Um país de sonho

Com fortes traços fantásticos, “Os filhos da meia-noite”, de Salman Rushdie, é um contundente romance sobre a Índia, sua história e sua formação
Salman Rushdie: influência de Jane Austen e Charles Dickens.
01/02/2007

Salman Rushdie certa vez declarou que, hoje em dia, o público estaria mais interessado nos escritores do que em seus escritos. Frase irônica, que contém lá sua verdade. Afinal, o próprio Rushdie, britânico de origem indiana, apesar de ser um autor bastante prestigiado e com muitos leitores, deve grande parte desse mesmo prestígio à sua persona pública. Em 1989, seu romance Os versos satânicos foi repudiado por diversos países islâmicos e o governo do Irã, representado pelo aiatolá Khomeini, condenou o autor à chamada fatwa, a aplicação da lei islâmica, que no caso foi a decretação da pena de morte. Tudo por supostamente “difamar” os preceitos do Islã em seu livro. O resultado foram anos vivendo escondido e fortemente protegido, até que a fatwa fosse revogada, em 1998. Além da perseguição individual e de suas implicações éticas, morais e religiosas, o episódio trouxe conseqüências graves como um incidente diplomático entre Grã-Bretanha e Irã, e o assassinato de um tradutor japonês, em 1991. E, ainda hoje, há quem diga que a fatwa continua silenciosamente em vigor, sem, contudo, a antiga recompensa em dinheiro pela cabeça de Rushdie.

Além de involuntariamente se tornar um símbolo da liberdade de expressão artística, Salman Rushdie teve uma trajetória pós-fatwa que o transformou em uma celebridade, incluindo o casamento com uma supermodelo e aparições em concertos de rock. Deste modo, seu irônico comentário sobre o interesse dos leitores é um lembrete de que, afinal, ele ainda é um escritor.

Vamos, portanto, a Os filhos da meia-noite (1980), relançado recentemente no mercado brasileiro. Trata-se de seu segundo romance. O primeiro, Grimus, não fora bem recebido pela crítica e o próprio autor o considera uma obra mal-sucedida. Mas Os filhos da meia-noite, porém, foi premiado com o Booker prize por duas vezes: em 1981, por ocasião de seu lançamento, e em 1993, como o melhor dentre os 25 vencedores do prêmio até então.

O romance conta a história de Salim Sinai, um dos “filhos da meia-noite”, nascidos à zero hora do dia 15 de agosto de 1947, momento em que a Índia foi oficialmente declarada um país independente. O narrador é o próprio Salim que, para apresentar devidamente suas origens, recua a história até 1915, ano em que seus avós se conheceram. Aadam Aziz, um jovem médico recém-formado na Alemanha, retorna à Caxemira, sua terra natal, e se encarrega de cuidar da jovem e misteriosa Nasim. Impedido de conhecer sua paciente “pessoalmente”, o doutor Aziz é obrigado a tratá-la através de um lençol. Dependendo da enfermidade, um providencial buraco no pano é posto sobre determinada parte do corpo da moça. É assim, aos pedaços, que o doutor conhece sua futura esposa.

Estabelece-se, com a história de Aadam Aziz, alguns dos temas e imagens recorrentes no romance, e que acompanharão as gerações seguintes da família. A mais importante talvez esteja representada na questão do olhar fragmentado. O narrador chega a assumir, a certa altura do livro, que “a realidade é uma questão de perspectiva”: seja ela limitada por um pudico lençol furado, ou pelos “olhos viajados” que não enxergam mais a terra natal com o olhar da infância, grande parte dos conflitos do romance nasce exatamente no confronto de perspectivas. É assim com o misterioso barqueiro Tai, de idade indeterminada, e que repudia tudo que seja estrangeiro: daí seu estranhamento pelas coisas de fora (um estetoscópio é tomado por uma “máquina de cheirar”, graças à sua semelhança com a tromba de um elefante) e seu conseqüente desentendimento com o “estrangeirado” doutor Aziz. É assim também quando a então senhora Aziz se revolta contra os costumes “ocidentais” do marido, como pedir que ela deixe de usar o purdah (que a cobre totalmente), ou se descontraia um pouco seus momentos de intimidade:

Ela soltou um grito de horror: — Meu Deus, com quem foi que me casei? Eu sei como vocês, homens que voltam da Europa, são. Conhecem mulheres terríveis por lá e depois tentam fazer com que nós, moças da Índia, sejamos iguais a elas! Ouça, doutor sahib, marido ou não marido, eu não sou uma dessas… mulheres você sabe o quê.

Mas a “contaminação” recíproca entre diferentes esferas sociais e culturais é inevitável. E se muitos desses embates assumem um tom assumidamente cômico, não deixam de representar metaforicamente uma tensão maior, histórica e política, que perpassa toda a história da Índia.

Para Salim Sinai, inclusive, toda a história de sua família está ligada aos rumos do novo país. Isso porque o significativo momento de seu nascimento ligou definitivamente seu futuro ao da Índia, ligação supostamente confirmada pela carta que sua família recebe do então primeiro-ministro Jawaharlal Nehru (celebrando a chegada do menino que haveria de espelhar o destino da nação) e reafirmada constantemente durante o romance: o narrador se ocupa em estabelecer toda a sorte de relações entre pequenos incidentes de sua vida cotidiana e os grandes fatos históricos que o circundam.

O que não faz do livro um romance histórico, no sentido mais estrito. A História é continuamente contaminada pela fantasia, o que tem justificado a associação do romance ao chamado realismo mágico. A associação se justifica, e está em parte manifesta nas intenções do autor, como esclarece o próprio Rushdie na introdução escrita para a edição de 2005 de Os filhos da meia-noite. O autor agradece a influência de Jane Austen e Charles Dickens, escritores que teriam muito de “indianos”. Austen, por suas personagens femininas, “mulheres engaioladas pela convenção social da época”, e Dickens, entre outros aspectos, pelo trato de elementos cômicos e fantásticos que “parecem emergir organicamente, transformando-se em intensificações, e não em fugas do mundo real”. Deste modo, o prefácio do autor corrobora o comentário de Salim Sinai: “às vezes as lendas constroem a realidade e se tornam mais úteis do que os fatos”.

Atmosfera de magia
Além dos eventos sobrenaturais em si, o romance possui toda uma atmosfera de magia, quase onírica, nascida de diferentes procedimentos. Um deles é tomar uma metáfora ao pé da letra: ao invés de se dizer que as gotas de sangue eram vermelhas como rubis ou que as lágrimas congeladas pelo frio intenso eram transparentes e sólidas como diamantes, o narrador diz apenas que o personagem sangrava pequenos rubis enquanto “afastava diamantes dos cílios”. Outro procedimento bastante comum é creditar um evento maravilhoso a visões ou a sonhos de determinados personagens. Ou, simplesmente, detalhar práticas ou costumes factuais, realistas, mas que podem soar insólitos aos leitores ocidentais, como o já referido episódio do lençol furado. Cria-se, assim, uma atmosfera de estranheza e mistério oportuna para a ocorrência de eventos sobrenaturais dentro da narrativa, que surgem aos poucos: ora são as plantas que morrem à passagem de um homem malcheiroso, ora uma preocupada mãe começa a sonhar os sonhos das filhas, a fim de vigiá-las.

Neste ambiente, o nascimento dos “filhos da meia-noite” é absolutamente verossímil. Todos as crianças manifestam poderes especiais. Dentre as mais de quinhentas destas crianças que alcançaram os dez anos de idade, há a mais variada gama de capacidades espetaculares: atravessar espelhos ou qualquer superfície refletida, viajar no tempo, mudar de sexo, multiplicar peixes, além do curioso caso da menina cujas palavras são capazes de machucar fisicamente quem esteja a seu alcance. Existem, ainda, poderes mais tradicionais, como o caso do menino lobisomem e da bruxa Parvati, que desempenhará um papel importante no futuro do herói.

