Jair Ferreira dos Santos, antes de qualquer rótulo, é um sujeito que não aceita a realidade como ela se apresenta. Jair Ferreira dos Santos é um dos mais vorazes leitores que este Brasil gerou. Jair Ferreira dos Santos se entrega ao porvir. Jair Ferreira dos Santos vive a realidade. Jair Ferreira dos Santos alia, como poucos, o conhecimento livresco com o conhecimento mundano. Jair Ferreira dos Santos não consegue ficar em silêncio diante da opção que a maioria fez, faz e seguirá fazendo pela mediocridade. Jair Ferreira dos Santos, realmente, pensa. Jair Ferreira dos Santos, fato consumado, escreve. Jair Ferreira dos Santos é autor, entre outros livros, do best seller O que é pós-moderno, da coleção Primeiros passos, da Brasiliense, com 100 mil exemplares comercializados. Jair Ferreira dos Santos é um atento observador — da realidade, da surrealidade, da vida, das cenas enfim. Jair Ferreira dos Santos é um homem revoltado, inconformado. Jair Ferreira dos Santos traduz a sua revolta, e o seu inconformismo, em literatura. E um pouco disso está espalhado nas páginas do recém-publicado Cybersenzala.
Cybersenzala apresenta 10 contos. Esses textos de ficção estabelecem fina sintonia com o que está no ar, na terra e no coração selvagem do tempo presente. Tempo este que parece conduzir grande parte dos humanos rumo a uma confortável mediania. A metralhadora de Jair Ferreira dos Santos se volta carregada de ironia, atenção & deboche contra essa mentalidade média. E quem apresenta e usa essa mentalidade média são, somos quase todos nós: os que habitam e circulam pelas senzalas desses tempos 2007. Pouco importa ter feito um MBA. Um diploma de mestre, ou de doutor, não fará tanta diferença assim. O bom gosto também não é garantia de redenção. Experiência cibernética? Refinamento e erudição? A senzala é o destino. Uma senzala disfarçada. Com bom aroma até. Com computadores e conexões as mais variadas. Com uma série de inutensílios. E entretenimento de sobra para entorpecer o imaginário e, no fim das contas, medianizar tudo e todos. Todos condenados a atuar e a representar funções limitadas, limitadoras, embrutecedoras, emburrecedoras. Todos, também, e inclusive, condenados à solidão. Todos, ainda, em busca de uma carreira, a desprezar o destino com as suas surpresas, preços, estragos & delícias. Quase todos sonhando surfar nas ondas das miragens das aparências. Auto-engano é a lei? Quase todos a se esconder atrás de maquiagens, dissimulações e trajes os mais diversos, variados e equivocados.
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Jair Ferreira dos Santos provoca: “por que as pessoas insultam o destino?”. Jair Ferreira dos Santos cutuca o que está quieto e entorpecido: “Nele, em algum núcleo mole boiava a palavra ‘chique’, vicejava a ilusão de que somente entre os bacanas parecia estar a verdadeira vida, que devia ser uma sucessão de momentos excepcionais”. Jair Ferreira dos Santos desmonta as construções que insistem em seguir iludindo tudo e todos: “Uma paixão feroz, extravagante, isto é, superficial e ingênua”. Jair Ferreira dos Santos implode os falsos altares: “no Paraíso tudo é diet e despótico”. Jair Ferreira dos Santos insinua que há algo podre por trás de algumas supostas amizades bem legais: “o pau no cu amigo”. Jair Ferreira dos Santos aponta para a ilusão que é a doce vida dos antenados que buscam o último lançamento, repetem os slogans dos segundos cadernos e se deslumbram com qualquer tolice bem embalada — ele sugere um antídoto: “montar um spa cultural onde as pessoas poderiam se curar de overdoses de entretenimento pela reconvivência com a poesia, as frases de Proust, a música de Mozart”. Jair Ferreira dos Santos sabe que os clichês precisam ser reavaliados: “Não é a morte nem a democracia, mas a masturbação, que nos iguala, por baixo, a todos”. Jair Ferreira dos Santos olha, aponta e fala, sem concessão nem piedade: “Ela parecia, como a maioria dos brasileiros, cheia de energia frustrada”. Jair Ferreira dos Santos sabe que, se todo mundo gosta, logo o lance é uma bosta: “Somente um Deus picareta falaria pela boca do povo”.
Os personagens criados por Jair Ferreira dos Santos são todos vítimas dessa contemporaneidade-senzala-século 21. Não são sujeitos: são objetos. Não agem: reagem. Não vivem: são vividos. Não enxergam: são cegos. E, assim, ao invés de errar, por exemplo, por ousadia, acertam seguindo a cartilha hipnótica de quem opta pela mediocridade caminhando rumo a um porvir sem redenção, sem saída, sem felicidade, sem outra alternativa que não seja a solidão. Mariulza, protagonista de Recursos humanos, depois de não encontrar mais opção para a falta de companhia masculina, apela para um personal fucker. Tôni Labanca, personagem-centro do conto Breve memória do imparável Tôni Labanca, é o deslumbrado, o alpinista social pós-moderno, aquele que “detestava o trabalho, adorava o dinheiro. Não eram, no entanto, as posses nem o poder dos ricos que o mobilizavam; sentia-se atraído antes pelos cenários, as solenidades da riqueza com seus rituais, mulheres, jóias, roupas, objetos e gestos radiantes congelados no limite do ofuscamento”. No conto que empresta o título ao livro, o narrador apresenta diversos habitantes da senzala cyber, enovelados em entretenimento, perdidos no vazio de um consumismo desenfreado e inútil (aboletados de entretenimento) e, entre uma linha e outra entrelinha, é possível encontrar, ao acaso, uma frase como: “‘Meu pai falou que só há duas coisas equivalente a assistir Big Brother’, diz Ana Rita. ‘É ser evangélico e comer cocô’”. Jair Ferreira dos Santos não tem piedade nem compaixão com os seus personagens. Ele é cruel, agressivo e implacável — como a senzala cyber, a real, também é.
Você ainda não usou um personal fucker?
Os habitantes da senzala cyber, os personagens inventados por Jair Ferreira dos Santos, e os reais, não têm saída, nem salvação: vão pro abate, caminham inexoravelmente em direção a um inevitável fracasso (seja lá qual for o fracasso, fracasso haverá sim). Nada redime. No entanto, há uma exceção. No conto Fado pauleira, o protagonista é um escritor em crise. Ele tem a sua existência: os rastros a serem entendidos, o porvir nebuloso. E há o desafio de encontrar um mote e, então, escrever um conto. Ao final, após refletir a respeito da existência com seus becos fechados, perigos, prazeres & veredas, depois também de analisar o mundinho literário Made In Brazil, ele consegue, ufa, superar a crise (justa e exatamente por ter encarado e enfrentado a crise): “Escrever, sem data marcada, um conto a se chamar ‘Fado pauleira’, em que ficção e auto-ensaio, em fragmentos saturados de informação, pudessem recuperar este último ano”. A literatura, e seus efeitos, radiações & estragos, surge ainda em um outro conto, O que fazer com o que Kafka fez com a gente: o protagonista, por se considerar fisicamente parecido com o gênio da literatura mundial do século 20, supôs ser possível reencarnar o próprio. E, vítima de kafkose, segue (até, inevitavelmente, se frustrar na empreitada) — num dos momentos mais inventivos e surpreendentes da literatura — deste e de todos os tempos (Kafka faz mesmo a cabeça de Jair Ferreira dos Santos. Ele até já escreveu um outro livro batizado Kafka na cama).
Mas os habitantes da senzala cyber, os inventados por Jair Ferreira dos Santos, e os reais também, não teriam nenhuma saída? (saída para a falta de opções, uma alternativa ou um antídoto contra a mediania imposta pela senzala cyber?), poderiam perguntar os leitores e as leitoras do Rascunho. Não, poderia responder esse resenhista, uma vez indagado. Nem mesmo no ritual de saída desta experiência chamada vida. O conto que fecha o livro — www.joy&peacefuneraldesign.com — até brinca com isso. É um texto de ficção que chega com voz narrativa em primeira pessoa do plural. E faz sentido. Afinal, quem fala é a voz de uma empresa, empresa essa que procura amenizar, aromatizar, personalizar e etceterizar o final da existência. Sim. A Joy & Peace Funeral Design oferece tudo, e mais um pouco, para o momento em que a Indesejada das Gentes se faz presente: “Chamamos para nós o gerenciamento integral daquela circunstância da vida que as pessoas fazem o possível para ignorar porque, sem dúvida, nessa recusa está embutida a fuga ao fim e à dor, a mais humana das atitudes”. E, seja neste conto derradeiro, e em todos os nove outros deste Cybersenzala, eis Jair Ferreira dos Santos, olhos bem abertos para tudo o que se passa, ouvidos ligados nos sons do mundo, dono de texto esperto, linguagem que revela sinais-detalhes-iceberg de um artífice que conhece as regras, e as não-regras, desse negócio que é escrever, eis Jair Ferreira dos Santos a construir literatura com possibilidades excelentes, excêntricas, excepcionais para isso que é, pode e poderá vir a ser chamado de conto.
(E, você, leitor, leitora do Rascunho; ei, você ainda não respondeu: já usou, já precisou de um personal fucker? Hein?!)