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Em “Cybersenzala”, Jair Ferreira dos Santos flerta com a realidade mais do que próxima
01/03/2007

Jair Ferreira dos Santos, antes de qualquer rótulo, é um sujeito que não aceita a realidade como ela se apresenta. Jair Ferreira dos Santos é um dos mais vorazes leitores que este Brasil gerou. Jair Ferreira dos Santos se entrega ao porvir. Jair Ferreira dos Santos vive a realidade. Jair Ferreira dos Santos alia, como poucos, o conhecimento livresco com o conhecimento mundano. Jair Ferreira dos Santos não consegue ficar em silêncio diante da opção que a maioria fez, faz e seguirá fazendo pela mediocridade. Jair Ferreira dos Santos, realmente, pensa. Jair Ferreira dos Santos, fato consumado, escreve. Jair Ferreira dos Santos é autor, entre outros livros, do best seller O que é pós-moderno, da coleção Primeiros passos, da Brasiliense, com 100 mil exemplares comercializados. Jair Ferreira dos Santos é um atento observador — da realidade, da surrealidade, da vida, das cenas enfim. Jair Ferreira dos Santos é um homem revoltado, inconformado. Jair Ferreira dos Santos traduz a sua revolta, e o seu inconformismo, em literatura. E um pouco disso está espalhado nas páginas do recém-publicado Cybersenzala.

Cybersenzala apresenta 10 contos. Esses textos de ficção estabelecem fina sintonia com o que está no ar, na terra e no coração selvagem do tempo presente. Tempo este que parece conduzir grande parte dos humanos rumo a uma confortável mediania. A metralhadora de Jair Ferreira dos Santos se volta carregada de ironia, atenção & deboche contra essa mentalidade média. E quem apresenta e usa essa mentalidade média são, somos quase todos nós: os que habitam e circulam pelas senzalas desses tempos 2007. Pouco importa ter feito um MBA. Um diploma de mestre, ou de doutor, não fará tanta diferença assim. O bom gosto também não é garantia de redenção. Experiência cibernética? Refinamento e erudição? A senzala é o destino. Uma senzala disfarçada. Com bom aroma até. Com computadores e conexões as mais variadas. Com uma série de inutensílios. E entretenimento de sobra para entorpecer o imaginário e, no fim das contas, medianizar tudo e todos. Todos condenados a atuar e a representar funções limitadas, limitadoras, embrutecedoras, emburrecedoras. Todos, também, e inclusive, condenados à solidão. Todos, ainda, em busca de uma carreira, a desprezar o destino com as suas surpresas, preços, estragos & delícias. Quase todos sonhando surfar nas ondas das miragens das aparências. Auto-engano é a lei? Quase todos a se esconder atrás de maquiagens, dissimulações e trajes os mais diversos, variados e equivocados.

Você usa um personal fucker?
Jair Ferreira dos Santos provoca: “por que as pessoas insultam o destino?”. Jair Ferreira dos Santos cutuca o que está quieto e entorpecido: “Nele, em algum núcleo mole boiava a palavra ‘chique’, vicejava a ilusão de que somente entre os bacanas parecia estar a verdadeira vida, que devia ser uma sucessão de momentos excepcionais”. Jair Ferreira dos Santos desmonta as construções que insistem em seguir iludindo tudo e todos: “Uma paixão feroz, extravagante, isto é, superficial e ingênua”. Jair Ferreira dos Santos implode os falsos altares: “no Paraíso tudo é diet e despótico”. Jair Ferreira dos Santos insinua que há algo podre por trás de algumas supostas amizades bem legais: “o pau no cu amigo”. Jair Ferreira dos Santos aponta para a ilusão que é a doce vida dos antenados que buscam o último lançamento, repetem os slogans dos segundos cadernos e se deslumbram com qualquer tolice bem embalada — ele sugere um antídoto: “montar um spa cultural onde as pessoas poderiam se curar de overdoses de entretenimento pela reconvivência com a poesia, as frases de Proust, a música de Mozart”. Jair Ferreira dos Santos sabe que os clichês precisam ser reavaliados: “Não é a morte nem a democracia, mas a masturbação, que nos iguala, por baixo, a todos”. Jair Ferreira dos Santos olha, aponta e fala, sem concessão nem piedade: “Ela parecia, como a maioria dos brasileiros, cheia de energia frustrada”. Jair Ferreira dos Santos sabe que, se todo mundo gosta, logo o lance é uma bosta: “Somente um Deus picareta falaria pela boca do povo”.

Os personagens criados por Jair Ferreira dos Santos são todos vítimas dessa contemporaneidade-senzala-século 21. Não são sujeitos: são objetos. Não agem: reagem. Não vivem: são vividos. Não enxergam: são cegos. E, assim, ao invés de errar, por exemplo, por ousadia, acertam seguindo a cartilha hipnótica de quem opta pela mediocridade caminhando rumo a um porvir sem redenção, sem saída, sem felicidade, sem outra alternativa que não seja a solidão. Mariulza, protagonista de Recursos humanos, depois de não encontrar mais opção para a falta de companhia masculina, apela para um personal fucker. Tôni Labanca, personagem-centro do conto Breve memória do imparável Tôni Labanca, é o deslumbrado, o alpinista social pós-moderno, aquele que “detestava o trabalho, adorava o dinheiro. Não eram, no entanto, as posses nem o poder dos ricos que o mobilizavam; sentia-se atraído antes pelos cenários, as solenidades da riqueza com seus rituais, mulheres, jóias, roupas, objetos e gestos radiantes congelados no limite do ofuscamento”. No conto que empresta o título ao livro, o narrador apresenta diversos habitantes da senzala cyber, enovelados em entretenimento, perdidos no vazio de um consumismo desenfreado e inútil (aboletados de entretenimento) e, entre uma linha e outra entrelinha, é possível encontrar, ao acaso, uma frase como: “‘Meu pai falou que só há duas coisas equivalente a assistir Big Brother’, diz Ana Rita. ‘É ser evangélico e comer cocô’”. Jair Ferreira dos Santos não tem piedade nem compaixão com os seus personagens. Ele é cruel, agressivo e implacável — como a senzala cyber, a real, também é.

Você ainda não usou um personal fucker?
Os habitantes da senzala cyber, os personagens inventados por Jair Ferreira dos Santos, e os reais, não têm saída, nem salvação: vão pro abate, caminham inexoravelmente em direção a um inevitável fracasso (seja lá qual for o fracasso, fracasso haverá sim). Nada redime. No entanto, há uma exceção. No conto Fado pauleira, o protagonista é um escritor em crise. Ele tem a sua existência: os rastros a serem entendidos, o porvir nebuloso. E há o desafio de encontrar um mote e, então, escrever um conto. Ao final, após refletir a respeito da existência com seus becos fechados, perigos, prazeres & veredas, depois também de analisar o mundinho literário Made In Brazil, ele consegue, ufa, superar a crise (justa e exatamente por ter encarado e enfrentado a crise): “Escrever, sem data marcada, um conto a se chamar ‘Fado pauleira’, em que ficção e auto-ensaio, em fragmentos saturados de informação, pudessem recuperar este último ano”. A literatura, e seus efeitos, radiações & estragos, surge ainda em um outro conto, O que fazer com o que Kafka fez com a gente: o protagonista, por se considerar fisicamente parecido com o gênio da literatura mundial do século 20, supôs ser possível reencarnar o próprio. E, vítima de kafkose, segue (até, inevitavelmente, se frustrar na empreitada) — num dos momentos mais inventivos e surpreendentes da literatura — deste e de todos os tempos (Kafka faz mesmo a cabeça de Jair Ferreira dos Santos. Ele até já escreveu um outro livro batizado Kafka na cama).

Mas os habitantes da senzala cyber, os inventados por Jair Ferreira dos Santos, e os reais também, não teriam nenhuma saída? (saída para a falta de opções, uma alternativa ou um antídoto contra a mediania imposta pela senzala cyber?), poderiam perguntar os leitores e as leitoras do Rascunho. Não, poderia responder esse resenhista, uma vez indagado. Nem mesmo no ritual de saída desta experiência chamada vida. O conto que fecha o livro — www.joy&peacefuneraldesign.com — até brinca com isso. É um texto de ficção que chega com voz narrativa em primeira pessoa do plural. E faz sentido. Afinal, quem fala é a voz de uma empresa, empresa essa que procura amenizar, aromatizar, personalizar e etceterizar o final da existência. Sim. A Joy & Peace Funeral Design oferece tudo, e mais um pouco, para o momento em que a Indesejada das Gentes se faz presente: “Chamamos para nós o gerenciamento integral daquela circunstância da vida que as pessoas fazem o possível para ignorar porque, sem dúvida, nessa recusa está embutida a fuga ao fim e à dor, a mais humana das atitudes”. E, seja neste conto derradeiro, e em todos os nove outros deste Cybersenzala, eis Jair Ferreira dos Santos, olhos bem abertos para tudo o que se passa, ouvidos ligados nos sons do mundo, dono de texto esperto, linguagem que revela sinais-detalhes-iceberg de um artífice que conhece as regras, e as não-regras, desse negócio que é escrever, eis Jair Ferreira dos Santos a construir literatura com possibilidades excelentes, excêntricas, excepcionais para isso que é, pode e poderá vir a ser chamado de conto.

(E, você, leitor, leitora do Rascunho; ei, você ainda não respondeu: já usou, já precisou de um personal fucker? Hein?!)

Cybersenzala
Jair Ferreira dos Santos
Brasiliense
174 págs.
Jair Ferreira dos Santos
Nasceu em Cornélio Procópio, Norte do Paraná, uma pequena cidade com grandes índices de saneamento público. Graduou-se em Comunicação Social na UFRJ. Já escreveu vários livros. Kafka na cama, A inexistente arte da decepção e O que é pós-moderno são alguns. Transita pelo ensaio. É ficcionista. Tem 61 anos e há muito tempo vive no Rio de Janeiro.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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