Coração em guerra

Maria José Silveira resgata a história da índia Damiana, cujo papel foi decisivo nos conflitos durante a colonização de Goiás, no século 18
Maria José Silveira: imaginação para tentar entender o que se passaria na cabeça e na trajetória de Damiana.
01/02/2007

O Brasil é um país gigante de pequenas histórias que rendem grandes livros. Parece simples, mas é preciso sensibilidade para encontrar a história certa e talento para transformá-la num bom livro. É o caso de Guerra no coração do cerrado, de Maria José Silveira.

A escritora goiana foi a sua terra natal buscar uma personagem de muita força, a índia Damiana, com uma vida que por si só já compunha material de romance, pois ela foi criada pelos brancos que tentavam dominar as terras de sua tribo caiapó.

Histórias de índios criados por brancos, ou vice-versa, não são novidade, mas Damiana tem aspectos que fazem merecer o relato em livro: sua história é real, ela foi uma índia brasileira e uma mulher que teve papel de destaque nos conflitos e tréguas da colonização de Goiás pelos portugueses no fim do século 18.

Dom Luiz da Cunha Menezes, governador da Capitania de Goiás na época em que Damiana nasceu, viu na adoção da menina uma estratégia para subjugar os caiapós, uma das tribos mais rebeldes da região. Damiana era órfã e neta do grande cacique Angraíocha. Dom Luiz transformou a criança num símbolo da possibilidade de convivência pacífica entre brancos e índios. Convenceu o cacique de que Damiana teria um lar melhor no palácio do governo, onde poderia mostrar aos brancos o valor do povo indígena.

O acordo entre governador e cacique era ardiloso de ambas partes. Dom Luiz queria mostrar que um índio poderia ser civilizado. O cacique pretendia usar a menina índia como espiã, para que aprendesse tudo sobre o inimigo e, no futuro, pudesse ajudar sua tribo na luta contra o povo que dominava sua terra.

O homem branco tem duas bocas. Uma para fora, que diz o que ele quer que o outro escute, e outra para dentro, que diz o que ele quer mesmo dizer.

Com este cenário, Maria José Silveira construiu um romance a partir da história. A guerra entre brancos e índios em Goiás não era muito diferente deste tipo de situação em qualquer lugar do mundo. Os portugueses queriam dominar a região e para isso precisavam ter os índios sob controle, concentrando-os em aldeamentos onde pudessem ser vigiados. Já os indígenas não queriam perder a vida em liberdade no campo, que tinham antes da chegada dos brancos. Próximos ou separados, a harmonia entre os dois povos parecia impossível, e não foi nessa questão que a autora focou sua trama.

Maria José preferiu usar a imaginação para tentar entender o que se passaria na cabeça e na trajetória de Damiana, uma criança inocente cujo futuro seria transformado radicalmente ao ser usada como instrumento entre dois opositores num conflito histórico. Na bibliografia consultada pela autora, três livros trazem Damiana como assunto, mas dentro do aspecto histórico de sua atuação como mediadora na guerra entre índios e brancos. Maria José preferiu fazer seu relato de forma literária, transformando história em ficção, pois seria a única maneira de entrar no mundo interno de Damiana, já que a heroína não deixou o relato de sua jornada.

É nesse aspecto que entra a sensibilidade de Maria José Silveira. Como, mais de duzentos anos depois, colocar no papel o turbilhão que deve ter passado pela mente de uma criança exposta a mudanças extremas numa situação extrema? Fácil: pensando como a criança. O medo é uma invenção dos adultos, assim como a resistência a mudanças. A Damiana de Maria José encarou sua nova vida como qualquer criança encara uma novidade, com curiosidade e disposição para ver o que há de divertido nisso tudo.

Damiana adaptou-se rapidamente à vida entre os brancos. Sua mente aberta logo se encantou com as diferenças oferecidas pela religião dos brancos, com mais cores, mais objetos e mais simbolismos do que os rituais indígenas. A convivência entre os brancos também despertou sua percepção estética para aquele tipo diferente de pele, mais suave, menos curtida pelo sol, tratada com mais cuidado pelas mulheres. As roupas das mulheres brancas também eram admiradas por Damiana.

