A noite ia alta quando o cavalo passou. Os cascos batiam cadenciados no massapê duro, um galope sem pressa. Nas casas ao longo da estrada, todos ouviam, mas ninguém se atrevia a chegar à porta, sequer entreabrir a janela. Era sempre assim. Não adiantava ir olhar. Não se via nada, só se ouvia e se ficava de cabelo em pé, o coração apertado, o corpo arrepiado. Não tinha noite certa para o cavalo passar, mas tinha que ser noite escura e a hora, adiantada, ao redor da meia-noite. No fim do arruado de casas havia uma porteira fechada, mas o cavalo nunca estancava. Passava direto, o tropel compassado, como se ela não existisse. A porteira não se abria, pois seu rangido seria ouvido desde o início do arruado. E, nessas ocasiões, ninguém ouvia o rangir da porteira. Só o galope cadenciado do cavalo, as patas batendo na terra dura, topóc-topóc-topóc.
Mas ouvia-se o pio cavo da coruja que morava no oco da cajazeira que servia de mourão à porteira; o grito estridente do espanta-boiada que cruzava a escuridão dos ares; o coaxar triste da rã no banhado ali perto; o lamento solitário do cachorro que uivava para uma lua inexistente. Não se ouvia a respiração das pessoas porque elas paravam de respirar, nem o zumbido das muriçocas porque elas paravam de voar, nem o farfalhar das folhas porque elas paravam de balançar.
Firmino foi acordado pelo tropel que se aproximava. Sua casa era a que ficava junto à porteira. Nunca se acostumou com aquilo, mas também nunca procurou averiguar. Continuava deitado no catre, junto a Teresa, que tinha um sono ferrado e nem se mexia. No quarto contíguo, os meninos ressonavam.
Naquela noite, impelido por uma curiosidade intensa, Firmino tomou coragem e pulou da cama. Quando tirou a tramela e entreabriu a janela, o galope passava em frente à casa. Lá fora, as trevas reinavam, e só se divisava a mancha clara da estrada. As nuvens encobriam as estrelas. A coruja parou de piar, a rã, de coaxar e o cachorro, de uivar. O tropel transpôs a porteira fechada e continuou caminho afora. Firmino não viu nada, nem cavalo nem cavaleiro. Nem mesmo um vulto branco de assombração, como se dizia das assombrações.
A coruja voltou a piar e o cachorro, a uivar, a rã coaxou e o espanta-boiada gritou. Firmino fechou a janela, passou a tramela e voltou para a cama. O coração aos pulos, o corpo arrepiado. Puxou o lençol até o pescoço e se achegou ao corpo de Teresa, cuidando de se acalmar. Mas não se acalmou, e seguiu pela noite de olhos abertos até que a claridade do amanhecer se infiltrou pelos vãos das telhas. Então, sossegou e adormeceu. A alvorada tem o dom de espantar os demônios da noite e acalmar a alma das pessoas.
Quando Teresa levantou, achou estranho o marido ainda estar dormindo, mas não o incomodou. Alguma razão haveria para aquilo. Acordou os filhos e foi para a cozinha acender a lenha do fogão para o café. Depois, saiu para o quartinho no quintal fazer suas necessidades.
Mais tarde, Firmino levantou, o corpo doído, a cabeça pesada de sono. A mulher já tinha saído e os meninos, ido para a roça. A família cultivava mandioca num trato de terra fornecida pelo dono da fazenda. Aliás, todo mundo ali no povoado tinha a sua roça. A casa de farinha ficava no início do arruado, onde as mulheres ralavam a mandioca e torravam a farinha. Um terço ia para o patrão. Os homens cuidavam da plantação.
Dinheiro por ali não circulava. A parte que lhes cabia da farinha torrada era levada toda semana para a feira da vila próxima e trocada por mantimentos de que precisavam. Quando não precisavam, guardavam a farinha em casa para quando houvesse uma precisão.
Além da mandioca e do aipim, cada família cultivava uma pequena horta ao longo da cerca de sua roça, para complementar a alimentação. Era um quiabo, um tempero verde, uma batata doce, um pé de pimenta. Erva cidreira era mato e dava no quintal, junto da bananeira.
