Kopakabana

Conto de Daniel Argolo Estill
Ilustração: Marco Jacobsen
01/02/2007

Arrasto-me sobre uma imensa massa líquida, braços e braços, cada onda uma barreira, cancelas que se abrem e fecham para a minha passagem. Com olhos ardentes vejo erguer-se à frente a muralha de uma fortaleza, entre dois fortes. No entanto, na extremidade à minha direita, vislumbro a forma de um gigantesco Leme, protegido por mais muros, castelos e canhões. Na outra extremidade, vejo um imenso canhão rígido, ereto, voltado para o horizonte, capaz de destroçar o que quer que atravesse seu caminho. Será aquilo uma imensa arca de guerra, que se erguerá das âncoras e navegará pelos oceanos, um leviatã que tudo devora? Não sei, parece-me tudo tão fixo, tão sólido, tão seguro, em oposição a essa massa líquida sobre a qual me arrasto e que desejo, preciso, deixar para trás. Além da muralha, sobre um topo, vejo um homem vestido de branco. Ele olha para mim, tem os braços abertos, como se me esperasse. O líquido esverdeado chega ao fim, substituído por um solo de partículas amarelas, que se grudam aos meus pés, é impossível livrar-se delas. Tento arrancá-las da pele com as mãos, mas elas grudam-se às mãos, aos braços, ocupam-me. Continuo avançando. Acredito que as ondas chegaram ao fim, para logo perceber o engano. Há mais ondas, toda uma faixa sólida de ondulações sobre as quais devo caminhar. Um chão incerto, onda preta, onda branca, ondapreta, ondabranca, ondapretaondabrancaondapretaonda. E eu perco a direção, vertigem, hordas que me arrastam, fossos de piche amolecido pelo calor que é esse lugar, espaços que devo atravessar até a base da muralha. A muralha, vejo agora, são várias construções coladas umas às outras, com aberturas em todo o seu comprimento. Aberturas que me olham, mas não me deixam ver o que há por trás, impedem que eu veja o homem de braços abertos lá no alto, mas eu sei que ele está lá e que me espera e que deve haver um caminho.

Ando ao longo da muralha, forçando portões protegidos, sendo expulso e retornando, até que uma pequena porta se abre. Atrás dela, uma escada escura. Começo a subir. A escada está tomada de excrementos, ratos e insetos monstruosos. Reconheço-os. Foram como eu um dia, mas se transformaram. Eu não paro. Não tem fim, estou exausto, arrasto-me uma vez mais sobre uma massa viscosa, mas ainda sinto os degraus, um após o outro. É inútil tentar me limpar. Só aquele homem lá no alto, à minha espera, poderá me deixar limpo. Horas e dias. Até uma porta que se abre. Um terraço. Ofuscado pela luz, aproximo-me da beirada. O que vejo é assustador. A muralha esconde uma cidade inteira, cercada por toda aquela massa de líquido salgado, insalubre, imundo. A cidade está espremida entre duas muralhas, percebo agora. Do ponto mais alto da segunda muralha, mais alta e maciça que a primeira, o homem imóvel, de braços abertos, continua a olhar para mim. Parece rir. Aproximo-me ainda mais da beirada. Abro os braços e imito sua posição, com a cabeça inclinada para frente, olhando para o abismo, e começo a cair.

O conto Kopakabana, de Daniel Argolo Estill (tradutor, jornalista e mestre em teoria literária pela USP), foi produzido durante a Oficina da Imaginação que José Castello coordenou na Estação das Letras, Rio de Janeiro, entre 8 e 12 de janeiro de 2007, em esquema de maratona. As Oficinas da Imaginação têm por objetivo expandir a imaginação dos participantes, desobstruindo-a de idéias prontas, de lugares-comuns e de clichês. É freqüentada não só por escritores, mas também por atores, músicos, pintores e outros profissionais da criação.

Daniel Argolo Estill

É tradutor e crítico literário.

Rascunho