamente igualar o papel do escritor na sociedade ao do terrorista, ele deixa claro que a função da arte é nos fazer relembrar que, embaixo do manto da civilidade, borbulha o horror, sempre o horror. E como não conseguimos encontrar formas terrenas para suportar tal fato — afinal, como discorre o narrador em uma incrível cena de multidão que prova que DeLillo controla a técnica literária com mão de ferro, “quando o Velho Deus deixa o mundo, o que fazer com toda a fé que não foi utilizada?” —, sobra apenas a indiferenciação, o rebaixamento de todos os princípios, em que um se iguala ao outro, o Oriente copia o Ocidente, o primeiro usando o terrorismo como um dos inúmeros meios violentos para sufocar para si mesmo que não é nada original, enquanto o segundo abraça a falsidade como método, deixando permeá-la em todos os estratos, da arte (o quadro de Andy Warhol que dá o título ao livro e também inspira os terroristas) ao relacionamento entre as pessoas que anseiam viver em um rebanho onde ninguém é reconhecido por ninguém. DeLillo mostra que, no mundo contemporâneo, a morte é o menor dos nossos problemas; o que temos de fazer ninguém sabe nos dizer — ou melhor, ninguém pode nos dizer, porque, após o desaparecimento do Velho Deus, quem nos guiará para recuperar a experiência original que emoldura o pouco tempo que nos resta?

3.
A busca por esta experiência original é o mote inicial de Submundo (1997), a summa theologica de Don DeLillo. Romance caudaloso, que não fica nada a dever a um O arco-íris da gravidade (1974), de Thomas Pynchon, e que influenciaria depois os amplos painéis sociais de Jonathan Franzen e a saga criminal de James Ellroy, este é um livro em que seu autor quer provar a todos e, principalmente, a si mesmo que encontrou a síntese de todos os problemas abordados no passado. Para isso, usa e abusa dos instrumentos legados pela forma romanesca: flash-backs, flash-forwards; primeira e segunda pessoa do singular, terceira pessoa do plural; cortes, sobreposições, paralelismos, simetrias; adjetivos esparsos e exagerados, advérbios secos e elaborados; supressão de pronomes, excesso de conectivos; narrador onisciente, narrador repleto de ambigüidade; suspensão da descrença, pesquisa histórica minuciosa, arcos dramáticos com começo, meio e fim; elipses que truncam a narração e — last but not least — os habituais diálogos delillianos, repletos de ruídos, de falhas na comunicação entre personagens que não sabem mais o que querem porque descobriram que a História destruiu tudo o que poderiam realmente ter.

 

Esta História começa propriamente em um evento que precisaria ser relembrado por um romancista para vê-lo de volta à vida: no dia 3 de outubro de 1951, no meio do jogo decisivo entre dois times de beisebol (o esporte americano por excelência), os Giants e os Dodgers, o rebatedor Bobby Thomson consegue dar o que se chamaria “a tacada ouvida no mundo todo”, fazendo a bola sair do estádio dos Dodgers, então franco favorito, e sumir sabe-se lá para onde, dando assim a vitória ao seu oponente como se fosse uma espécie de “milagre” que ninguém consegue explicar. Onde estaria essa bola, um Santo Graal para quem deseja relembrar exatamente o que aconteceu naquele dia? É aqui que DeLillo prova que o romance enquanto arte pode ir além de qualquer registro histórico: ele imagina que a bola foi parar nas mãos de Cotton Martin, jovem negro que resolveu cabular aula e que, por acaso, recebeu o “amuleto” simplesmente porque estava no momento certo e no lugar certo. A partir daí, seguem-se 800 páginas em que acompanhamos, em detalhe e de forma retroativa, a linhagem de posse da bola, a começar pelo personagem principal do livro, Nick Shay, que, perturbado por um crime cometido na sua adolescência no Bronx, não sabe o que fazer de sua vida e, no meio de uma viagem de negócios para a empresa de manutenção de lixo para a qual trabalha, resolve deixar tudo de lado e visitar Klara Sax, um antigo amor do passado, mulher mais velha que também abandonou vários casamentos para realizar a sua vocação como artista, indo ao deserto de Nevada pintar o que restou de uma frota sucateada de B-52s, abandonada pelo Exército americano.

