Poemas de José Inácio Vieira de Melo

Leia os poemas "Metamorfose", "Diálogo", "Adeus", "Dilúvio", "Serenata dos pardais" e "A sagração do mito"
José Inácio Vieira de Melo, autor “A infância do centauro”
01/03/2007

Metamorfose

Olhar bem dentro do azul
e ver a morte da borboleta
libertar o amarelo.

Acordar verde,
talo de capim do derradeiro
sonho da lagarta.

Diálogo

O chocalho, no pescoço
da vaca, anuncia:
— Eu estou aqui!

O relógio, na parede
da cozinha, adverte:
— Não escaparás!

Adeus

Vai, meu passarim, segue teu rumo.
Vai e freqüenta as esferas que te esperam.
Uma noite teu sonho atravessou minha seara
e foi uma revoada de alegria.
Agora chegou o momento de tua energia
buscar outras vibrações, outros horizontes.
Estende tuas asas pelos azuis que te aguardam.

Dilúvio

O olho daquele pingo de chuva que vem caindo
revela a minha convicção: acredito no dilúvio.

Não tem mais jeito, para toda árvore que olho
só vejo tábuas para construir a arca da salvação.

Sei que todos riem de mim, fazem galhofa
e acham mesmo que estou com um chocalho no juízo.

Mas é que tive um sonho: um ser vestido de água
inundava o meu dia a minha noite a minha vida.

Serenata dos pardais

Enquanto os motores ruminam no asfalto,
enquanto os povos vivem em guerra,
enquanto meu filho dorme o sono dos justos,
sinto saudades das existências pretéritas.

Enquanto meus irmãos dissecam cadáveres,
eu, que louvo a natureza, disseco árvores
e me torno, cada vez mais, um cadáver,
e continuo escrevendo meu próprio epitáfio.

Só os pardais dizem bom dia para o caos,
só os pardais cantam serenatas para os surdos
e embalam a dança aérea dos urubus,
enquanto brinco de deus e cheiro a carniça.

A sagração do mito
Para Foed Castro Chamma

Eu preciso de um espelho:
olhar no fundo dos olhos
e ver bem dentro de mim:
quero beijar minha sombra,

ir no cerne dos desejos
e perceber cada célula
com o frenesi que sinto
na agulha do peitoral.

Sou a criação de Deus:
barro que sonha odisséias.
Em minha íris o Cosmo:
os mitos vestem meu nome.

Sou a pedra, o barro, a lama.
Estrelas, soprem em mim
e assim estenderei meus
nomes nos passos do vento,

e em todo lugar o sonho
do Ser estará presente.
Sou o símbolo de tudo,
um sonho sem fim, o mito.

Estou em frente ao espelho,
e em minha íris o Cosmo:
todos os meus estilhaços,
todos os eus consagrados.

José Inácio Vieira de Melo

Nasceu em 1968. Alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor cultural. Publicou oito livros e duas antologias, dentre eles O galope de Ulisses (2014), Sete (2015) e Entre a estrada e a estrela (2017). Os poemas aqui publicados fazem parte do livro inédito Garatujas selvagens, que será lançado em breve.

Rascunho