Ao se folhear pela primeira vez o livro O bailado humano, de Carlos Kahê, estranha-se que não haja nenhum conto com o mesmo título do livro, tão comum em coletâneas de narrativas curtas. Ao final da leitura compreende-se a ausência. Os contos têm uma conexão natural, alinhavada pela busca da essência humana em cada uma das onze histórias.
Em A pedra e o nada, o casal de idoso deixa que o ocaso da relação transforme suas vidas numa burocrática espera pelo destino. Somente quando a morte chega para recolher o velho Zai é que sua esposa arrepende-se por não ter valorizado o companheiro de tantos anos.
Quando a carruagem fúnebre desceu o batente, Alma não percebeu que sua melhor parte seguia naquele caixão; estacou imóvel à porta de sua casa, com o olhar mortiço acompanhando o cortejo, até quando a sombra escura desapareceu no final da rua.
O homem de terno azul conta os infortúnios de Jesuíno, um trabalhador incansável que, de subemprego em subemprego, consegue dar estudo para as quatro filhas. Ele prepara um terno para o tão sonhado dia de vê-las formadas, mas não percebe que as filhas têm vergonha do pai pobre.
É bom que se embriague cedo. Só assim vai pra cama e não nos envergonha com essa história de tirar minhas amigas para dançar. Se caísse numa fogueira e saísse de lá assado, com o facho queimado. Mas, não…
O bailado humano é uma boa apresentação de Carlos Kahê, um baiano formado em economia mas com aspirações literárias. Enquanto se prepara para lançar o interessante romance O santo selvagem, Kahê revela sensibilidade neste livro de contos. Seus personagens são simples e até ingênuos, mas encaram a vida com coragem, mesmo quando ela lhes dá rasteiras após rasteiras.
O autor também arrisca na imaginação, criando algumas fantasias como as dos contos O estranho amante do Grajaú, em que o protagonista é um espírito sensual; A lua-de-mel, em que a jovem noiva reluta em permitir o contato íntimo com o marido; e O príncipe, um relato da saga de Abdias, negrinho engraxate que sonha em ser ídolo no Fluminense e vai para a igreja de bicicleta para se casar com uma mulher branca.
Mas é no conto Bandeira, dissoluto, estrela de uma vida inteira, que Carlos Kahê mostra mais profundidade em sua escrita, deixando evidente a paixão pelo lirismo e pela poesia de um dos maiores escritores brasileiros. O conto é uma ode a Manuel Bandeira, cujos versos são habilmente encaixados na narrativa em que o protagonista sai pelas ruas de Recife, Rio e Ouro Preto em um passeio ao lado do poeta homenageado.
Pousamos em meu novo quarto virado para o nascente. Todas as manhãs o aeroporto em frente me dava lições de partir. Ele me disse num entressorriso: “Não pense que estou aguardando a lua cheia… É que os mares tranqüilos repousam atrás dos olhos de uma menina sereia…”
Nos contos Bandeira, dissoluto, estrela de uma vida inteira; A dor propriamente; e Sentimento do mundo: um ser feito de poesia, Carlos Kahê mostra que não é tão bom para fazer títulos. Mas, ao final da coletânea, não há como negar que o seu bailado humano faz sentido.