E isso é apenas o começo: naquele mesmo dia, enquanto a milagrosa tacada era dada, havia três celebridades importantes da época — Frank Sinatra, o comediante Jackie Gleason e J. Edgar Hoover, então o todo-poderoso homem do FBI, capaz de destruir reputações de minuto a minuto, se alguém fosse contra a sua vontade. Em outra prova de bravura técnica e ousadia existencial, DeLillo faz Hoover observar algumas páginas da revista Life que eram rasgadas pelos fãs dos Dodgers no exato momento em que Thomson dava o rebate e todos entravam em um frenesi de loucura. Nelas, ele percebe que há uma reprodução de O triunfo da morte, quadro de Pieter Bruegel. Para quem é obcecado pelo poder e pelo controle, Hoover sorri diante da mórbida coincidência; minutos antes, havia recebido a notícia de que, no dia anterior, a União Soviética fez o seu primeiro teste nuclear em algum lugar distante do Cazaquistão.

É nesta polaridade de opostos que se atraem — os Estados Unidos e o Império Russo Soviético, os Giants e os Dodgers, Nick Shay e Klara Sax, a história pessoal e a história global — que DeLillo cria um panorama paralelo da Guerra Fria cheio de personalidades intrigantes, ficcionais ou reais: desde a freira Irmã Edgar, evidente duplo de Hoover, repleta de manias e neuroses, mas que luta para não ser dominada pelo “fascínio da destruição”, passando pelo comediante Lenny Bruce, que, no meio da crise dos mísseis de Cuba em 1962, faz questão de lembrar aos americanos de que morrerão de qualquer maneira, até Albert Bronzini, ex-marido da jovem Klara Sax, filho de imigrantes italianos que caminha pelo Bronx dos anos 1950 e faz disso uma técnica de preservação de uma época que está prestes a desaparecer. Toda essa galeria fica à disposição do escritor para que ele faça o que nenhum historiador conseguiu fazer: recuperar, por meio do “eros da linguagem” (como o próprio DeLillo escreveu em O poder da História, ensaio publicado no New York Times quando Submundo foi lançado e que, de certa forma, é uma declaração de princípios), o suposto sentido da História que se esconde nos subterrâneos das nossas intenções e dos nossos erros, na contramão da “morte vasta e uniforme” que tenta triunfar sob cada escolha que fazemos.

Este sentido precisa ser decodificado não só pelo amor que o romancista tem pelos instrumentos sob o seu domínio, mas também pela concretude que evoca, por uma “física da linguagem” que se revela, afinal, na reflexão definitiva que DeLillo faz sobre os temas que sempre o angustiaram: a crença e o desespero, a fé e a dúvida, o poder terreno e o poder espiritual — e, como se tamanha amargura não bastasse, a luta constante contra o esquecimento, na procura pela experiência original que nos fundamenta.

Esta procura é dramatizada no final de Submundo, quando sabemos da triste e singela história da jovem Esmeralda, estuprada e assassinada aos 12 anos, e que se revela como uma espécie de santa aos olhos da alquebrada Irmã Edgar. Três dias após a sua morte, pessoas no Bronx presumem ver o seu rosto iluminado por instantes em uma marquise que anunciava uma nova marca de suco de laranja. Será um milagre, igual ao dos santos, ou apenas um êxtase meramente humano, como “a tacada ouvida no mundo todo”? Irmã Edgar, ao contrário do seu duplo homônimo do FBI, que se deixou intoxicar por um controle que nunca esteve em suas mãos, não consegue responder isso para si mesma. Morre no meio de suas interrogações — e então DeLillo fecha o seu gigantesco painel com chave de ouro, em um dos trechos mais belos da língua inglesa: lentamente, em apenas três páginas escritas com o estilo de quem guardava essas reflexões em seu coração e que agora enfim as revela ao leitor, começa a nos lembrar sobre os vários significados de uma palavra tão simples, apesar de ser sempre desejada. Trata-se da mesma palavra com a qual T. S. Eliot terminou o seu poema sobre o vazio do mundo moderno — The waste land (1922) — e com a qual, por meio de um singelo “sim”, Joyce queria dar a mesma intenção no ponto final de Ulysses (1922). Ela é o verdadeiro norte deste romance que, mesmo sendo classificado como pós-moderno, torna-se um objeto físico de linguagem porque evoca todo um passado específico (a própria formação de DeLillo) e nos dá o seguinte alerta: eis um mundo próximo do seu fim. Tal palavra é nada mais nada menos do que “paz”. E é graças a ela que Don DeLillo pôde finalmente limpar vários detritos que estavam no submundo da sua alma — mesmo que isso significasse escrever o “último suspiro do modernismo”, mesmo que fosse também o sinal de que a paz seria um breve milagre que duraria pouco, muito pouco.

4.
É justamente essa presciência de que vivemos constantemente em um mundo fadado ao desaparecimento que faz os críticos e os acadêmicos chamarem-no de “profeta”. Mas Don DeLillo não pode ser classificado em um adjetivo bombástico e fácil que faz a alegria de quem redige as manchetes dos cadernos culturais. Pode-se dizer que ele é, na verdade, um realista espiritual, alguém ligado a uma tradição “subterrânea” que começa aproximadamente com Dante Alighieri e se estende para sujeitos díspares e heterodoxos como Thomas Hobbes, Jean Bodin, Blaise Pascal, Mestre Eckhart, chegando até Nietzsche, Kierkegaard, Dostoiévski e, nos últimos tempos, Alexander Solzhenitsyn. Descontentes com as instituições políticas e culturais que os circundam, estes realistas se distanciam intelectualmente delas e começam a observar o real além do pequeno “mundo simbólico” (cosmion) criado pelas circunstâncias, descobrindo outras formas de expressão que, muitas vezes, desagradam as mesmas pessoas que não estão preparadas — seja por ignorância, medo ou interesse — para ouvi-los de alguma forma.

Pois foi justamente quando aconteceu o evento para o qual toda a ficção de DeLillo parecia nos preparar — o ataque ao World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001 — que a intelligentsia decidiu que suas previsões estavam fora da validade. Estavam errados, é claro. É uma situação semelhante pela qual George Orwell passou em seus últimos anos: após ter escrito A revolução dos bichos (1945) e 1984 (1949), os romances mais lúcidos sobre o que aconteceria no restante do século 20, ele, que era o queridinho de muitos intelectuais considerados progressistas, foi colocado de escanteio, como se sua ficção fosse apenas um produto da imaginação, não o diagnóstico de uma realidade que já acontecia há muito tempo e que poucos ousavam perceber. Como o historiador Robert Conquest afirmou em um de seus raros poemas, justamente dedicado à figura do escritor inglês — “We die of words. For touchstones he restored/ The real person, real event or thing.” (“Morremos de palavras. Ele restaurara a pessoa, o evento ou a coisa real como pedra fundamental.”). DeLillo faz o mesmo: ele não antecipou nada; como todo escritor que se preze, fez o que tinha de fazer: manteve o mundo que desaparecerá em uma linguagem que guarda o resto de pureza das nossas memórias, mesmo que isso implique não suportar mais o fardo da morte ou, como o próprio afirmou no título de sua meditação sobre o 11 de Setembro, “as ruínas do futuro”.

Quatro anos após Submundo, Don DeLillo deixa de lado os grandes painéis históricos e dá início a uma série de romances mais compactos, mais concentrados porque, para ele, a nossa percepção do tempo também se tornou mais breve, mais próxima do nosso próprio fim. Esta é a idéia dominante em A artista do corpo (2001), Cosmópolis (2003, adaptado para o cinema em 2012 por David Cronenberg), Homem em queda (2007) e Ponto ômega (2010): a de que a linguagem e a morte estão intimamente relacionadas, a de que realmente morremos pelas palavras que dizemos e pelas palavras que jamais diremos. Esta busca por uma origem de onde tudo nasce e para onde tudo terminará é o que liga os personagens tão díspares desses quatro livros — como a amargurada Lauren Hartke, a artista que usa o seu próprio corpo para articular o luto pelo esposo que se matou sem explicações; o jovem multimilionário Eric Parker, que quer cortar o cabelo e continua em estupor quando escuta pela enésima vez que tem uma próstata assimétrica; o desorientado Keith Neudecker, um dos poucos sobreviventes do ataque ao World Trade Center e que tenta manter-se são em uma cidade que não consegue mais suportar o trauma que a feriu; e o überintelectual Richard Elster, capaz de justificar uma guerra inteira em um sistema lógico de pensamento, mas que fica inútil ao lidar com o desaparecimento súbito de uma pessoa querida.