Reunidos telepaticamente pelos poderes de Salim, este grupo compõe uma metáfora da ansiada busca por unidade política na Índia, em um contexto de extrema diversidade étnica, lingüística, religiosa, social: “os filhos da meia-noite eram também os filhos daquela época: concebidos, entendam, pela história. Isso pode acontecer. Principalmente num país que é ele mesmo uma espécie de sonho”. Como todo sonho, o país ainda está para ser realizado, com um destino a ser cumprido.

É inevitável que ocorra ao leitor que o projeto de narrativa proposta por Salim Sinai seja excessivo e, nas palavras do próprio Rushdie, “pouco modesto”. É verdade. Mas por isso mesmo, é um projeto muito adequado à personalidade de seu protagonista e narrador: Salim Sinai não tem pudores em se dizer responsável por alguns dos fatos mais importantes do país, chegando a afirmar que o verdadeiro motivo da sangrenta guerra indo-paquistanesa de 1965 foi a perseguição a sua família. Assume ainda a dificuldade em “contar tudo”: “Será uma doença indiana, essa ânsia de encapsular a realidade inteira? Pior, também eu estarei infectado?”, diz, como quem se vê em falta com as boas maneiras literárias.

Por isso, Salim afirma que teme, acima de tudo, não conseguir ordenar em um texto coeso o “excesso de vidas, acontecimentos, milagres, lugares e boatos entrelaçados, uma mistura tão densa e tão improvável do mundano!”. Nada modesto, compara-se, em sua empreitada, à própria Sherazade, e exibe sua vocação para o mágico e para as histórias que se desdobram dentro de outras. Em comum com a contadora de histórias de As mil e uma noites, a presença iminente da morte. Continuar narrando é, de certa forma, adiar a morte, já que o Salim mostra-se em um avançado estado de degeneração física. Cuidando de sua saúde e de seu estilo literário, está Padma, fiel companheira que, na condição de sua primeira leitora, faz recorrentes correções de tom e de estilo, sempre combatendo o excesso de digressões e considerações metaliterárias.

Em um romance em que a questão do ponto de vista é tão importante, o narrador sabe os riscos que corre sua tão ansiada objetividade: “devo descrever tão fielmente quanto possível, malgrado esse tênue véu de ambigüidades, o que de fato sucedeu”. Este tênue véu, contudo, que impede a visão totalizadora dos fatos e das personagens, é mais denso do que sugerido, pois diz respeito aos caprichos da memória, ao gosto pela invenção, às ambigüidades da história oficial e às inescrutáveis razões secretas de seus personagens. Como em qualquer narrativa, afinal: a redação de Os filhos da meia-noite não deixa de ser um processo de tomada de consciência, por parte de Salim, dos limites da representação ficcional e do inevitável fracasso de seu ambicioso projeto literário.

Sobre esse longo romance haveria muito mais a ser contado. Quanto ao enredo, ele esconde episódios dignos de um grande folhetim: troca de crianças, guerras, adultérios, vinganças pessoais, incesto e (por que não?) florestas encantadas. E como em todo folhetim, surpresas virão. Quanto ao estilo narrativo, ele perde em linearidade na medida em que avança, seja por conta da rápida sucessão de episódios, seja pelo agravamento do estado de saúde de seu narrador. Vê-se cada vez mais o véu que cobre todas as coisas na memória. Não poderia ser outro o saldo deste livro excessivo que é quase um “romance de formação”: não apenas formação do protagonista, mas a de um insólito país de sonho. Ainda a ser formado.

Os filhos da meia-noite
Salman Rushdie
Trad.: Donaldson M. Garschagen
Companhia das Letras
606 págs.
Salman Rushdie
Nasceu em Bombaim (Índia), em 1947. Estudou no King’s College, em Cambridge (Inglaterra), e atualmente vive em Londres e Nova York. É autor, entre outros, de O chão que ela pisa, Oriente, Ocidente, Os versos satânicos, O último suspiro do mouro e Shalimar, o equilibrista.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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