António Lobo Antunes lançou recentemente em Portugal seu 19º romance, Ontem não te vi em Babilónia. Em entrevistas concedidas à imprensa portuguesa, o autor tem afirmado que não pretende continuar escrevendo por muito mais tempo, e tem dúvidas se alcançará seu Grande Romance, aquela obra-prima que todo escritor almeja e cuja sombra o persegue durante toda sua carreira. De qualquer modo, seus depoimentos chamam atenção principalmente por certo teor revisionista de quem analisa o próprio percurso como uma grande trajetória evolutiva, o que significa relativo menosprezo por suas obras iniciais. Lobo Antunes olha para o passado e diz que não se identifica com os primeiros livros, e que se pudesse voltar atrás teria começado direto por O esplendor de Portugal, seu 12º romance.
Difícil dizer com certeza se esta postura é apenas a exibição de uma modéstia falsa e afetada, ou de uma invejável e desinteressada consciência do próprio projeto literário. Em última instância, isso importa pouco; mas é preciso assumir que as transformações que a prosa de Lobo Antunes atravessou em seus quase 30 anos de carreira são de fato visíveis. O que não se deve é relegar suas obras iniciais, como parece sugerir o autor, ao mero status de rascunhos ou exercícios literários mal-acabados. São muito mais do que isso.
Memória de elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do inferno foram lançados em um prazo muito curto, entre 1979 e 1980. Enredos e temas se assemelham: nos três romances, a ação transcorre em curto período de tempo (cerca de um dia) enquanto o protagonista, um médico psiquiatra que tem muito de Lobo Antunes, às vezes até o nome, rememora sua vida. O texto é essencialmente um longo monólogo interior, em que se entrelaçam memórias da infância, da família, do hospital psiquiátrico, da guerra colonial em Angola.
Lançado agora no Brasil, Conhecimento do inferno não parece estar entre os títulos mais festejados do autor. Talvez exatamente por ser o fecho de uma assim chamada trilogia, carregue certa impressão de cansaço da forma ou do tema adotados. Essa impressão é falsa: trata-se de um grande romance. Além disso, a leitura em conjunto dos três livros promove uma rica visão de como obsessões formais e temáticas de um grande autor podem adquirir novos contornos, em um rico jogo de auto-referência e reavaliação literária. Jogo que, no limite, persiste em seus livros até hoje.
Muitas vezes, um bom romance começa na epígrafe. A de Conhecimento do inferno é a transcrição do trecho de uma resenha publicada no The Quarterly Review, em 1860, sobre um romance de George Eliot. O resenhista, conservador e rigoroso, condena o tipo de ficção que se ocupa de vícios, crimes imaginários, fantasias e perplexidades, assuntos que podem invadir e corromper as mentes dos leitores, “com o conhecimento desnecessário do inferno”. Em certa medida, (re)conhecer o inferno é precisamente ao que se propõe a literatura de António Lobo Antunes.
O enredo gira em torno de uma viagem de carro que o narrador empreende pelo sul de Portugal, do Algarve em direção a Lisboa. Cada localidade que atravessa corresponde aproximadamente a um capítulo do livro, até a chegada na casa dos pais, na madrugada do mesmo dia. A ação dura, portanto, parte de uma tarde e de uma noite. Como nos romances anteriores, a memória pode ser deflagrada voluntária ou involuntariamente, por imagens ou palavras que remetam, mesmo que de maneira tortuosa, a eventos da infância do narrador, da guerra colonial, da família. A rememoração, porém, nunca é linear e é sempre carregada de um alto grau de estranheza. Colabora, para esse estranhamento, o requinte dos detalhes e de certas metáforas incomuns que fazem de objetos cotidianos imagens aterradoras, provocando a transfiguração quase surreal do cenário e dos personagens.
Logo no início do romance, por exemplo, chama atenção a artificialidade caricatural da paisagem. Na região de veraneio, tudo é falso, e apenas os turistas estrangeiros parecem não se dar por isso: “O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem”. Sob o “sol de papel”, os turistas compram “colares marroquinos fabricados em segredo pela junta de turismo”, e consomem “bebidas inventadas em copos que não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uísques fornecidos aos figurantes durante os dramas da televisão”. O narrador, rancoroso, não poupa a vulgaridade das classes média e alta, ao atravessar os lugares “onde pessoas de plástico passavam férias de plástico no aborrecimento de plástico dos ricos, sob árvores semelhantes a grinaldas de papel de seda”.
