Metamorfose
Olhar bem dentro do azul
e ver a morte da borboleta
libertar o amarelo.
Acordar verde,
talo de capim do derradeiro
sonho da lagarta.
…
Diálogo
O chocalho, no pescoço
da vaca, anuncia:
— Eu estou aqui!
O relógio, na parede
da cozinha, adverte:
— Não escaparás!
…
Adeus
Vai, meu passarim, segue teu rumo.
Vai e freqüenta as esferas que te esperam.
Uma noite teu sonho atravessou minha seara
e foi uma revoada de alegria.
Agora chegou o momento de tua energia
buscar outras vibrações, outros horizontes.
Estende tuas asas pelos azuis que te aguardam.
…
Dilúvio
O olho daquele pingo de chuva que vem caindo
revela a minha convicção: acredito no dilúvio.
Não tem mais jeito, para toda árvore que olho
só vejo tábuas para construir a arca da salvação.
Sei que todos riem de mim, fazem galhofa
e acham mesmo que estou com um chocalho no juízo.
Mas é que tive um sonho: um ser vestido de água
inundava o meu dia a minha noite a minha vida.
…
Serenata dos pardais
Enquanto os motores ruminam no asfalto,
enquanto os povos vivem em guerra,
enquanto meu filho dorme o sono dos justos,
sinto saudades das existências pretéritas.
Enquanto meus irmãos dissecam cadáveres,
eu, que louvo a natureza, disseco árvores
e me torno, cada vez mais, um cadáver,
e continuo escrevendo meu próprio epitáfio.
Só os pardais dizem bom dia para o caos,
só os pardais cantam serenatas para os surdos
e embalam a dança aérea dos urubus,
enquanto brinco de deus e cheiro a carniça.
…
A sagração do mito
Para Foed Castro Chamma
Eu preciso de um espelho:
olhar no fundo dos olhos
e ver bem dentro de mim:
quero beijar minha sombra,
ir no cerne dos desejos
e perceber cada célula
com o frenesi que sinto
na agulha do peitoral.
Sou a criação de Deus:
barro que sonha odisséias.
Em minha íris o Cosmo:
os mitos vestem meu nome.
Sou a pedra, o barro, a lama.
Estrelas, soprem em mim
e assim estenderei meus
nomes nos passos do vento,
e em todo lugar o sonho
do Ser estará presente.
Sou o símbolo de tudo,
um sonho sem fim, o mito.
Estou em frente ao espelho,
e em minha íris o Cosmo:
todos os meus estilhaços,
todos os eus consagrados.