A exclamação do velho comerciante judeu Guedáli, num dos contos de O exército de cavalaria, expressa a dor profunda que atravessa os 36 magníficos textos do escritor ucraniano Isaac Bábel (1894-1940), neste livro que é considerado por Boris Schnaiderman o texto-paradigma do século 20. “Com o seu sabor acre de sangue e terra, com suas violências que nos deixa perplexos, eles estão realmente entre os escritos que expressariam melhor aquele século de horror e mudança”, diz Schnaiderman, para quem “A obra de Bábel é, na realidade, um adeus ao mundo seqüencial e lógico do século 19. O brutal, o descomunal, o inesperado, marcados pela desumanidade e incoerência, irrompe ali com estrépito e uma explosão de colorido”.
Os contos desse extraordinário autor, fuzilado em 1940, numa das fases mais críticas do extermínio stalinista, registram os dramáticos acontecimentos que envolveram a guerra russo-polonesa de 1920-21. Conflito que, já naquele momento, marcava a derrocada dos sonhos de justiça e de igualdade da Revolução Bolchevique, encobertos pelo mar de sangue que inundou a terra polonesa. Lá onde, como assinalou Otto Maria Carpeaux, “As brutalidades mais violentas são perpetradas como se a vida de todos os dias fosse isso mesmo: incêndios, fuzilamentos, torturas, violações, horrores de toda espécie”.
Há muita violência nos contos de Bábel, mas, o que surpreende mesmo o leitor nesses relatos vertiginosos, é a extraordinária vitalidade da linguagem e seus contrastes fulgurantes: o realismo mais cru associado ao expressionismo mais delirante; o heróico ao patético; o humanismo à barbárie. Tudo isso enriquecido pela experiência visceral do autor, que serviu na Sexta Divisão do Primeiro Exército de Cavalaria, como correspondente de guerra do jornal Krasny Kavalerist (“O Cavalariano Vermelho”), na Polônia Meridional. Esta experiência resultaria, inclusive, no Diário de 1920, publicado, em 1990, pela viúva e segunda mulher do autor, Antonina Nikoláevna Pirojkova.
Caleidoscópio das batalhas
A participação do escritor na guerra possibilitou o acréscimo de mais um elemento dissonante aos seus contos: em meio à linguagem intensamente metafórica dos relatos, pode-se distinguir um quê de reportagem, de documento fiel daqueles espantosos acontecimentos: seja nos diálogos vivos e realistas, seja nas descrições minuciosas dos personagens, que surgem, desaparecem e reaparecem num caleidoscópio atordoante das batalhas, das chegadas e saídas das tropas nas cidades e aldeias arrasadas, nas situações-limite em que todos vivem, arrastados pela voragem da Revolução.
Essas características permitem que as histórias, vistas em conjunto, formem uma espécie de romance fragmentário, cujos pontos de ligação são o narrador da maioria dos contos, o intelectual judeu Kirill Vassilievitch Liútov, alter-ego do escritor, e uma galeria de personagens terríveis e comoventes, históricas e anônimas, como pan Apolek, Guedáli, Afonka Bida, o general Budiónni, Sachka, o Cristo, Khlébnikov e Akinfiev.
A proximidade do narrador com o fato narrado é também ressaltada por Boris Schnaiderman, como mais uma característica da modernidade do autor e da quebra de uma convenção herdada do século 19. “Aquele distanciamento do narrador em relação ao narrado, aquela onisciência e segurança, que subsiste mesmo quando a narrativa é feita na primeira pessoa, dão lugar ao narrador que está imerso naquilo que narra. É verdade que isso já ocorria esporadicamente, mas foi em nosso atormentado século 20 que tomou corpo e adquiriu consistência.”
Esse profundo lirismo, em contraste com o distanciamento épico do narrador, é mais uma das estranhezas da prosa poética de Bábel. Estranheza flagrante, por exemplo, na descrição da travessia do rio Zbrutch, pelo Estado Maior, quando o narrador observa que “Um sol alaranjado rola pelo céu como uma cabeça decepada, uma luz suave acende-se nos desfiladeiros das nuvens, e os estandartes do poente ondulam sobre a nossa cabeça”, enquanto “O sangue de ontem e dos cavalos mortos pinga no frescor da tarde” (A travessia do Zbrutch). Ou quando escreve: “Caminhos azuis fluíam à minha frente, qual rios de leite jorrando de muitos peitos. Na volta para casa, temia encontrar meu vizinho Sídorov, que toda noite pousava em mim a pata peluda de sua tristeza”. (O sol da Itália). Ou ainda quando relata que “(…) Na terra, cercada de ganidos, apagavam-se os caminhos. As estrelas saíram rastejando do ventre frio da noite e as aldeias desertas incendiavam-se no horizonte” (Os Ivans).
Relatos brutais
Estes são exemplos de uma das tendências da escrita de Bábel: a da prosa ornamental, bem ao gosto dos simbolistas; mas que, como diz Schnaiderman, “dá a impressão de abrir caminho a toda uma prosa mais direta, de relato mais imediato” — tendência que expressa, de forma mais contundente, a brutalidade dos conflitos, a perturbadora capacidade de narrar as maiores violências no tom menor de acontecimentos prosaicos do cotidiano.
No conto Uma carta, por exemplo, um filho relata à sua mãezinha Evdokia Fiódorovna Kurdiúkova, como seu pai matou o filho (irmão do autor da missiva).
A nossa brigada vermelha, a do camarada Pávlitchenko, avançava sobre a cidade de Rostov, quando houve uma traição em nossas fileiras. Naquela época, o pai estava comandando uma companhia de Denikin. As pessoas que o viram dizem que ele usava medalhas, como no velho regime. E por ocasião dessa traição, fomos todos feitos prisioneiros, e o pai pôs os olhos em cima do meu irmão Fiódor Timoféitch. Daí, o pai começou a espetar o Fedia, falando: seu vendido, cachorro Vermelho, filho-da-puta e outras coisas assim, e não parou de espetá-lo até escurecer, quando o meu irmão Fiódor Timoféitch morreu.
E prossegue, lembrando agora como seu irmão mais velho, Semion Timoféitch, posteriormente designado comandante do regimento, “chateado” com o assassinato do irmão caçula, vingou-se do pai. “[…] e Semion Timoféitch mandou-me sair do pátio, de modo que não poderei, querida mãezinha Evdokia Fiódorovna, descrever para a senhora como deram cabo do pai, porque fui mandado embora do pátio”. E assim faz a crônica despojada do Exército de Cavalaria, que cheira “a sangue fresco e a restos humanos”.
Bem representativo dessa anarquia, em que todos são juízes de todos, é o conto O sal. Nele, o soldado Nikita Balmachov descreve, numa carta ao redator do Krasny Kavalerist, “a falta de consciência das mulheres, que só fazem nos prejudicar”. O prejuízo, diz ele, deveu-se ao fato de uma das mulheres, que vagavam famintas e desesperadas pela paisagem conflagrada, após ser acolhida “por compaixão”, pelos soldados vermelhos, num vagão de carga, ter sido flagrada contrabandeando sal.
Confesso que realmente atirei a tal cidadã para fora do trem em movimento, num declive, mas ela, de tão ordinária, ficou um tempo ali sentada, sacudiu as saias e seguiu seu caminho de sordidez. E, ao ver aquela mulher intacta e a indescritível Rússia que a rodeava, e os campos dos camponeses sem uma só espiga, e as moças ultrajadas, os muitos camaradas que vão para o front e os poucos que voltam, me deu vontade de pular do vagão para dar um fim na minha vida, ou na dela. Mas os cossacos ficaram com pena de mim e disseram:
— Passa fogo nela.
E, apanhando minha fiel arma na parede, varri aquela vergonha da face da terra trabalhadora e da República.
Concisão exemplar
A obra de Isaac Bábel é marcada por uma concisão que a tornou modelo para vários ficcionistas, dentre eles o americano Ernest Hemingway. Sobre isso, declara Boris Schnaiderman: “Hemingway tinha um respeito enorme por Bábel. Ele chegou a afirmar: ‘Dizem que eu escrevo muito sinteticamente. Não é verdade. Quem escreve com verdadeira síntese é o Isaac Bábel. Eu até que sou prolixo em relação com o Bábel’”.
O conto desse admirável ficcionista é também modelo exemplar de duas definições básicas do gênero: a do “singular efeito único”, proposto por Edgar Allan Poe; e a da tensão máxima, sugerida por Julio Cortázar. Vale lembrar a famosa definição do escritor argentino, que, ao comparar o romance e o conto a uma luta de boxe, disse que, diversamente do romance, no qual pode-se ganhar por pontos, no conto é preciso ganhar por nocaute. Com suas histórias curtas, com seus registros sintéticos de situações-limite, Bábel escreve como quem lança raios. Raios que nos despertam, hoje, do sonho anêmico de uma literatura narcísea cada dia mais voltada para o próprio umbigo de seus ilustres autores.
A esmerada edição da CosacNaify inclui uma apresentação feita pelos tradutores Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, e posfácios de Boris Schnaiderman e Otto Maria Carpeaux (deste, o texto A grandeza de Bábel, escrito em 1962), um bastante útil glossário de termos russos, poloneses, iídiches, hebraicos e ucranianos, além de siglas soviéticas e breves biografias de figuras históricas citadas nos contos. Na apresentação, os tradutores justificam a decisão de resgatar o título original da obra, em lugar do título A cavalaria vermelha, utilizado em traduções brasileiras anteriores, sempre feitas a partir do inglês, espanhol ou francês.
Espera-se que esta iniciativa motive as editoras brasileiras a publicar outros importantes escritores russos do século 20, tais como Liérmontov, Antikarov, Boulgakov, Aleksandr Herzen, Daniil Kharms e Ievguêni Zamiátin, entre outros. Enfim, um time de autores notáveis que, após a Glasnost, ressurgem das cinzas para mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, a grande literatura russa não acabou no século 19.