Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (4)

Capítulo 4 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2007

10
O bibliotecário, seu genro e o visitante não andaram nem vinte passos na direção do prédio dos arquivos quando deram de cara com algo assombroso.

Um gigantesco M da cor do sangue, vermelhão mesmo, havia sido pichado, escarrado, empalado, emparedado, desnudado, descarnado, devorado, descarregado na lateral de um edifício recém-construído.

Que… Que merda é essa?, o bibliotecário balbuciou.

Sem despregar os olhos da imensa letra maiúscula os três deram mais alguns passos ao longo da parede branca violentada pelo vermelho.

Rodrigo pôs as mãos na cintura e arriscou um palpite:

Pode ser qualquer coisa. Pode ser a inicial de uma palavra. De morcego, por exemplo. Também pode ser a logomarca mal desenhada do Homem-Morcego.

O visitante retrucou:

O bat-sinal? Você está falando do Batman?

É, estou falando do Batman. Quero dizer, não exatamente do personagem, mas de um maluco se fazendo passar por ele. Um maluco que usa a máscara dos quadrinhos e do cinema para inquietar as pessoas. Também pode ser uma referência ao Vampiro de Dusseldorf.

Quem? De que romance? Esse eu não li, o bibliotecário resmungou.

Fritz Lang, meu caro! Você nunca vai ao cinema?

Detesto cinema. Que vampiro é esse?

Um pedófilo assassino.

Rodrigo gracejou, um M verMelho que pode ser um Morcego que pode ser um Maluco que pode ser uma Máscara que pode ser um vaMpiro. Que palhaçada. Só estão faltando os deMônios e as Maldições.

Mefisto, o mensageiro do mal, o visitante sugeriu.

Rodrigo acatou a sugestão:

Mefisto? Maldição? Creio que você acertou em cheio… Esse M vermelho… É isso. Trata-se de uma inicial iniciática, entende? Um símbolo intimidador. Só pra dizer que estamos todos sob o império do Mal. Ou da Morte. Ou do Medo.

Ou da Merda, o bibliotecário apartou com visível mau humor. Em seguida brincou, bosta de búfalo.

Quê?, os outros dois franziram a testa.

Bull shit.

Você é quem sabe, arrematou o visitante.

11
O prédio dos arquivos, aberto vinte e quatros horas por dia, era uma caixa grande e escura plantada embaixo de um viaduto caindo aos pedaços. Dentro dele o ronco dos automóveis ricocheteava nas paredes e no teto, quebrando-se em milhões de pedaços num estardalhaço de tiroteio entre quadrilhas rivais.

Mas imersos em seus afazeres, cada qual atrás de sua sobrecarregada escrivaninha, nenhum dos funcionários aí presentes parecia se dar conta dessa insuportável descontinuidade sonora, dessa quase explosão, desse caos movido a gasolina, álcool, gás natural e diesel.

De qualquer maneira, nessa repartição, ou porque fossem todos muito velhos — e surdos — ou porque estivessem totalmente submersos havia séculos nesse troar enlouquecedor, entre eles a troca de informações ocorria por meio de gritos ou de pantomima.

Ei, você.

Quem, eu?

Não. Você.

Eu?

Não, o de camiseta pólo.

Afrânio, é com você.

Um velhote baixinho se destacou dos demais e veio até o balcão de atendimento. Uma parede de vidro, posicionada alguns dedos acima da madeira comida pelo tempo e pela poluição, separava os dois interlocutores.

O que é?

Cadê a Sônia?

Quem?

A Sônia, pô!

Está de licença-prêmio. Só volta daqui a três semanas.

Tudo bem. Pode ser com você mesmo. Presta atenção.

Pois não.

Há mais ou menos duas semanas eu pedi à Sônia que me apresentasse uma relação detalhada de todos os livros catalogados no mês de março.

Márcio de quê?

O bibliotecário enfiou as mãos espalmadas por baixo do vidro, puxou o velhote pela camisa e gritou novamente a mesma informação.

O funcionário tossiu e gemeu, ah, sim, ela falou qualquer coisa a respeito. É, estou lembrado, sim, senhor.

Quero ver a lista agora.

Tudo bem. Assine esta requisição.

