Zelda (II)

Sim, era um poeta altamente inspirado falando daquilo que ele apenas imaginava nas alturas, na confusão do céu, no profundo coração
O túmulo dos fitzgerald, no cemiterio da Igreja Católica de Santa Maria, Rockville, Maryland
01/03/2007

Gatsby acreditou na luz verde, no orgiástico futuro
que, ano após ano, se afastava de nós.
Esse futuro nos iludira, mas não importava: amanhã
correremos mais depressa, estenderemos mais os braços,
e, uma bela manhã…
E assim prosseguiremos, botes contra a corrente,
impelidos incessantemente para o passado.

F. Scott Fitzgerald (The Great Gatsby)

Sim, era um poeta altamente inspirado falando daquilo que ele apenas imaginava nas alturas, na confusão do céu, no profundo coração (do som “cortando as nuvens”, num poema da província do outro lado do mundo, no tempo futuro) que os melhores dentre os rapazes, os mais tristes ou mais generosos, ouviam no quarto de janelas abertas para a aventura que talvez terminasse num ataúde com a tal bandeira levada para a mãe que, de manhã cedo, só encontrara a cama feita como ela ensinara — e um silêncio ensurdecedor entre os diplomas do ginásio na parede.

Rapazes! As moças não podiam ir, e nem se imaginavam pegando carona e tudo o mais (porque ninguém havia de querer os meninos pelo caminho da morte antecipada, em busca da farda de outro país e de uma causa de certa maneira emprestada, nas mentes jovens que, daquela maneira confusa, sentiam que “deviam fazer alguma coisa”).

Rapazes. Moças enluaradas, lendo uma carta. A morte deixara de ser algo distante, que só atingia a avó dos vizinhos…

Entretanto, eu estava falando de você. De uma moça — anos depois — capaz de pedir, por carta: “Você precisa vir me ver e me contar como eu era”.

Ou, em letras grandes:

MANDE O
FONÓGRAFO
POR FAVOR

E ele mandou. Mandou o fonógrafo e mandou as respostas pontuais para a clínica, no estilo que você acusou, com a franqueza desconcertante dos loucos (a palavra que nunca se usava naquele lugar elegante, onde nenhum sintoma dos ricos seria tomado como tolice): “Suas cartas são meras frases descomprometidas, que você poderia mandar para Scott, mas que não me ajudam a destrinchar a infinita mixórdia psicológica em que me espojo o tempo inteiro”.

Qual louca seria capaz de escrever sobre a loucura, depois que ele a visitou (para apagar um pouco a impressão das primeiras cartas)?

Você escreveu, moça dos olhos do fundo do mar pintado num quarto: “Eu tinha esquecido como é estar viva, com a inteligência funcionando”…

Que frase terrível. O lamento de uma consciência prestes a se perder, longamente, na luz de outras tardes, menos amenas, ou, quem sabe, na luz da noite especial tão amada por você:

“Eu adoro estas noites de veludo. Nunca fui capaz de decidir se a noite é uma inimiga acerba ou uma grande protetora” — mesmo na clássica meia-luz em que noite e dia se fundem, longe da “plena fanfarra religiosa do meio-dia” do cemitério de Valéry (que ele temia um pouco).

Você não temia nada nem ninguém, moça dos olhos do fundo de veludo do quarto da noite que emerge para as praias inventadas, recordadas, lamentadas, perdidas na ilha de separação que levou justamente o seu braço para longe do sol, e a sua barriga achatada para as manhãs distantes da areia colada na pele — pela água salgada, pelas ondas refluídas e impetuosas para os guizos de espuma e salpicos no auge da manhã de conversas dentro do mar, antes do novo banho de doce água dentro da casa de Antibes, tudo embalado pela alegria das crianças de farra nas proximidades do mar.

Juventude era aquilo: um pouco de eternidade antes da morte.

Dançando sozinha
Seu modo arbitrário de selecionar o passado. No quarto de janelas altas acima das cabeças — como você gostava —, os verdes olhos cegos para o que todo mundo via, por janelas baixas, estreitando olhos apagados, quase sem cor diante da fustigação irisada das árvores. O que você podia ver (e recordar que vira) era tão diferente!

Era… Bem, era diferente. Não há como dizer de outro jeito. E ninguém entendia isso, como na vez em que discutiram sobre moral “acompanhando um muro antigo, sob o frescor dos lilases”, ouvindo alguém assobiar Cuddle up a little closer (que George costumava tocar, quando ficava bêbado e pedia para as moças mostrarem as calcinhas brancas; só as brancas, as peças íntimas, não as moças — porque era impossível pensar em negras entre vocês, naquela época, exceto quando os rapazes estavam sozinhos em casa e o calor apertava e eles se tocavam e pediam um copo de água às criadas de cor, e depois queriam que elas caíssem de boca sobre o volume aumentado dos seus sexos).

Num dia de setembro de 1930, a mais longa das suas cartas recordava mais do que as calcinhas, quase em código:

“Houve minha calcinha branca que deixou aparvalhada as colinas de Connecticut e nadamos num bebedouro para pássaros que tinha uma senhora de sandálias. A praia e dezenas de homens, corridas malucas pela Post e viagens a Nova York. À noite, nunca conseguíamos arrumar um quarto num hotel, éramos tão jovens… Houve o apartamento de George, seus coquetéis de absinto e os cabelos dourados de Ruth Findley no pente dele.”

Enquanto ela escrevia, desceu uma lágrima pelo seu queixo redondo, para ir borrar uma palavra (“jovens”), porém o importante não são as palavras borradas: o essencial é, desde já, deixar claro que você não estava querendo se referir, propriamente, aos assuntos de fofocas, à pândega sexual e coisas do gênero, pois há aquela frase cortante, escrita pela mão que tentava manter reta a linha de caracteres redondos, infantis e (ainda) confiantes:

“Não gostávamos de mulheres e éramos felizes” (Scott, você, os amigos dele e alguns poucos seus, que se tornaram também amigos dele — sem invejá-lo demasiadamente).

O verão nos olhos
Vocês seguiram assim, com a estação tatuada nos olhos, rumo ao sul, atravessando os “pântanos assombrados da Virgínia, os morros de argila vermelha da Geórgia, os doces leitos dos riachos do Alabama”, animados por uísque de milho ao luar — na “asa de um avião” (?).

Meu deus, recordar pode doer como queimadura com a chaleira fervente de água quase ressecada. Ninguém deveria se espantar com cenas arrancadas do fundo da memória recente que, aos trinta anos, sufocava num quarto da Clínica Prangins, todas vindo como trutas empurradas pelas correntes do jovem Hemingway mentindo criativamente sobre pescarias e tudo em geral (para inventar o resto com grande talento no se imaginar nas melhores situações possíveis, acima da água e debaixo de bombardeios que nunca mancharam de poeira o rosto redondo daquele rapaz perseguindo a Glória como Joe Kennedy perseguiu a Swanson, até comê-la de se fartar)…

Mas chega de falar mal de um homem que resolveu matar-se com um tiro de espingarda de caça, um pouco depois do auge da glória — com “g” minúsculo.

Prosseguindo: Zelda tinha um senso de delicadeza que só poderia produzir loucura, em menos ou mais tempo:

“Em Paris, antes de eu me dar conta de que estava doente, havia um novo significado em tudo: estações e ruas, fachadas de prédios — as cores eram infinitas, eram parte do ar, não confinadas pelas linhas que as cingiam, e as linhas estavam livres das massas que seguravam. Havia uma música que tamborilava atrás da testa e uma outra música que me caía do estômago do alto de uma parábola, e tinha também um pouco de Schumann, sereno e terno, e a tristeza das mazurcas de Chopin.”

E Scott não ajudava — uma vez que não pode se duvidar desta seqüência anotada na mesma carta, com isenção total (e atonal), pela mão paradoxalmente segura de Zelda “doente” e internada na clínica suíça de árvores serenas demais para os seus nervos: “Mudamos para a rua 59. Brigamos, você arrebentou a porta do banheiro e machucou meu olho. Íamos tanto ao teatro que você deduziu as entradas do imposto de renda. Bebíamos o tempo todo e no fim fomos para a França porque havia sempre gente demais em casa”.

Havia mesmo. Vocês fingiam gostar daquilo, embora fosse o pior caminho para os dois, perdidos entre vozes e copos, carros arrancando e o som macio da falsa intimidade:

“Na rue Vaugirard, você continuava a viver bêbado o tempo inteiro. Não trabalhava e voltava à noite carregado por motoristas de táxi, quando voltava. Dizia que a culpa era minha, por dançar com a Egorova. Mas eu não conseguia andar na rua, a não ser que tivesse ido à aula. Você não me queria. Entrou em meu quarto uma única vez, durante o verão todo, mas eu não me importava porque ia à praia de manhã, tinha minhas aulas de tarde e, à noite, eu caminhava. Depois, fomos à África e quando voltamos comecei a perceber, porque sentia o que estava acontecendo pela reação dos outros. No fim, eu acabei dançando sozinha.”

Talvez agora deve se fazer um longo silêncio sobre a infelicidade de vocês, a solidão dos dois, o talento de Scott desperdiçado depois de 1925 — com a década perdida, o tempo e o esforço para produzir o romance falhado (a narrativa meio palavrosa, nervosa demais e partindo em pelo menos três direções, que é Tender is the Night).

Com infinita delicadeza — não desprovida da sinceridade desconcertante dos loucos — dos “emocionalmente instáveis”, suas anotações nas cartas estão começando a dar a perceber (meu deus, quanto cuidado!) inocência que se insinua entre palavras francas, sexo destampado e litros e mais litros de garrafas, idem.

Ah, Zelda. Recorde ao mundo que você era capaz de descobrir a América:

“Não faz muito comecei a perceber que sexo e sentimento têm bem pouco a ver um com o outro.” E, tardiamente, a sabedoria: “Não importa o que aconteça, no fundo do coração ainda sei que este é um jogo sujo, perverso; que o amor é amargo e é tudo que há, e que o resto é para os mendigos emocionais deste mundo e equivalem mais ou menos àquela gente que se excita com postais indecentes”.

Era tarde. Sabedoria não ajuda, quando chega depois de muita mágoa. Sabedoria… Bem, ninguém se importa com sabedoria — quando não tem mais nada a fazer com ela, senão anotá-la (em qualquer quantidade e seja sobre o que for).

Sabedoria, em suma, já não podia salvá-la nem ajudar a salvar Scott daquela “deslocação” que se decretara para vocês num mundo mudado demais, sem que houvessem percebido quando se dera exatamente a mudança, em algum floco de nuvem de desgraças, até o final — quando ele tombou no meio da sala da rainha das fofocas de Hollywood, em 1940, oito anos antes de você queimar num quarto sem luxo nem suavidades, longe da praia e da noite, muito depois de terem partido todos que haviam embarcado em navios, trens e aviões para tão longe da dourada tarde de juventude.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho