A crítica literária estabelecida é fundamental para o entendimento da história dos livros e da leitura. Não fosse assim, obras de autores como William Shakespeare e Miguel de Cervantes permaneceriam isoladas a despeito de sua qualidade e, principalmente, profundidade na compreensão do ser humano para além das ciências sociais e médicas, por exemplo. Nesse sentido, muito embora o multiculturalismo, com seus relativismos estéticos, tenha buscado eliminar aquilo que um dia se chamou de cânone com o objetivo de dar voz àqueles que não foram lidos/ouvidos, os livros outrora celebrados pela crítica literária como clássicos ainda resistem, como se fosse uma confirmação do adágio do teórico francês Roland Barthes no breve ensaio O prazer do texto. Entretanto, por mais que a crítica possa estar correta, nunca é demais dizer que a leitura de um clássico, por si só, é uma experiência que deve ser encarada tal como uma experiência de formação. A propósito desse ideário, nada mais indicado do que a obra-prima de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, que ora é relançada pela Editora 34 num presente aos amantes da leitura.
Presente porque, entre outras coisas, se circunscreveu à lista de alguns críticos nos pacotões “Natal com leitura”, conforme foi possível acompanhar nos diversas resenhas publicadas nos jornais Brasil afora. Trabalho muito eficaz do ponto de vista comercial, porém que pouco ou nada tem a ver com a experiência oriunda da literatura. Isso porque a obra de Goethe pertence, de um lado, ao universo dos clássicos, tal como foi abordado no parágrafo anterior, e também porque, de outro, é considerada a gênese do chamado romance de formação, o Bildungsroman, segundo os críticos gostam de grifar. Para os leitores que não se identificam com os rótulos, uma longa apresentação do professor Marcus Vinícius Mazzari se faz elementar, justamente porque coloca os devidos pingos nos is. Em síntese, para que possamos seguir para o outro parágrafo e tratar do romance de Goethe, Mazzari explica a gênese desse tipo de história, pontuando a sua importância para o desenvolvimento da literatura. É dele a seguinte conclusão: “o romance de formação é a maior contribuição da literatura alemã à literatura ocidental”.
E qual a razão para tanto? A influência do texto de Goethe para com os outros clássicos, a saber A montanha mágica, de Thomas Mann, e O tambor, de Gunter Grass, talvez seja a resposta mais imediata. E, como já foi aventado nas primeiras linhas desse texto, a fortuna crítica que se produziu é a prova mais conclusiva de que este é um dos livros formadores da história da literatura ocidental. É pena, tão somente, que tamanha deferência tenha afastado o leitor deste livro. Pois, se um dos problemas da crítica é dialogar exclusivamente com iniciados, não é absurdo afirmar que apenas os experimentados em disciplinas como Introdução aos Estudos Literários têm sido os privilegiados pela leitura da trajetória do jovem Wilhelm Meister, um rapaz que se entrega de maneira apaixonada a todas as experiências que a vida lhe proporciona, sempre em busca de um ideal estético, artístico e, por fim, cultural com o objetivo de alterar um caminho já traçado pelo fato de seus pais serem comerciantes enquanto ele, o jovem Meister, almejava a carreira de ator de teatro.
Fogo pálido
Os incautos podem inferir, apressadamente, que se trata de mais um sonho de um garoto em busca da embriaguez do sucesso. Essa percepção é, no mínimo, um anacronismo. Isso porque a obra de Goethe não obedece a tal reducionismo intelectual. A busca do jovem Meister, observa-se já nas primeiras páginas, é de cunho mais profundo e menos óbvio. Nada que se resuma às páginas da vida, ou a qualquer celebridismo imediato. Como escreveu a filósofa alemã Hannah Arendt no ensaio Entre o passado e o futuro, o entretenimento é um fenômeno dos homens, enquanto a cultura é um fenômeno da vida. Esse paralelo funciona com exatidão no caso de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, especialmente porque é a vida de Meister que se torna o objeto do livro, não tanto pelas suas particularidades, ou causos da vida privada, mas porque é a partir de cada acontecimento que os leitores observam no protagonista de que forma a sarça que arde na juventude se transforma em fogo pálido, assim como muitos dos sonhos de uma época viram espasmos num futuro amargo e menos próspero.