O bibliotecário assinou as três vias da requisição.

O velhote pegou de volta o documento, carimbou-o no alto e embaixo, rubricou os dois carimbos, entregou-o ao chefe da repartição, o chefe da repartição conferiu todos os dados, carimbou-o tantas vezes quanto julgou necessário e assinou nos espaços apropriados, devolveu o documento ao velhote, o velhote, depois de escrever num grande caderno de capa preta o nome completo do bibliotecário, seu endereço, o número do seu RG e do seu CIC, datar, carimbar e rubricar ao lado de todas essas informações, fez três fotocópias de cada via da requisição, arquivou as duas primeiras e entregou a última ao bibliotecário.

De repente um cartapácio de duas mil e oitocentas páginas surgiu do nada sobre o balcão.

Surgiu atrapalhando a boa disposição dos outros documentos que havia à sua volta.

Após tentar sem sucesso fazer o livrão passar sob a divisória de vidro, o velhote carregou-o com certa dificuldade até uma porta no fundo da sala.

Um minuto depois o livrão apareceu quase que por mágica ao lado dos três sujeitos que o aguardavam, prontinho, aqui está, senhor.

Já não era sem tempo.

O bibliotecário segurou com firmeza o tijolo de papel e saiu do prédio, seguido do visitante e do genro, se contorcendo, passando outra vez pelos fragmentos da explosão a céu aberto, assustadora, enigmática, implacável, que obviamente não tinha hora para terminar.

Voltavam sobre as próprias pegadas ao pátio que não era mais verdadeiramente um pátio, mas sim um grande canteiro de obras, tendo nas laterais dois edifícios altíssimos, de paredes escuras e encardidas, e ao fundo um painel frio e cintilante formado pela luz das casas mais afastadas.

Retornavam andando devagar.

Então alguma coisa na trilha fez clanque.

Rodrigo parou para olhar bem de perto e viu que era um ancinho com os dentes voltados para cima.

Cuidado onde pisam, não vão furar os pés, está bem?, gritou uma voz já totalmente imersa nas sombras.

Espera um pouco.

Rodrigo contraiu e expandiu sincronizadamente os músculos dos braços, atirando o ancinho o mais longe possível dentro da escuridão.

Pode passar agora.

O visitante se esforçava para carregar seus livros sem demonstrar nenhum tipo de cansaço e principalmente sem tropeçar.

Como se acordasse de um sono inesperado, provocado pelo vinho e pelo jantar, só então ele percebeu a balbúrdia toda que existia nesse pedaço de chão.

Ao lado do telescópio por ora abandonado havia vários sacos de areia e cimento, todos furados aqui e ali, deixando vazar sem nenhum remorso parte do seu conteúdo.

O senhor é casado, senhor Penna?

Sim. Há mais ou menos quinze anos.

Ele se esforçava para carregar seus livros. Mas os exemplares mais pesados ameaçavam escorregar a todo momento. Suas mãos estavam doendo e tremendo.

Muito bom. Um homem não deve viver sozinho. Isso não é natural, não é mesmo? Viver sozinho… Quantos filhos o senhor tem?

Nós não temos filhos. Por opção, compreende?

Sei, sei.

O pátio estava tomado por todo tipo de engenhoca, dessas normalmente encontradas apenas em terrenos próximo a construções.

Em toda parte, pás, picaretas, sacos de areia e cimento, britadeiras, betoneiras e entulho, muito entulho espalhado de maneira indiscriminada, na forma de grandes montes.

Isto aqui já foi antes uma grande praça, gemeu o bibliotecário. Quando criança, Renata costumava vir aqui todas as manhãs pra brincar com os filhos dos outros funcionários.

Vamos sentar aqui onde há um pouco de luz, sugeriu Rodrigo.

Os três foram se acomodando ao lado do único poste existente nas redondezas. Sentaram devagar na borda de uma laje de concreto partida ao meio, inutilizada por algum acidente.

Rodrigo sussurrou, rapaz, isto aqui me faz lembrar das noites em que eu excursionava floresta adentro com o meu grupo de escoteiros. Toda esta escuridão, todo este silêncio, uau.