Ainda jovem, Damiana voltou a viver com sua tribo. O reencontro foi harmonioso, pois mesmo a convivência com os brancos não lhe tirou a compreensão das características de seu povo indígena, muitas das quais ela ainda respeitava. Damiana tornou-se uma mulher com uma visão diferenciada, sabendo buscar os aspectos bons de cada uma das raças e, principalmente, procurar a harmonia entre elas, a começar dentro de sua própria cabeça.

Se a infância reservou para Damiana emoções privilegiadas e enriquecedoras, sua vida adulta não seria tão simples. Ao usar aquela criança como um objeto para seus interesses, Dom Luiz e o cacique Angraíocha não imaginavam que definiriam o destino de Damiana para sempre, transformando-a numa heroína para os indígenas e numa respeitada liderança para os brancos.

Na vida pessoal, Damiana não fez concessões. Casou-se duas vezes com homens cuja cor de pele mais lhe atraía esteticamente, a branca, e levou-os para morar na aldeia caiapó. Continuou freqüentando a igreja e estimulando os outros índios a fazer o mesmo, sem abrir mão da fé e dos rituais das crenças de seu povo.

Sempre unidos
Todos os novos governadores de Goiás usavam Damiana para tentar manter os índios no aldeamento. Damiana sabia disso, mas não atendia os governadores porque estava do lado dos brancos. Damiana tinha consciência de que a guerra contra os brancos era perdida. Eles eram muito mais numerosos e mais bem armados. A única possibilidade de sobrevivência era a manutenção da união de todas as tribos caiapós. Dispersos pelo campo, poderiam até durar, mas seriam dizimados no futuro. Só poderiam se fortalecer se permanecessem unidos, nem que fosse no aldeamento imposto pelos brancos.

Damiana passou a maior parte de sua vida nessa missão, em expedições pelo território goiano para tentar reaproximar todos os grupos de sua tribo. Essa sua faceta é real e a história verdadeira a classifica como sertanista por conta deste trabalho. A ficção de Maria José Silveira prefere ver esta atuação por outro ponto de vista. Damiana não seria sertanista porque acreditava que todos os índios deveriam levar uma vida civilizada como a sua, mas porque queria reuni-los e torná-los uma nação indígena forte e grande o suficiente para sobreviver perante a ameaça do homem branco.

Cada grupo de índios que Damiana resgatava e trazia para o aldeamento era batizado pelo padre branco. Damiana os convencia a submeter-se a este ritual para fortalecer a trégua com os brancos. No fundo, ela até acreditava na proteção do deus católico. Para Damiana, proteção religiosa nunca era demais. E ainda era uma boa diplomacia com o governador da capitania.

É melhor fazer porque ser filho de deus é importante para eles. Não tem coisas importantes para nós que a gente gosta de ver nossas visitas fazendo? É a mesma coisa. É o costume deles. É o respeito que devemos ter.

Mas o fato é que as dificuldades eram muitas para Damiana. Por mais que tentasse unir e fortalecer seu povo, os conflitos com os brancos não cessavam e seus irmãos acabavam abandonando o aldeamento em busca da liberdade indígena. Por mais de quarenta anos Damiana tentou unir o coração branco e o coração indígena, não como se fossem um só, mas como se fosse possível que coexistissem no mesmo corpo. Ela havia conseguido isso consigo mesma por todo este tempo.

Guerra no coração do cerrado é uma eterna guerra no coração de Damiana, que ela conseguiu dominar durante a maior parte de sua vida. Mas Damiana era uma só. Não havia ninguém como ela entre seus amigos brancos nem entre seus irmãos indígenas. A luta de Damiana acaba sendo em vão. A paz se revela impossível e ela acaba tendo que fazer uma opção. Consciente de tudo por que passou e ainda passaria, Damiana sabia que chegaria o dia em que seu coração em guerra teria de fazer uma escolha, e esta escolha só poderia ser pelo lado em que o coração batesse mais forte.

Guerra no coração do cerrado
Maria José Silveira
Record
262 págs.
Maria José Silveira
Goiana e mora em São Paulo. Seu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002), recebeu o Prêmio APCA de Escritora Revelação. É autora também de Eleanor Marx, filha de Karl (2002) e O fantasma de Luis Buñuel (2005), menção honrosa no Prêmio Nestlé. Também escreve livros infanto-juvenis.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho