Fantasma inconvincente

"O espírito da prosa" não satisfaz como discussão profunda nem como depoimento pessoal
Cristovao Tezza. Foto: Guilherme Pupo
01/01/2013

A ficção é o mais humano dos gêneros textuais: assim como nós, não tem nenhum motivo razoável para existir. É difícil justificá-la e explicá-la, contudo, ela segue existindo e perseverando. Em toda a história da literatura (em sua configuração moderna ou em outros contextos), milhares de mentes de inteligência surpreendente e de temperamento pelo menos um mínimo obsessivo se debruçaram sobre os problemas da ficção e da literatura, de suas liberdades e limitações, características aparentemente intrínsecas ou meramente conjecturais.

O novo livro de Cristovão Tezza vem se juntar a esta coleção de esforços interessantes e potencialmente inúteis. O autor parte de uma dupla experiência: a de acadêmico entusiasta de Bakhtin (dentre os vários grandes nomes da crítica literária, um dos mais argutos e pertinentes) e a de romancista de mais de uma dúzia de livros, recentemente alçada ao status de inequivocamente bem-sucedida após as vendagens e premiações de O filho eterno. Em O espírito da prosa, Tezza investiga em suas leituras e em sua escrita os elementos que enxerga de mais interessantes na atividade literária, defendendo e atacando causas e relatando parte de sua vida produzindo e tentando produzir livros.

O volume abre com uma espécie de aviso às avessas, o tom de desfeita parecendo mero disfarce para uma defesa preventiva diante das possíveis críticas às argumentações desenvolvidas no livro: temos nas primeiras linhas um escritor feliz por não transitar mais como profissional nos meios acadêmicos, se desculpando por seu relato talvez carregar algumas marcas (chatas) da prosa acadêmica. Embora sem dúvida seja da experiência de todos que passam pelo mundo acadêmico certa esterilidade estilística ou até mesmo de idéias em várias de suas manifestações, prosseguindo na leitura do livro fica visível este aspecto meio triste de defesa prévia, como quem não se sente na obrigação de argumentar com mais detalhe e especificidade já afirmando não se tratar de um estudo acadêmico.

Falsa minoria
Intelectualmente, O espírito da prosa se coloca como uma defesa do realismo, da narrativa, do livro que narra coisas da realidade, gente (parecida com as) de verdade. Tezza se expressa com veemência contra certo viés da literatura mais recente, que ele aponta como muito dominante nos últimos anos, o qual tende a valorizar o aspecto mais conceitual da literatura, o que há de mais abstrato.

O que torna sua insistência meio problemática é o fato de que, pelo menos a meu ver, nunca ocorreu esta predominância do abstrato e do conceitual na literatura, ainda mais se falarmos da brasileira. Tirando Sérgio Sant’Anna, entre os já consagrados, e, entre os que parecem estar em vias de consagração, Nuno Ramos e Joca Reiners Terron, quantos outros autores de algum renome em nossa literatura poderíamos apontar como valorizadores de uma estética do conceito? A maioria esmagadora dos nomes de destaque no panorama contemporâneo brasileiro de prosa literária, tida e lida como séria, são realistas no sentido defendido por Tezza: Milton Hatoum, Rubens Figueiredo e, dentre os mais jovens, Daniel Galera. Até Bernardo Carvalho alcançou maior sucesso de vendas e prêmios ao trocar seus livros com personagens nomeados por letras por histórias de deslocamento geográfico e de identidade bem mais palpáveis. Se passarmos ao panorama internacional, seria risível colocar em competição o número de edições e traduções de Philip Roth ou Ian McEwan (ambos mencionados nominalmente em O espírito da prosa) com as de John Barth ou Donald Barthelme.

Os nomes por trás desta predominância do abstrato apontada de forma meio raivosa Tezza não menciona, protegido pela vagueza possível do preâmbulo anti-acadêmico. Parece ser uma característica moderna (e talvez dê um estudo, acadêmico ou não-acadêmico) a de que quase todo discurso em defesa de qualquer causa precisa se mostrar minoritário (se colocando na vanguarda extremada ou no último bastião) ou se desenvolver predominantemente na negativa: contra isto, contra aquilo, enumerando defeitos do lado oposto mais do que construindo seu próprio lado. É um aspecto indigesto no livro que se mostra claro até para um leitor como eu, que diante da escolha absurda e desnecessária entre as duas possibilidades de expressão literária ficaria primeiro com a narrativa antes de com o conceito. Felizmente, autores como Don DeLillo ou Sérgio Sant’Anna já mostraram ser inteiramente possível trabalhar as duas vertentes.

Cristovao Tezza. Foto: Guilherme Pupo

Generalização
Outra parte problemática é a generalização de sua visão particular de literatura e de sua produção — tomando uma característica que de fato é desenvolvida em muitos autores de grande valor e também com ótimo efeito em seus romances — como sendo algo intrínseco à prosa, um aspecto ecumênico, o tal espírito da prosa (e o texto repete várias vezes estas três palavras, alçando a expressão à altura de essência transcendental, talvez querendo cunhar uma categoria). É um aproveitamento das idéias interessantes de Bakhtin, a de que o romance tem uma potencialidade para abarcar várias vozes, várias idéias, várias mentes e pensamentos em um todo mais ou menos uno, ao mesmo tempo amplificando o contraste e possibilitando a convivência de forças diferentes.

Seria por meio desta potencialidade do romanesco que Dostoiévski teria sido capaz de compor seus romances que encenam debates metafísicos, políticos e pessoais, com cada personagem desdobrando longamente suas visões de mundo; mesmo com seu pensamento de cristianismo radical e se tratando de livros de expressão predominantemente ideológica, Dostoiévski conseguiu angariar enorme admiração de ateus como Freud e Nietzsche. O poético (textos em verso), na visão de Bakthin e reiterada por Tezza, seria incapaz ou pelo menos pouco propenso a este tipo de expressão múltipla e una.

É certamente um ponto de vista de algum interesse e valia, mas alçá-lo a altura de certeza em vez de tendência, de categoria qualitativa no lugar de descritiva (dentro de seus respectivos gêneros) é ser eventualmente forçado a lidar com exceções que por ventura surgem e minam a solidez das categorias (e surpreende que ainda existam os que buscam certezas perfeitas ao falar de literatura). Como pensar no poético como essencialmente ou necessariamente monológico diante da poética de Francisco Alvim, de seus mini-poemas que freqüentemente dão voz aos preconceitos, aos recalques, à mesquinharia (Olha: “um preto falando/ com toda clareza/ e simpatia humana”; ou Viúva: “Luís me amava muito/ muito mesmo/ apesar de suas amantes/ foi por isso que nunca me separei”)? É possível ainda pegar um exemplo já canonizado (citado por Tezza como sendo particularmente próximo de sua sensibilidade), Drummond em Morte do leiteiro, em que a voz do personagem-assassino ressoa quando o poeta escreve o verso “Ladrão? Se pega com tiro” ou “Meu Deus, matei um inocente” (sem qualquer marcação de verbo dicendi). Existirão os que sustentem que Drummond seria Drummond, um caso à parte, mas como se conseguiria defender o cânone como exceção?

Voltando para prosa, é possível ainda citar John Updike e Philip Roth, romancistas de altíssimo renome e de vários prêmios, freqüentemente apontados por alguns de seus leitores mais críticos (e mesmo por alguns de seus admiradores) como sendo autores fundamentalmente egocêntricos, de habilidade literária (composicional, estilística) e fôlego intelectual impressionantes, mas de abrangência e visão humanas relativamente estreitas. O próprio Roth tem quase ou mais de um terço de seus 30 livros dedicados ou ao seu alter-ego Zuckerman ou a outra variação de si mesmo (com saldos literários que vão do grandioso ao bem longe disto). David Foster Wallace, em resenha de um romance de Updike, qualifica os dois (junto com Norman Mailer, hoje já em vias de ser esquecido) como “os grandes narcisistas”, falando que estes autores em parte são apenas a expressão de alta qualidade literária de uma geração ensimesmada, egoísta e meio cretina, mostrando como a expressão literária de boa qualidade pode servir de respaldo a posturas negativas tanto quanto de enfrentamento e busca por mudança. É possível, portanto, alcançar excelência (ou pelo menos renome) em romance sem aderir realmente a esta potencialidade (e não característica intrínseca) do multilingüismo romanesco, é possível escrever romances bons e sólidos de forma centralizada, monológica, assim como é possível fazer soar com naturalidade a voz do outro por meio de versos.

Auto-entrevista
Em uma entrevista, o próprio Foster Wallace questiona a utilidade ou o valor de entrevistas, falando que ficcionistas de maneira geral ficam mal-servidos neste formato, que impõe uma resposta definida, direta e imediata a perguntas específicas, e defende que se escritores achassem que aquilo que seriam capazes de produzir de mais interessante se desse neste tipo de contexto discursivo eles não teriam se tornado ficcionistas. O livro inteiro de Tezza parece uma grande entrevista por escrito, em que o autor também escreve as perguntas. Nele, não encontramos idéias novas e nem mesmo a melhor expressão do estilo costumeiramente límpido, sóbrio e eloqüente de romances como O fotógrafo ou Uma noite em Curitiba: em O espírito da prosa, as frases por vezes crescem e crescem esbaforidas como que tropeçando em suas próprias vírgulas. O que há de teórico no livro existe de forma mais interessante lendo diretamente Bakhtin, a parte mais proveitosa do texto de Tezza ficando na narração relativamente infreqüente de sua experiência de vida pessoal com sua obsessão de se tornar um autor, que por sua vez também encontramos mais bem expressada em outras partes, como em seu romance O filho eterno.

O livro é bem-intencionado mas sem novidade (passando longo tempo, por exemplo, falando de como o que temos por literatura hoje é resultado de um longo porém recente acúmulo histórico, coisa que qualquer aluno chinfrim de graduação em Letras já sabe), ficando como uma iniciativa supérflua até para os que, como eu, admiram boa parte da obra ficcional de Tezza. Talvez o preâmbulo antiacadêmico sirva também de aviso de que o livro é principalmente endereçado aos que conhecem pouco dos caminhos críticos consagrados quando se discute literatura.

Não que eu acredite que todo esforço crítico tenha que passar pelos meios acadêmicos (os textos de James Wood, por exemplo, são ótimos e não estão neste molde; esta resenha, por exemplo, também não é um texto acadêmico). Atravessei as páginas do livro com o gosto de decepção, me deparando com uma obra que acrescentou pouco ou quase nada ao assunto. Embora seja realmente necessário admitir que acrescentar ao assunto não seja algo propriamente muito fácil: creio que os diversos mistérios da expressão literária jamais serão realmente desvendados, e talvez seja por esta fatia significativa de desconhecido que a literatura é um exercício minimamente possível, possivelmente até necessário.

O espírito da prosa
Cristovão Tezza
Record
224 págs.
Cristovão Tezza
Nasceu em 1952, em Lages, Santa Catarina. Começou a publicar em 1979, tendo seu primeiro sucesso literário com o romance Trapo, de 1988. É autor de mais de uma dúzia de livros, a maioria deles romances, e alcançou enorme sucesso editorial e de crítica com O filho eterno, de 2007.
Breno Kümmel

É escritor.

Rascunho