O visitante não se fez de rogado, foi logo confessando, também fui escoteiro. Pois é, fui mesmo. Há muito tempo.

Confessou isso molhando as palavras no verniz da saudade, aproveitando a oportunidade para pôr no chão os livros que trazia. A fim de respirar melhor afrouxou a gravata.

Éramos péssimos escoteiros, Rodrigo continuou. Realmente péssimos. Lembro uma noite em que depois de caminhar o dia todo a gente já não fazia mais a menor idéia de onde estava. Se nossos pais não tivessem formado um grupo de busca, entrado na mata e nos tirado de lá, creio que ainda estaríamos perdidos. Oh, sim. Estaríamos lá até hoje.

Isso também aconteceu comigo. Duas vezes. De fato, péssimos escoteiros.

Nenhum de vocês foi coroinha?, apartou o bibliotecário voltando do além.

O quê?

Coroinha, pô! Nunca entraram numa igreja? Nunca vestiram uma batina branca?

Tenho um tio que se converteu ao islamismo, respondeu o visitante. Isso é o mais perto que já cheguei de uma manifestação religiosa.

Por isso este descaso todo com as coisas que nos cercam.

Como assim?

Vocês não têm respeito à vida. Não crêem no sublime, no inefável. Vejam só toda esta sujeira. Ninguém dá a mínima, ninguém diz nada. Estão muito preocupados com as próprias veleidades pra se deixarem arrebatar por uma experiência mística qualquer, por menor que ela se mostre.

Rodrigo começou a rir, mas o que é que você costuma chamar de “experiência mística”?

Uma batina branca. Foi o que ele disse.

Estavam bem próximos da luneta de Estela, esquecida entre os montes de entulho. Muito próximos mesmo. Mas não sabiam disso.

Apesar da atmosfera sufocante devido à desordem do maquinário e à terrível impressão de abandono que reinava nesse lugar, pouco acima do topo do edifício da esquerda via-se ainda um pedaço da lua cheia.

Mas do que é que eu estou reclamando, olha lá, ainda temos a lua.

E vinho, ora bolas.

Rodrigo foi até o jipe, abriu a caixa de isopor que havia em cima do banco de trás e voltou com um saca-rolhas, alguns copinhos de plástico e duas garrafas de Millésime.

Comprei estas garrafas num pequeno empório de beira de estrada. Espero que estejam ok.

Abriram a primeira garrafa.

Estava ok.

Diga uma coisa, senhor técnico de estoques, quando é que toda esta loucura teve realmente início? Creio que ao menos isso todos nós temos o direito de saber, não?

O bibliotecário entornou goela abaixo o primeiro copo a fim de acabar com o gosto de barro vermelho que não deixava sua boca em paz.

Mas o gosto de barro persistia.

Entornou outro copo. E outro. E mais outro.

O gosto afinal desapareceu, dando lugar às estrelas. Mais uma vez as estrelas. Em cima, embaixo, em toda parte.

No quinto copinho a atmosfera modorrenta do pátio foi cedendo, caindo e se dobrando sobre si mesma até se desfazer por completo, enquanto o vinho produzia seus efeitos costumeiros: langor e euforia.

12
Estela abriu bem os braços como se pretendesse levantar vôo. Entre uma mão e outra, o lençol amarelo, cheiroso, limpo.

Renata bocejou e reclamou:

Às vezes tenho vontade de botar a cara na janela e gritar, gritar, gritar. Saco.

Estavam numa das pequenas e numerosas suítes do prédio-dormitório. Toda a construção sonhava e ressonava.

Renata, aborrecida, acompanhava os movimentos da mãe. A garota matou o bocejo seguinte com a mão e sugeriu:

Você tem razão. Roupas, bijuterias, presentes. Vamos sair amanhã e comprar alguma coisa. Isso sempre melhora meu humor.

Você viajou, não viajou? Do que é que está reclamando?, Estela comentou mantendo o lençol congelado meio metro acima da cama.

Detesto estas idas a São Paulo, você tá careca de saber disso. Fico todo o tempo presa nos hotéis. E o calor? Sempre infernal.

O lençol descongelou e desceu com suavidade. Ao tocar o colchão, já era um quadrado perfeito.