Tais conclusões também parecem evidentes demais para uma obra que se arroga como alta literatura, como os críticos a definem. Com efeito, é aqui que a história entra em cena e o leitor é profundamente tragado para uma narrativa aparentemente simples na sua estrutura (não há jogos literários ou quaisquer outras artimanhas do tipo). Assim, para atrair a atenção do leitor, por mais anódino que possa soar, o autor investe numa seqüência de atos absolutamente articulados com a estrutura já apontada no título. É dessa maneira, portanto, que o leitor entra em contato com os supracitados sonhos do jovem Meister, em sua busca por uma vida menos ordinária e, ao mesmo tempo, mais intelectual; prosaica, porém plena de sensações e estímulos de um espírito cultivado; anormal para o homem comum, mas de acordo com os princípios de Wilhelm Meister. E o que era para ser uma trajetória comum, de repente, torna-se uma síntese de como a literatura pode refletir os anseios de uma geração ou, num aspecto mais amplo, de uma juventude.
Obviamente, o livro não é um memorial ou um relato autobiográfico. Cumpre lembrar, no entanto, que, muitas vezes, é a ficção a tradução mais completa do ser humano. Pode ser falha do ponto de vista factual; contudo, não é isso que importa em um romance como esse de Goethe. Pois são as sensações causadas pelo diálogo, e não o diálogo em si, que importam. Do mesmo modo, são as circunstâncias apresentadas que trazem ao leitor a noção de complexidade do mundo e também das relações humanas. A ardente paixão de Meister por uma atriz logo no primeiro livro (o romance é dividido em oito livros, que funcionam como se fossem “movimentos” de uma longa sinfonia) dá lugar a uma frustração que, se não é enfatizada de maneira textual, está implícita nas considerações do narrador, conforme se lê a seguir:
[…] tudo aquilo que se mostra acabado, concluído, não se pode absolutamente reter nossa atenção, sobretudo quando já havíamos profetizado, desde o princípio, um desfecho desastroso à empresa. Eis por que não iremos entreter nossos leitores com minudências a respeito da dor e da miséria que se abateram sobre nosso feliz amigo quando viu tão inesperadamente destruídos suas esperanças e desejos.
À medida que a trajetória de Meister toma corpo nas mais de 500 páginas, o que se lê não é a desilusão e a perda de esperança ou a conversão de um rapaz, como se costuma dizer, “engajado” em um cínico. Antes, o que se lê é o relato comentado de uma trajetória apaixonada, repleta de altos e baixos, na qual seu principal protagonista se envolve e, de certa forma, consegue arrebatar o leitor, a ponto de fazê-lo refletir de maneira aguda a propósito de acontecimentos que muitos consideraríamos prosaicos. Não é absurdo pensar que muitos já vivemos em circunstâncias não necessariamente idênticas, mas que, em muitos casos, passíveis de paralelo com a história de Wilhelm Meister. E antes que alguém diga o chavão, a arte não imita a vida, mas são os homens que representam cópias imperfeitas do ideal existente na literatura — para ficarmos neste exemplo pontual.
Exemplos, aliás, não faltam. E este texto poderia estar pleno deles, se isso não fosse para lá de enfadonho e se, ao fim e ao cabo, o leitor não tomasse o livro como mais “importante” do que ele é. A deferência, nesse caso, pode ser pernóstica. Porque o papel da crítica é importante na medida em que não afasta o leitor da obra, funcionando, entre outras coisas, como agente intermediário. Nesse sentido, a belíssima edição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (com a definitiva tradução de Nicolino Simone Neto), mais do que referendar a opção dos críticos pelo cânone literário — em detrimento de certa linha de estudos culturais —, é obra fundamental para a compreensão da literatura e, em certa medida, para entender o desenvolvimento das idéias da civilização.