Fios e desafios desta travessia

Em “Sonho interrompido por guilhotina”, de Joca Reiners Terron, há uma fluência na fabulação que empurra para frente a leitura
Joca Reiners Terron: longe das facilidades da literatura.
01/03/2007

Joca Reiners Terron lança Sonho interrompido por guilhotina, e nos oferece uma contribuição valiosa cuja marca predominante é a seriedade com que se debruça sobre as questões em discussão e as exigências que tal atitude impõe ao leitor, personagem, sujeito e criador também desse belo trabalho.

O conjunto dos 16 contos que compõem o livro, carregado de humor e irreverência, não se furta à acentuada dose de uma poética apaixonante que se destaca, invariavelmente, como elemento unificador e ao mesmo tempo surpreendente, a confundir o leitor que não seja dado a grandes desafios. Afinal, a literatura das facilidades não diz respeito a Terron e nem aos mestres que questiona e homenageia.

Neste sentido, o livro possui uma densidade que pode lançar à desconfiança e ao vazio do nonsense gratuito como elemento perturbador, que dificulta se seguir adiante. Por outro lado, há uma fluência na fabulação que empurra para frente a leitura e semeia a necessidade de um envolvimento mais efetivo. Já no primeiro conto, De escritores e escorpiões, essa perspectiva é explicitada: “O leitor ideal é cego. Um cego parado na esquina mais movimentada de uma grande cidade, à espera de quem o ajude a atravessar a rua”.

O escritor, por sua vez, é o escorpião assassino de um leitor cego, abandonado, atropelado, mas sobrevivente dos perigos das ruas dessa cidade das letras. O escritor como escorpião é assassino e suicida, também é leitor compulsivo de seus mestres e pares e, portanto, confundido em sua imagem narcísea, na superfície espelhada da linguagem, a se perder e “se afogar na própria imaginação”. Tanto o primeiro quanto o décimo quinto conto, De escorpiões e escritores, têm um enfoque privilegiado pela perspectiva metaficcional. A ficção, sua linguagem, debruça-se sobre a reflexão da própria ficção. São dois contos aparentemente despretensiosos, cheios de metáforas e imagens poéticas. O primeiro abre o livro e o décimo quinto, praticamente, complementa a discussão iniciada na abertura. Tornam-se fundamentais para, como leitores, apesar de atropelados e cambaleantes, conseguirmos dar conta da travessia.

Metade dos contos aqui apresentados já foi publicada em coletâneas específicas ou de alguma outra forma. Surgem readaptados para o novo formato de livro de contos. Podem ser lidos com autonomia dentro de suas particularidades, mas sua leitura se potencializa quando compreendidos como elementos de um conjunto mais amplo, aglutinados que estão tanto em torno da temática predominante, quanto da concepção formal da construção narrativa. Neste sentido, Terron radicaliza a quebra de fronteiras do conceito de gêneros. Reúne poesia, fotos, entrevistas, biografias, num mosaico interligado por fios temáticos e estruturais, criando um produto híbrido que tanto pode ser designado como um conjunto de contos, como um quase-romance ou, por que não, um romance.

“Este livro é dedicado a Valêncio Xavier, José Agrippino de Paula, Glauco Mattoso & Raduan Nassar, e outros que não se recusaram a ouvir o canto das sereias de Ulisses…” O grande tributo a esses autores vai além da pura dedicatória. Eles são reeditados em cada conto que protagonizam como personagens e escritores amados e malditos. Dramatizam, a partir da ação, os embates que vivenciaram ou vivenciam através da sua obra literária aliada à própria trajetória e dificuldades de vida. Tudo isso perpassando pela construção textual na qual há um esforço de reproduzir, em linhas gerais, as propostas e escolhas estéticas que esses autores priorizaram em sua produção.

Assim, o leitor cego ao atravessar a rua, pelo menos num primeiro momento, conta com a mão do escritor escorpião que o convoca à leitura não apenas do seu texto, mas da obra dos demais escritores que homenageia. Contos como Monsieur Xavier no Cabaret Voltaire e El gran circo Freak de VC Niculitcheff podem ser lidos enquanto um momento de resgate da obra de Valêncio Xavier. Enfocam suas obsessões pelas imagens, a contaminação da linguagem cinematográfica, a colagem, os recortes de uma memória que precisa se fixar e escapa, ameaçada pelo esquecimento do mestre em sua fragilidades. É assim que Monsieur Xavier… é organizado de maneira híbrida, reunindo diferentes técnicas narrativas: recortes, fotos, entrevistas, fluxo de consciência, interrogatório policial, etc. Esta multiplicidade de técnicas intensifica o estranhamento que a narrativa descontínua e, às vezes, delirante, proporciona na quebra de sentidos do ponto de vista do conteúdo. O protagonista se revolta quando chamado de surrealista e se defende: “Surrealista, vírgula, sou é dadaísta. Dadaísta, sim, senhor! Eu opero é, na anarquia, o meu método de criação é a fraude, o plágio, a colagem”. Em El gran circo…, o narrador escritor e ensaísta mescla discussão crítica com fatos ligados à biografia de Valêncio Xavier e seu encontro com ele.

Glauco Mattoso
No conto Olho morto & Faro fino é Glauco Mattoso que entra em cena. Como personagem-narrador não pode ser compreendido desvinculado da sua biografia (Teve sua visão afetada por glaucoma e ficou cego) e da sua produção literária (Manual do podólatra amador, Memórias de um pueteiro, por exemplo). Narra aspectos de sua vida de escritor cego a um interlocutor que chama de Pluto, o “senhor dos destinos”, que como o Pluto de Dante o ajudaria a ser conduzido aos infernos. Sob ameaça de ser a próxima vítima, está no meio de uma investigação, na qual um detetive busca um assassino de “glaucomatosos”, o que de certa forma está vinculado a sua tara por pés masculinos e seus odores. São os versos do seu poema Kaleidoscópio que são usados pelo assassino para tatuar suas vítima.

Gordas levitando e Expurgos na via pública centram-se em José Agrippino de Paula. Vida, obra, escolhas estéticas, maneira de lidar com a linguagem e com os textos são revisitados sob diversas formas, desde a gozação debochada e grotesca até a releitura crítica de seus livros consagrados, Panamérica e Lugar público. Personagens de Agrippino de Paula povoam a solidão do seu leitor — escritor, largado à própria sorte. O escritor desaparecido é procurado pela cidade. E quando o encontram não são reconhecidos e se desesperam. “— Somos nós, pai. Napoleão, Cícero e os outros./ — Seus nomes não são estranhos?/ — E não são, somos seus filhos. Por que nos abandonou, pai?” São estas as vozes de personagens e leitores ficcionais que ecoam, vindos da tal vida real, podendo ser encontradas em artigos de jornais, como um do Mário Prata, ou sites da internet: Por onde andará José Agrippino de Paula?

Alguns dos contos são compostos por fragmentos datados (dia da semana e horário). Como exemplo temos El gran circo Freak de VX Niculitcheff, Algo embaraçoso deixado pra trás, Espurgo na via pública, Monumento ao escritor desconhecido. Com isso, vários aspectos são ressaltados: opera-se o recorte, estabelece-se uma precária linearidade temporal entre os fragmentos, explicita-se uma construção em processo, fixa-se o presente narrativo entrecortado. Mais ainda, pode-se observar que o texto impresso incorpora, além das técnicas já mencionadas anteriormente, elementos do texto eletrônico, marca autoral do escritor destes contos. Joca R. Terron nos remete assim à sua própria vivência e trajetória profissional. O seu livro Hotel Hell reúne textos apresentados, anteriormente, em seu blog. Poemas, críticas, declarações, trocas, desabafos engrossam uma rede de interlocutores atentos à sua produção.

Heidrun Olinto, analizando o papel da mídia eletrônica na literatura, observa que “esse mosaico em movimento obriga o leitor a tomar atitudes afetivas e a refletir sobre os próprios gestos receptivos e construtivos — tanto de índole intelectual quanto sensorial e manual — que se transformam em atos de sua experiência social”. Ou seja, o reflexo dessa experiência para o livro impresso amplia tanto as possibilidades de expressão dos autores, quanto as novas formas de intervenção e participação efetiva dos leitores, criando, portanto, novas sensibilidades e exigências.

No conto Monumento ao escritor desconhecido, o protagonista visita Cosmorama como jurado de um concurso literário. Carrega para todo lado uma anacrônica cordinha de descarga de privada, na qual diz trazer a realidade amarrada na coleira. Pode-se dizer que os referenciais de realidade amarrados nessa cordinha atravessam todo o livro e nos impulsionam, como leitores e co-autores do hiper-texto ficcional, a transitar nos devaneios de narradores e personagens paranóicos, esquizofrênicos, loucos, fragilizados, cheios de sonhos, pesadelos e saídas criativas e surpreendentes para os naufrágios encontrados pelo caminho. Essa cordinha que carrega a realidade funciona como verdadeira guilhotina a interromper sonhos ou estrangular sonhadores desencantados, como um velho poeta de Cosmorama, seu Nassar, acometido de uma verdadeira Teomania, o vício compulsivo de nomear todos as coisas. Com essa cordinha, o poeta paranóico é estrangulado pelo narrador, sem “esboçar reação alguma… As palavras parecem ter lhe faltado na hora”.

Esse ajuste de contas, digamos assim, do escritor-narrador não pára por aí. No conto seguinte, Cem mil frangos fantasmas, Raduan Nassar é retomado a partir de uma entrevista com Elvis César Bonassa, na Folha de S. Paulo (30/05/95). O narrador, além de escritor, coloca-se como leitor de Nassar, abandonado, excluído, assassinado com a deserção do mestre, que parou de escrever. O conto é um mosaico com textos de Nassar, crítica, poesia, devaneios de galinhas e leitores fantasmas, assassinados. Estabelecendo conexão disso tudo com a vida e obra de Nassar , está a realidade, devidamente encoleirada.

“É terrível. A sensação de abandono é um espinho de pirarucu na garganta, um assombro… eu quero me vingar do escritor assassino enquanto é tempo…” Esse assombro e a necessidade de vingança faz o narrador recorrer a um poema de Stephen Dobyns e confeccionar uma cela feita com palavras, são destes versos que serão produzidas “as barras de ferro de uma prisão textual que o prenda por toda eternidade”. E se essa prisão não for suficiente que se crie outra rede, outra linguagem que a sobreponha, uma imagem, por exemplo, como a capa do livro, cheio de olhos fantasmas e vigas azuis e cremes de sonhos interrompidos sobre um fundo preto de falta de perspectivas.

Sonho interrompido por guilhotina é uma conturbada travessia para um leitor, que segundo o narrador-escritor, “é uma entidade que pede para ser enganada: quem abre um livro não o faz impunemente”. É preciso pagar o preço, sujar as mãos, sentir o cheiro das palavras escritas com fezes nas paredes dos banheiros. É preciso partilhar segredos de escritores malditos que precisam de cúmplices para seu crime de, apesar de, continuar escrevendo. O relato do protagonista de Algo embaraçoso deixado para trás é mais que simples escatologia. Retomando a epígrafe de Lichtenberg: “Meu corpo é a parte do mundo que meus pensamentos podem mudar. … No resto do mundo, minhas hipóteses não podem turvar a ordem das coisas”. A palavra que fede é metáfora, é a escrita do corpo que ainda busca formas de se fazer expressão, dentro da falta de futuro da literatura, mas num presente possível, é a discussão da nossa impotência frente a tantos sonhos interrompidos por guilhotina.

A literatura não tem mais um sentido fixo, centrado num futuro redentor como acreditaram muitos dos nossos modernistas heróicos. Não há mais futuro, mas há um presente em curso, que o escritor e o leitor contemporâneos estão aprendendo, a duras penas, a explorar. Continua-se lendo, escrevendo e buscando múltiplos, precários e transitórios sentidos. Isto exige coragem para saber lidar com as perdas, os fracassos, e os desencantos. Trata-se “sim de lutar até o final, de se entregar até o último instante da batalha, aquele momento no qual se torna possível ver o sol de um novo dia que não será vivido surgindo no reflexo da lâmina estendida sobre o pescoço”.

Sonho interrompido por guilhotina
Joca Reiners Terron
Casa da Palavra
183 págs.
Joca Reiners Terron
Nasceu em Cuiabá (MT), em 1968. Escritor, designer gráfico e editor, estreou na literatura em 1998 com os poemas de Eletroencefalodrama. Publicou também os romances Não há nada lá (2001) e Hotel Hell (2003), além dos poemas de Animal anônimo (2002) e as narrativas de Curva de rio sujo (2003).
Vilma Costa

É professora de literatura.

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