Estela suspirou. Bocejou. Coçou a perna.

Seu pai está muito preocupado com tudo o que tem acontecido.

Todos nós estamos. Alguns mais, outros menos. E ele não é meu pai.

Renata, pelo amor de Deus, não começa.

Mãe!

Ok. Estamos as duas exaustas. Amanhã você me conta como foi a viagem. Com detalhes!

Renata despiu-se em silêncio deixando cair preguiçosamente cada peça de roupa sobre uma antiga poltrona forrada com um tecido lilás rico em filigranas.

13
Rapaz, aquilo lá está um verdadeiro hospício.

Rodrigo, embalado pelo buquê do vinho, contava aos dois acompanhantes como a indiferença governamental, aliada a uma total falta de estratégia por parte da oposição, havia criado um clima de puro desentendimento entre as autoridades e a camada mais esclarecida da população. Um clima absurdo e insano, bárbaro e devastador.

Nos corredores do Palácio Bandeirantes poucos são os que ainda conseguem raciocinar com um pingo de clareza. Ninguém diz coisa com coisa. Parecem saltimbancos ou profetas declamando ao deus-dará.

Espera um minuto, meu senhor, as coisas não são bem assim, não, Pedro Penna grunhiu.

Pela primeira vez o visitante pareceu realmente exasperado.

Rodrigo não se deixou intimidar:

O secretário de segurança pública.

Estou sabendo disso.

Pois bem, o secretário de segurança pública.

Boatos, meu caro, calúnias apenas.

O secretário de.

Isso não quer dizer nada.

Posso terminar, sim?! Porra. O secretário de segurança pública e o presidente da Câmara dos Vereadores exigiram do procurador geral da.

Sei, um mandato de prisão contra os livreiros que não estão cumprindo o embargo instituído pelo presidente. E daí?

Um mandato contra os que não estão cumprindo a seguinte ordem: todas as editoras do país estão proibidas de publicar novos títulos, nenhum livro novo deve sair ou entrar nas livrarias e nas bibliotecas nos próximos seis meses. Uma ordem do próprio presidente da República! O que o senhor me diz disso?

14
Estela escorou metade do corpo na pilha de livros que havia atrás da porta do banheiro.

Seu pai… Fred. Ele esperou por esse sujeito durante semanas. Esperou impacientemente. Quase não conseguia dormir. Xingava o dia todo.

Renata acomodou-se como pôde na banheira pequena, deixando o calor da água subir por sua espinha. Os círculos que os seus joelhos formavam na superfície lisa e soporífera se chocavam uns com os outros, provocando arrepios e devaneios.

Acomodou-se dobrando as pernas ao máximo, curvando-se como um feto.

Dois meses depois da primeira solicitação à Secretaria da Administração Pública o homem chegou, é, chegou como se fosse o manda-chuva, o sabe-tudo, o bambambã. Chegou envolto numa atmosfera divina, cercado de querubins e serafins, sobre uma nuvem vermelha. De ônibus!

Minhas pernas estão um pouco peludas, pensou Renata acariciando-se.

Nem de helicóptero nem de carro oficial. Ônibus! Dá pra acreditar numa coisa dessas?

Minhas pernas. Como sou desleixada. Estão peludas.

Agora aí está ele zanzando pra lá e pra cá, observando tudo, anotando tudo, e só. Só isso! Não fez mais nada até agora. Pelo menos nada de concreto, nada de objetivo.

Mãe, pelo amor de Deus, cala a boca.

Renata não disse nada, apenas pensou.

Não desgruda do telefone, o pobre-diabo. Você precisa ver. É demais. O dia todo pendurado no telefone, no maldito telefone, falando ora com Vossa Excelência Fulano de Tal, ora com Vossa Eminência Beltrano de Tal, ora com Vossa Majestade Sicrano de Tal.

Renata fixou o olhar no ponto mais distante que encontrou: a cortina do banheiro. Só assim conseguiu deixar de escutar toda essa baboseira.

Havia na cortina milhares de desenhos minuciosamente trabalhados. Desenhos cheios de detalhes e reentrâncias. Desenhos iguais aos do sofá lilás. Como não podia deixar de ser, a cortina havia sido confeccionada com o mesmo tecido do sofá.

