Traçar paralelos entre ficção e realidade na obra de J. M. Coetzee é um trabalho de que o próprio autor, quando entrevistado, faz questão de se abster. Livros como À espera dos bárbaros, Desonra e Elizabeth Costello poderiam facilmente encabeçar alguns dos mais inflamados debates sobre a questão da tortura, do choque de identidades culturais e da metaficção na contemporaneidade. Todavia, diante de tantos caminhos de leitura, não é à toa que a obra de Coetzee, tal como seu autor, permanece irredutível a qualquer partidarismo crítico.
Não seria difícil, nem fora de propósito, associar a indigência moral e física de um magistrado submetido à tortura no posto distante de um império sem nome e sem data, em À espera dos bárbaros, às piores humilhações de uma vítima dos campos de Birkenau, Buna ou Auschwitz. Há diversas passagens do livro em que essas relações são mais do que óbvias. “O que me fazem passar é sujeição às mais rudimentares necessidades do corpo: beber, aliviar-me, encontrar a postura que doa menos”, diz o velho magistrado. Ao que ele poderia acrescentar: “Não me interessava por mais nada além do meu prato de sopa diário, do meu pedaço de pão seco. (…) Eu era um corpo. Talvez menos ainda: um estômago faminto”. Essa passagem, extraída do relato autobiográfico A noite, de Elie Weisel, narra um dos horrores que o autor testemunhou e sofreu nos campos de concentração da Alemanha durante o ano de 1944.
A disputa brutal pela terra e a lei da força em Desonra e Juventude oferecem contornos tão palpáveis da presença e da sombra do apartheid na África do Sul, e, no caso de Desonra, com tal visibilidade, que não seria menos óbvio encontrar aí uma fresta para os anais da história. Cabe lembrar que, sob temática semelhante do regime da violência e do estranho olhar ocidental sobre a África negra, o cinema produziu recentemente filmes, como Em minha terra, O jardineiro fiel e A intérprete.
Já em uma auto-reflexão sobre a escrita e o papel do escritor em tempos neoliberais, Elizabeth Costello, entre outras lições, desencadeia uma série de questionamentos sobre imposturas literárias, consciência moral e possíveis vinculações da arte com o modo de vida, as crenças ou descrenças pessoais do artista e a verdade da obra. Famosa romancista australiana de 66 anos, Elizabeth encarna a figura do escritor itinerante que viaja o mundo atendendo a entrevistas, discursos para graduandos, congressos acadêmicos, seminários, conferências e até mesmo palestras em um navio de cruzeiro para aposentados. Debater os significados do romance, esmiuçar suas intenções e, sobretudo, entreter o público com uma grande performance: nesse circuito da literatura enquanto profissão do espetáculo, os “livros servem de credenciais, nada mais”.
Considerando a ponte, ou ainda, o abismo entre arte e moral na experiência da leitura ou da escrita, o postulado de Jacques Rancière, por exemplo, de que já não se pode pensar romanticamente em uma “educação estética do homem” como formação da vida e realização sensível da humanidade, é uma idéia que assume aqui feições ainda mais relevantes.
Nessa mesma via de confronto entre vida e obra, O mestre de Petersburgo apresenta Dostoiévski não apenas como um personagem de sua história, mas como o homem de sua própria ficção em um romance construído sob a hipótese do encontro do escritor com o anarquista russo Serguei Nietcháiev. Protagonista de episódios e inquietações que evocam alguns de seus grandes livros, Dostoiévski atua nesse cenário da narrativa, ora factual ora romanesco, à maneira de um inquilino dos interiores da consciência. Tal recriação de referências e personagens da literatura no âmbito da prosa, a contar desde os últimos anos, tem acumulado inúmeros exemplos, como é o caso da releitura de Madame Bovary por Agustina Bessa-Luís em Vale Abraaão, do escriturário Bartleby por Enrique Vila-Matas, em Bartleby e companhia, de Mrs. Dalloway em As horas, por Michael Cunnigham, mesmo autor de Dias exemplares, livro inspirado na obra e na figura emblemática do poeta Walt Whitman.
No entanto, ainda que os motivos de registro literário e histórico possam surgir à primeira vista como linhas de força dos romances de Coetzee, sua obra ultrapassa qualquer circunscrição prévia no espaço e no tempo, neste ou naquele local do discurso. De todos os personagens, Michael K talvez seja o que melhor sintetize a matéria a partir da qual o autor constrói seu palco de realidades: um homem despojado da noção de justiça pela fome e pela errância, reduzido à elementaridade de um corpo que vive em silêncio, trabalhando a terra, e que se rende à passagem da natureza para nela desaparecer, à guisa de um bom selvagem.
A dimensão do mal absoluto e das encruzilhadas morais, o repertório da memória e sua ameaça de aniquilamento, o legado e a ruína de civilizações vêm à cena em circunstâncias cujo maior impacto se dá por uma isenção de juízo no tom quase impessoal de relato do autor. “Não há problemas do espírito. Só há uma pergunta: quando serei explodido?” — essa declaração de William Faulkner, escritor que Coetzee tem como “o mais radical inovador da prosa americana”, parece ecoar na voz dos protagonistas vitimados pela contingência em À espera dos bárbaros e Vida e época de Michael K.
Policiais, juízes, prisioneiros e sentinelas aparecem nos livros como sujeitos de uma alegoria do absurdo na qual o conceito do humano e o princípio de liberdade de escolha são postos em risco diante de um esvaziamento de sentido. É nessa proximidade entre impotência e resistência que a obra de Coetzee assume sua contemporaneidade e, ao mesmo tempo, sua universalidade no âmbito da literatura enquanto reflexão sobre o indivíduo à mercê do incompreensível.
As palavras de Elizabeth Costello, portanto, cabem aos próprios leitores: “(…) nas nossas leituras mais verdadeiras, quando estudantes, procurávamos (…) orientação para a perplexidade” — uma perplexidade que urge existir, tanto hoje como sempre, face aos horrores do totalitarismo, da intolerância individualista e da humilhação humana, antes de qualquer postulado retórico ou prescrição de juízo. A perplexidade de quem, como a personagem de Coetzee, “está cravado na vida”.