Firmino tomou o café e comeu um pedaço de aipim cozido que Teresa havia deixado sobre o fogão; pegou a enxada e se dirigiu para a roça.
Na casa de farinha, a conversa das mulheres era uma só: o cavalo assombrado que passara naquela noite. Umas tinham ouvido o tropel. Outras, não. Teresa desconfiou que Firmino não tinha dormido direito por causa da assombração. Tia Hortênsia, do alto de sua sabedoria como respeitada benzedeira e a mais velha do lugar, tentava explicar o fenômeno. Sentada no chão, raspava com uma faca a casca de uma mandioca:
— Isso é coisa de arma penada, mia fia. Arguém qui morreu com o animá e inda num conseguiu cumprir sua pena e subir pro céu. Crendeuspade! Nosso Senhor qui tenha piedade desse pessoá. Tá precisano de reza, e muntcha! — e fez o sinal da cruz.
— E pro que ele passa por aqui, tia Hortênsa? — questionou uma das moças da roda da raspagem.
— Proquê, mia fia, ele deve ter morado por aqui. Sabe qui as armas sempre vorta pra onde gosta? A gente bota raiz onde nasce. Se vai imbora, a raiz parte, e a gente véve conforme a direção do vento. Mas, quando morre, a arma vorta pr’onde o corpo nasceu. Eu merma pari três fio, qui foram imbora e nunca mais vi. Quando morrerem, vai tudo vortá pra cá, como esse cavaleiro. Se ainda forem pobres, vortam a pé. Mas aí, num tô mais aqui pra vê.
Teresa entrou na conversa, amassando a mandioca já ralada e colocando a massa num saco de aniagem para ser prensada e extrair a goma:
— A sinhora, qui é mais véia, conheceu o finado cavaleiro?
— Hum, hum! Eu não, mia fia. Moro aqui desna minina e nunca soube de ninguém qui morreu junto com o animá.
— E se num tiver arma de home, só do animá?
— Bicho num tem arma! Bicho morreu, morreu. Os arubu come.
— E a mula-sem-cabeça, tia Hortênsa? — quis saber uma outra.
— Hum, hum! Isso é invenção dos pessoá. Se ela num tem cabeça, cuma é qui ela sabe pr’onde vai? Bicho num tem arma. Pra qui é qui Nosso Senhor ia botá arma em bicho? Hum!
— E cuma é qui a gente num vê nem a montaria nem o cavaleiro?
Tia Hortênsia parou a raspagem da mandioca e olhou para Teresa.
— Tanta coisa a gente num vê aqui, mia fia, num chega pra gente. Dinheiro mermo a gente só vê na mão dos outro. Dinheiro aqui é arma do outro mundo. Pra quê qui vosmecê qué vê arma do outro mundo? Rê, rê, rê.
E a conversa continuou até o fim da manhã, quando as mulheres foram cuidar da comida. No começo da tarde, voltariam para completar a tarefa do dia.
À noitinha, Firmino despachou os meninos para casa e foi procurar Melquíades, o administrador da fazenda, caboclo velho acostumado nas lides da cultura da mandioca desde pequeno. Seu pai tinha sido dono daquelas terras e, arruinado pelas dívidas, teve de vendê-las a um comerciante rico que andara comprando fazendas na região. Mas deixou para seu único filho o sítio onde ficava a sede, no canto da fazenda. Lá, Melquíades passou toda a sua vida, cuidado da mandioca e de umas poucas cabeças de gado, que dava para o gasto. Como o dono da fazenda morava na cidade, botou o caboclo como seu administrador.
Sentado no alpendre da casa, Melquíades esperava a hora da janta que dona Honorina preparava lá dentro. Pendurado na parede junto à porta, o fifó espalhava no ambiente uma fraca luminosidade, que dançava conforme a brisa batendo na chama, a fumaça preta sujando as telhas.
— Boa noite, seu Melquíades.
— Boa, Firmino. Vá se achegando.
Firmino tirou o chapéu e sentou no tamborete.
— O sinhô me ardisculpe vir lhe incomodá a essa hora…
— Algum problema? É doença, Firmino?
— Num sinhô, né doença não.
— E então?
— É aquele cavalo danado.
— Que cavalo, Firmino?
— Aquele bicho mal-assombrado.
— Passou de novo?
— Passou, sim sinhô. Onte de noite. E num deixô ninguém dormir. As coruja piou, os cachorro chorou, os sapo gemeu, os espanta-boiada gritou…. uma agonia, seu Melquíades. E a cancela num abriu! Quero sair daquela casa.
— Mas você é pessoa de confiança, Firmino. Botei você lá para cuidar da porteira da entrada da fazenda. E, ademais, para aonde você iria? Não tem mais casa aqui.
— Num sei, seu Melquíades. Mas que queria sair de lá, queria. Hoje mermo num dormi. Só fechei os óio quando clareou.
— Tu tá com medo, homem?
— Eu num tenho medo de nada, não sinhô!
Baixou a cabeça e acrescentou:
— Só de assombração…
— Ora, Firmino! Assombração não faz mal a ninguém. Vosmecê já viu assombração atacar alguma pessoa? Já soube de algum caso?
— Num soube não sinhô. A gente num vê ela mas ouve. O cavalo mermo passa, topóc-topóc-topóc. Quando a gente vai vê, num tem cavalo nenhum. Às vezes tenho vontade de amuntá nele e sabê pra onde ele vai
— Deixe o cavalo passar, não queira fugir dele. Nem queira montar nele. É só ilusão, não vai a lugar nenhum. Faça uma coisa, toda vez que o cavalo assombrado passar, abra a janela e grite para ele: “Que Deus lhe dê uma boa viagem!” Pode ter certeza que Ele vai saber conduzir o animal, ou quem está montado nele, a um lugar seguro. E nunca mais ele vai passar.
— Tava pensando em me mudá pra vila.
— Fazer lá o quê, Firmino? Aqui você tem sua casa, a roça. E Teresa e os meninos?
— Ainda num falei cum ela. Outro dia na feira tive umas conversa com seu Pedro Açougueiro. Ele disse qui, se eu quisesse, me ajudaria a botá uma bancada pra vendê carne cum ele na feira.
— Firmino, o cão vive ao pé de quem o alimenta. A gente vive ao pé da terra que nos dá o alimento. Você trabalha a terra e tira dela sua comida. Você vende o que planta. Agora está querendo ir vender as coisas dos outros? Por causa de uma assombração? Tire essa idéia da cabeça, você não é mais menino.
Dona Honorina gritou lá de dentro que a janta estava servida. Firmino agradeceu e declinou o convite de Melquíades para lhe acompanhar à mesa, deu boa-noite, pegou o chapéu e mergulhou na escuridão da noite, seguindo o pálido riscado do caminho de casa.
Mais tarde, os meninos já dormindo, Firmino contou para a mulher a sua conversa com o administrador. Teresa sentiu o coração apertado. Nunca lhe passara na idéia a possibilidade de sair dali para morar em outro lugar, deixar a casa, a roça, as companheiras da casa de farinha.
— Seu Melquíades tá certo, Firmino. A gente num pode sair daqui, onde a gente nasceu e véve. A gente num pode ser afugentado por um cavalo assombrado. Quem sabe se a gente rezá pra ele, ou pra arma do cavaleiro, ele num segue caminho e nunca mais vorta?
— Se ele passar hoje de novo, vou lhe acordar pra você jogá uma reza nele.
E, elevando a voz, falou para os lados da janela:
— Que Deus lhe dê uma boa viagem!
Virou para o outro lado, procurando o sono. Teresa ainda rezou um pouco e depois acompanhou o marido.
O cavalo mal-assombrado não passou naquela noite e em nenhuma outra noite. Provavelmente, havia cumprido o seu ciclo de penas e finalmente foi descansar para sempre nas grandes capineiras celestes que Deus guardava para os cavalos mal-assombrados e as mulas-sem-cabeça que viviam penando na Terra, metendo medo e tirando o sossego e o sono dos homens.