Torna-se evidente o contraste destas imagens kitsch com as impactantes memórias do narrador. Em Conhecimento do inferno, prevalecem as lembranças de sua passagem pela guerra colonial em Angola e da experiência no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, onde ingressou em 73, “para iniciar a longa travessia do inferno”.
Sem noite
Um episódio em particular merece especial atenção. Na África, um nativo ensina ao narrador que em Lisboa não há noite, e que o dia europeu se divide em dois: o do sol e o dos candeeiros. Já Angola, diz o narrador, “é um país de leprosos e de treva, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas (…) É o país onde os defuntos assistem sentados aos batuques, frenéticos da presença invisível dos deuses”. No país da guerra, os homens são “animais de sombra”, e a natureza assume contornos de um pesadelo sombrio. Em Portugal, contudo, o narrador reencontra as sombras e o pesadelo nos recônditos do hospital, onde a noite se esconde. Nas esquinas dos corredores, na prática médica ou nos efeitos dos remédios encontram-se “absolutas trevas, de um negro tão completo como os das noites dos cegos, cujas órbitas se assemelham a pássaros defuntos estendidos nas gaiolas das pestanas”.
Mas o tom grave e de pesadelo dessas imagens ganha ares cômicos em diversas passagens. Em relação aos livros anteriores, em Conhecimento do inferno é mais evidente o tom de zombaria, de uma mordacidade que não dispensa imagens fortes e não poupa ninguém, principalmente a classe médica. O conhecimento dos médicos é reduzido a “palavrões imbecis” ou um “Reader’s Digest pretensioso” e sua atividade é comparada à da Inquisição. Pessoalmente, seus colegas são verdadeiras caricaturas sinistras: uma médica possui feições de égua, uma “psicóloga feia” esconde “múltiplos membros aracnídeos de unhas roídas”, além daquele médico com uma “barba Colóquio Letras & Artes” (em referência à prestigiada revista acadêmica portuguesa), “que possuía a compostura dos estúpidos, essa espécie de comedimento imbecil que faz às vezes do bom senso”.
A prática psiquiátrica é ridicularizada a ponto do próprio médico ser confundido com um paciente, sem que haja qualquer indício de que o equívoco será corrigido. São demolidas definitivamente as fronteiras entre sãos e doentes: depois de assistirmos aos vôos dos pacientes, o próprio narrador perde os pés do chão.
Os meus próprios ossos adquiriam uma textura de espuma, a carne ornava-se fibrosa e leve como a madeira dos barcos. (…) Uma bolha de gás escapou-se-me do ânus. Deixei de sentir o chão nos sapatos. O corpo inclinou-se a pouco e pouco até se tornar horizontal, e desatei a remar na luz, piando desesperadamente na direcção dos outros.
Acho que nunca tinha voado.
Mas a principal fronteira a ser derrubada é outra: o recorrente paralelismo entre as memórias de guerra e as do hospital confere a ambas um caráter cada vez mais insólito. A prática canibal sugerida em um momento extremo no interior da África é transposta para uma reunião elegante entre os médicos, e estes compartilham com os soldados a prática da tortura e o exercício do poder pelo medo.
Entre os procedimentos mais comuns usados por Lobo Antunes para tornar quase indissociáveis as memórias de guerra e as do hospital consiste na repetição constante de uma frase ou uma expressão que ecoa entre os dois mundos. À certa altura, o narrador afirma, peremptório: “Nunca saí do hospital”. Afirmação instigante, que sugere de imediato que a experiência do inferno hospitalar jamais o abandonou. Inferno cujo conhecimento o autor promove através dessa literatura forte, violenta, que não admite concessões.
Descrito assim, o romance perde muito. E essa trilogia “autobiográfica” de Lobo Antunes pede inevitavelmente uma releitura: haverá sempre imagens ou associações de palavras que, perdidas das sombras do texto, passaram despercebidas, mesmo ao leitor mais atento. Que a ficção de António Lobo Antunes mudou muito desde então, somos forçados a concordar. Mas seus livros iniciais são muito mais do que mero rascunho para as obras mais maduras. Como poucas narrativas contemporâneas, esses livros elaboram uma sofisticada rede de imagens e sentidos dos quais não é permitido se expor impunemente.