Todas essas pessoas levam uma vida errante, independentemente do conforto material, ao mesmo tempo em que acreditam que na busca do fundamento que os sustenta devam possuí-lo como se fosse algo passível de controle, conforme os seus desejos. Desconhecem que a única saída para tal impasse é aceitar o terror da incerteza, reconhecer em si mesmos que não passam de estrangeiros e peregrinos nessa terra. Poucos têm tal fortaleza interior: a condição humana, como bem resumiu Eric Voegelin em A nova ciência da política, “equilibra-se em um fio muito tênue, em que os constantes períodos de uma espera por algo que não se sabe o quê, repletos de aridez e enfado, culpa e desespero, desamparo e esperança quando não há mais esperança, não escondem o tremor diante de uma certeza que, se conquistada, pode ser mais uma perda”. Este assombro simultâneo da vida e da morte nos causa pânico e somos obrigados a escolher entre duas vias: ou enfrentar o pesadelo da criação ou admitir que esta tenha uma harmonia invisível que ainda será revelada.

Parece que DeLillo fez esta última escolha em seus últimos livros — e isto fica claro no seu único volume de contos, The angel Esmeralda: nine stories, lançado no ano passado nos EUA. Ao nomear esta coletânea com o título da história da mesma menina que unia as crenças subterrâneas do epílogo de Submundo, ele esclarece a quem quiser que, sim, apesar do sussurro final, o escritor é alguém que resiste, sempre contra o poder das instituições, do ser humano, da estupidez e até mesmo da indesejada. Mas ele não abandona os evidentes sinais apocalípticos: o fascínio pelo terrorismo mostrado em um conto assustador como Baader-Meinhof é simétrico ao assombro pela precariedade das coisas descritas em The ivory acrobat e The runner — e a velha e boa rivalidade mimética continua a ser dissecada em Midnight in Dostoiévski e Hammer and Sickle (amostras de que DeLillo é também um mestre da narrativa curta), enquanto o mistério da incerteza ainda reverbera nos parágrafos finais do enigmático The starveling.

Nesta arte da resistência, o que impressiona mesmo é a normalidade da conduta do próprio DeLillo. Apesar de já ter sido integrante do “partido do silêncio” de Pynchon e Salinger ao recusar várias entrevistas (“Não quero falar sobre isso”, avisou certa vez a um jornalista do New York Times que o procurou especialmente para um perfil a seu respeito), hoje ele se dá ao luxo de conversar com quem e quando quiser. De resto, caminha incógnito pelas ruas de Manhattan e do Bronx; tem uma disciplina espartana que lhe permite escrever todos os dias; é casado com a mesma esposa há mais de 40 anos; não tem filhos, mas escreve cartas paternas aos jovens escritores que sempre lhe pedem um conselho. O que poucos imaginam é que, sob o disfarce de um homem comum, há o artista que vive com fome insaciável, na procura atormentada pela garantia dos bens que se espera e pela prova das realidades que não se vêem. Cumpre-nos agora deixá-lo em paz para que ele nos mostre quais serão os nossos submundos, as palavras pelas quais morreremos e, sobretudo, pelas quais permaneceremos.

Don DeLillo
Nasceu em 1936 na cidade de Nova York. Um dos mais importantes escritores americanos contemporâneos, recebeu diversos prêmios, entre eles o National Book Award (1985), o PEN/Faulkner (1992), o Jerusalem Prize (1999) e a medalha Howells da Academia Americana de Artes e Letras (2000).
Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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