E se um sujeito entra em um elevador e um enredo está em andamento, talvez no meio, talvez no final? E se a leitora do Rascunho caminha, num calçadão, e uns transeuntes deixam um fragmento de segredo aleatório? E se um resenhista do Rascunho, monoglota, português e nada mais, se depara com duas romenas e, inesperadamente, capta algo daquela romena e estrangeira conversa, mesmo que nuances? E se um outro leitor do Rascunho chega, devido ao trânsito ou à displicência, atrasado em uma reunião profissional e todos os presentes são apenas boca, nada ouvidos, e mesmo nessa Babel o leitor do Rascunho encontra o fio para sair de um labirinto? E se você, que até ontem nunca havia lido o Rascunho, e por causa de um acaso está aqui, vai parar na frente de uma tela que oferece um filme, desses recentes, elogiados nos segundos cadernos, em que nos primeiros minutos nada faz sentido, mas a sua insistência sugere prosseguir, apesar de tudo, ou apesar de nada? E se tantas outras situações similares acontecem, então, assim, não por isso, mas, eis que há similaridade entre tais situações e Corpo estranho, romance recente de Adriana Lunardi.
O branco é a medida de todo artista: só os melhores sabem usá-lo. A despeito das outras cores, que apostam em uma capacidade positiva de comunicação, o branco oferece-nos o vazio, um vazio de importância taoísta, em que o espaço abriga a matéria por realizar-se e o instante anterior ao seu desdobramento. O branco resume e contém todas as cores, é o Aleph da escala cromática. Como a côdea do pão, que serve ao enólogo para diferenciar o paladar entre um vinho e outro, ele realiza uma limpeza purificadora em nosso olhar. Depois de relaxar em seus domínios, podemos seguir adiante e enfrentar o mundo indisfarçadamente orgulhoso de sua plumagem matizada, suportar a intriga de átomos e partículas que um histérico buquê de raios eletromagnéticos enfeita.
Ausência de linearidade. Interrupção. Desmoronamento do chão. Interrupção. Impressão de descontrole. Interrupção. Sentidos confusos. Interrupção. Isso não se parece com a sua vida, leitor do Rascunho? Ou a sua existência é totalmente previsível, sob comando de sua vontade? Não há surpresas em sua trajetória, leitora do Rascunho? Isso também diz respeito ao efeito que Corpo estranho pode vir a provocar no leitor, na leitora. E isso é problema? Que nada. O texto de Corpo estranho se dá pela ausência de linearidade narrativa, de repente, uma interrupção, e, logo mais, desmorona o chão do leitor e, ops, nova interrupção de fluxo, e o leitor não tem controle, mas o narrador tem, e o leitor se dá conta de que seus sentidos estão confusos e, subitamente, outra interrupção, etc. Corpo estranho foi construído, também, em sintonia com o que se passa nesse tempo presente, esse caos-sem-paz-sem-aparente-sentido. O texto literário conversa sim com a tradição. Mas estabelece inegáveis pontes de contato com o que chamam de realidade e, então
As grandes emoções dão preferências às imagens mais prosaicas para se exprimir: quanto mais rica e interiorizada a emoção, mais ligada estará ao lugar e ao momento em que começou a desenrolar-se. […] Uma ginasta lançando fitas em exercícios de solo, é o que lembra agora a roseta riscada no papel que aos poucos o jogo de verdes e amarelos vai transformar em folhagem. […] O vibrato amarelo persiste no ar mesmo após o táxi partir no arranque rápido de quem teme ser contaminado pela pátina cinzenta que recobre a paisagem. […] Aquela serra não tem um traçado dramático, feito de altos e baixos abismais. O efeito conjunto é o de um corpo monolítico, muito alto, em que as bordas foram partidas à mão. […] Sob a pérgula, a mesa está posta desde o meio-dia. As extremidades da toalha xadrez, tocadas pela brisa, brincam de esconder e revelar o prato redondo e branco, solitário. […] O claro-escuro se alterna no chão enrelvado. Exaustas, as últimas campânulas de lírios se recolhem e o verde inicia a lenta digestão do carbono.
Adriana Lunardi, a exemplo de outros escritores, Wilson Bueno por exemplo, investiu energia no trabalhar e retrabalhar a linguagem. Corpo estranho, por sua vez, oferece um difuso, até nublado, enredo. Nada é muito claro, preto no branco — antes cinza. Há a personagem Mariana, uma artista plástica. Há a fotógrafa Manu. Há um outro personagem-centro, Paulo. E sinais de que há, ou houve?, uma conflituosa relação a enredar três personagens. Ah, há ainda José — o irmão de Mariana, que há duas décadas se foi — desta para uma melhor, ou pior. Mas nada é oferecido facilmente ao leitor — e isto não é problema, nem defeito. É opção estética. O enredo (também) discute questões ligadas à arte, ao fazer artístico e, de repente, mesmo que de raspão, há questionamentos a respeito de grafitagem, letras de hip hop & rap, entre outras manifestações de 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006 (e até 2007). As entrelinhas sugerem, o tempo todo, durante todo o tempo narrativo, que o projeto literário lunardiano se quis e se quer no durante, no enquanto, no aqui, não no depois — da mesma forma que os leitores do Rascunho vão constatar, daqui a pouco, que esta resenha, se tem algo, é neste durante, e não no fim (e, caros leitores: este resenhista não é zen-budista, não consome lixo oriental nem outras passagens rumo a paraísos artificiais). Leitores, leitoras: é preciso dizer sim que Corpo estranho dialoga com a vida, sem com isso dizer que se trate de um caso de realismo. Corpo estranho capta o que é do espírito desse tempo: a simultaneidade de situações que enovelam qualquer um que pulsa por aí, como você. Por isso, a desnecessidade de qualquer linha reta, nenhuma linearidade obrigatória, nenhuma felicidade obrigatória. Apenas acaso seguido de acaso, lembrando, sempre, que não existe coincidência.
Janeiro, o mais imprevisível dos meses, infiltra-se no sábado para desgoverná-lo, introduzir nele um torvelinho de mudanças e reviravoltas rápidas, capazes de tornar imprevisível o final da jornada. A única certeza é que chove e choverá mais ainda. Na sala, toda cor tende ao cinzento e todo estofado arrenda sua superfície ao futuro mofo. Em seus postos, os objetos acalentam uma permanência eterna que passa despercebida por Mariana, cujo olhar está fixo em um canto, vendo crescer sombras de indeterminação.
Corpo estranho não é uma narrativa em linha reta. E apresenta descrições. De cenário. E ainda daquilo que passa no imaginário das personagens. Corpo estranho pode vir a provocar estranhamento em um leitor ávido por linearidade. Afinal, Corpo estranho oferece flashes de passado, presente e delineia futuros possíveis. A ausência de um personagem impregna a narrativa com aquilo que uns poderiam chamar efeito-que-a-morte proporciona. Corpo estranho é contaminado pela sensação da morte. Corpo estranho é um livro que tra