Figuras orientais representando elefantes e tigres, princesas e macacos, cercadas por arabescos finíssimos.

Começou a contá-los.

Seu pai está se iludindo mais uma vez. Quem não vê isso?

Uma, duas, três. Cem mil figurinhas. Cem mil arabescos.

Pedro Penna. Olha só o nome do figura. Senhor Pedro Grudado ao Telefone Penna.

Renata afundou um pouco a cabeça na água. Mas não muito. Afundou o suficiente apenas para cobrir as orelhas.

Para sua surpresa ela logo percebeu que esse recurso era excelente para tirá-la de dentro do banheiro, para alçá-la a outro mundo muito mais quente e silencioso.

Estou em Júpiter, pensou.

15
Chega aqui, dê só uma olhada nisto, o bibliotecário disse segurando o visitante pelo cotovelo, excedendo-se talvez na impetuosidade do gesto.

O visitante segurou as duas mil e oitocentas páginas encadernadas da relação de livros catalogados no mês de março. Na página 2.566 havia, grifado com uma caneta amarela, o nome de duas obras clandestinas.

Ao lado de cada título, o nome do autor e um número de chamada.

O turista sem alma. Bruno Botelho. 677C.

Raízes sociais e políticas de seis propostas fenomenológicas para o próximo milênio. Antônio Francisco Sodré. 899C.

Veja só isso. Somente no meu pavilhão no mês passado apareceram três centenas de livros completamente irregulares. E no meio deles dois títulos até então fora de catálogo há mais de cinqüenta anos.

O turista sem alma e Raízes sociais e políticas de seis propostas fenomenológicas para o próximo milênio?

Exatamente. O turista foi publicado pela primeira vez em 1912. Teve duas reedições, uma em 1913, outra em 1919, antes de desaparecer por completo.

Bruno Botelho.

Um ficcionista inexpressivo, um contista insignificante. Morreu logo depois da primeira edição desse seu único romance. No início o livro vendeu bem, mas não veio a emplacar nos anos seguintes.

Caprichos do mercado editorial, Rodrigo atalhou.

Pois é. Já as Raízes sociais e políticas tiveram vinte e duas edições entre 1864 e 1942. Depois o livro foi esquecido. Cogitava-se mais uma edição no final do ano passado, uma edição comemorativa, porém o embargo presidencial chegou no momento em que as primeiras provas estavam sendo revisadas, impedindo assim os planos da editora.

O bibliotecário recebeu de volta o calhamaço. Virando as páginas com extrema meticulosidade, como se se tratasse de um pergaminho muito antigo e valioso, talvez egípcio, talvez babilônico, ele continuou passeando pela lista de publicações.

Estamos com muito trabalho atrasado. Cacete! Como se já não bastasse a montanha de títulos da última década aguardando pra ser catalogada, e agora isso: reedições piratas aparecendo mensalmente do nada.

16
O sabonete escorregou para dentro da banheira. Com desmazelo ele deslizou através das correntes marítimas que circundavam a garota.

Escorregou e bateu no fundo, bem embaixo dos joelhos de Renata, dançou um pouco, vítima das oscilações por ele mesmo provocadas, e parou.

Quem gritou?

Ninguém, ela mesma concluiu abrindo os olhos.

Enxergou tudo creme. Sim, creme, a mesma cor das paredes internas da banheira.

No entanto o grito ainda repercutia. O grito imaterial do sabonete batendo no fundo da banheira, dividindo as águas, provocando uma ligeira tempestade submarina.

Renata fechou novamente os olhos. Não gostava do creme que impregnava suas pernas, seus peitos, seu cabelo.

Queria dormir, ah, apenas dormir.

Próximos capítulos

Bêbados, perdidos na noite, o bibliotecário, seu genro e o visitante discutem longamente sobre a questão dos livros ilegais e a impotência do poder público para controlar essa crise. Sombras sinistras passeiam pelos corredores e pelas ante-salas adormecidas, conspirando contra a lei e a ordem. Enquanto isso Renata, submersa na banheira, começa a tomar contato com outra realidade mais rica e sedutora do que a nossa.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho