Edward Pimenta criou um não-herói. Anti-herói? Ou seria um herói? Horace Catskill, o protagonista de O homem que não gostava de beijos, não tem moral. Nenhuma culpa. Não possui endereço. Não deve ter RG. Tampouco CPF. Atravessa alguns séculos. Pode ser rotulado de predador. Seu alvo? Mulheres. Nada de carinho, nem afetos. Muito menos beijos. Quer apenas sexo. E, saciado momentaneamente, segue em busca de outras presas. O que parece?
Edward Pimenta concedeu entrevista exclusiva ao Rascunho. Falou a respeito deste livro recém-publicado. No bate-papo, destrinchou características de seu personagem e também de seu projeto literário. Mirou ainda a cena literária deste País do futuro.
Edward Pimenta, além de escritor, é jornalista. Atua em uma das maiores empresas do ramo. A Abril. Ele fez observações sobre a profissão, incluindo um olhar nos suplementos culturais, segundos cadernos & outras bossas do gênero.
• Horace Catskill é o protagonista de O homem que não gostava de beijos. HC se transforma em diversas possibilidades dentro de sua existência, trajetória. “Foi brasileiro durante a Golden Age do cinema americano.” “Horace Catskill foi o maior protagonista da miscigeno-sifilização brasileira.” “Por um breve período, Horace Catskill comeu um ícone do feminismo.” “HC transformou-se numa mosca. Uma drosófila. E instalou-se nas reentrâncias da prótese nasal de silicone de Michael Jackson.” HC foi (é) muitos. Quem é HC?
Não são muitos personagens. É apenas um: Horace Catskill, um homem que vive situações-limite e os últimos tabus. Nos dizeres de Fábio de Souza Andrade, “Quando se reinventa, HC troca de pele, ressurgindo, aos saltos aleatórios, faceiro e safado, como sintoma e retrato de sua(s) época(s). HC não faz caso de tempo ou espaço”. Pode conferir. Seu caráter é tão impreciso quanto a aparência física, as preferências sexuais ou etílicas. É também um homem ancestral, em certo sentido. Por isso ele é atemporal e multifacetado. HC não acha que a humanidade ocupa um lugar de destaque no universo, que pode controlar seu destino e que algum dia será capaz de construir um mundo florido. HC é como o filósofo John Gray, que acha que a humanidade será deliberadamente descartada do planeta e que a contagem regressiva para deixarmos de existir já começou faz tempo.
• HC não gostava de beijos? Por que HC é, era, o homem que não gostava de beijos?
Num dos contos, não sei dizer exatamente qual, há a seguinte frase: “HC, o homem que não gosta de beijos”. E em muitas outras passagens tem esse tipo de ironia: HC, o homem que não teve infância, o homem que detestava bacalhau, etc. Se eu pensar bem, “o homem que não gostava de beijos” define um caráter. Um homem que não gosta de beijos é incapaz de sentir e/ou transmitir afeto a quem quer que seja. Essa é a chave. Horace Catskill não está aí para brincadeira, não. Ele realmente não acredita no projeto humano e essa incredulidade se reflete na maneira como se relaciona com os outros. Pensando ainda melhor, ele é capaz de fazer muitas peripécias sexuais, mas não beijar. A proximidade do beijo lhe é impossível. Já o sexo, sempre furtivo e impessoal, parece plenamente realizável.
• Se Horace Catskill não está aí para brincadeira, não, ele, HC, pode ser lido como um vampiro? Ou um predador? O que move HC?
HC não faz diferença entre pensar e fazer. Ele é o homem que está ganhando por duas cabeças a corrida da seleção natural. É para lá que vamos. É para isso que usaremos toda a nossa inteligência. HC apenas faz o que está ao seu alcance para satisfazer seus instintos. Não é o que todos fazemos, sempre tentando disfarçar, todos os dias? Não há dúvida de que ele seja um espécime rapace mas, como diria o baiano Rafael Rodrigues, “tem classe”. Por questões estéticas, ninguém verá Horace Catskill numa reles briga de facas no porto de Santos. A propósito, não era para causar nenhum estranhamento o fato de que o universo de HC seja o nosso universo conhecido. Ele pode estar comendo um minestrone em Londres no século 18, conversando com Charles Dickens no sul da Inglaterra no século 19 ou passeando dentro do nariz do Michael Jackson no século 21. Não é surpreendentemente bom que seja assim?
• HC parece ser um personagem único, algo excêntrico até na história da literatura brasileira. É isso? Quem seriam alguns outros personagens, da literatura brasileira, e mesmo da universal, que estabeleceriam pontos de contato com HC? Qual a linhagem de HC?
Se há alguma centelha de originalidade neste livro, eu diria que não está na estratégia de reiterar o personagem ao longo dos contos, mas naquilo que ele mostra sem nenhum prurido: o caráter de um homem que vive situações-limite e que não acredita no projeto humano. Muitos autores, de um jeito ou de outro, retomam personagens em obras e épocas diferentes, como é o caso do Coelho, de John Updike, que está em pelo menos quatro livros. Basta lembrar dos personagens de Paul Auster. Em outros casos, o personagem até pode ser outro, mas sua essência pode dialogar diretamente com outros personagens criados pelo autor ou mesmo com grandes personagens da tradição literária. De qualquer forma, concordo plenamente com a análise feita pelo professor Gentil de Faria, da Unesp de Rio Preto, segundo a qual o texto de O homem que não gostava de beijos é construído sob a forma de uma rapsódia pós-moderna, para onde convergem elementos coalescentes de múltiplas procedências. HC, segundo Gentil, envolve o leitor num mundo rabelaisiano e macunaímico, no qual o protagonista assume identidades díspares. Faz muito sentido porque Horace Catskill nasceu quando percebi a lógica do utilitarismo e suas nuanças mais distintas. Quando percebi que Macunaíma será sempre uma espécie de avatar brasileiro. Quando descobri o que é a mesquinhez. Quando descobri que, enfim, não há muito mais o que fazer.
• Por que você escolheu um nome inglês para o personagem?
Eu não acho que, para escrever literatura, você tenha que botar grifo em toda e qualquer palavra que não seja da língua portuguesa. Purismo bobo. Se eu fosse suficientemente fluente, escreveria o conto Slices of life em inglês. Não tenho a menor preocupação. Certas palavras e expressões de outros idiomas simplesmente funcionam melhor do que seus correlatos em português, dependendo do contexto, é claro. Por isso Horace Catskill. Aliás Horace Ambrose Catskill. Um cara que até pode ser brasileiro, eventualmente, mas não é.
• Quais são suas influências e quais autores nacionais e estrangeiros você tem lido?
Acho que as influências estão todas dentro de um caldeirão. O caldo é heterogêneo. Li mais ou menos o que todo mundo leu. Minhas deformações mais flagrantes são Henry Miller, Edward Bunker, William Burroughs e Bukowski. Mas aquilo que acho que li bem e bastante foi basicamente Kafka, Borges, Nabokov, Conrad e os americanos Philip Roth, Norman Mailer, John Updike, Gore Vidal e Saul Bellow. Atualmente, tenho relido Paul Auster, que é sempre bom. Tenho lido Coetzee, Kenzaburo Oe, Hanif Kureish, Julian Barnes. Entre os brasileiros tenho vivo interesse por Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Michel Laub, Mario Sabino, Cristovão Tezza, Rodrigo Lacerda e Daniel Galera. A boa literatura não serve para nada. Ela não tem que ser útil. Mas é possível que um leitor atento possa começar a juntar melhor as peças do quebra-cabeça da vida. A literatura faz com que você conheça gente que não existe na vida real mas que, talvez por isso, seja o tipo mais interessante de gente.
• Seu livro vem classificado como romance, mas cada capítulo pode, também, ser lido como um conto, um conto fechado. Isso diz respeito à estratégia de mostrar em cada capítulo (conto?) uma das facetas de HC? É isso? Ou não? Por quê?
É um livro de contos, sem dúvida. São contos clássicos, diria. É que, colocados todos juntos, tendo o mesmo personagem principal, passam a ter outros significados mais ou menos interessantes. Devo confessar que não pensei numa estratégia; fui me interessando por Horace Catskill e escrevendo histórias sobre ele. Todos os contos são muito curtos e isso, sim, é proposital. Não creio que haja muito saco atualmente para ler textos longos. Uma narrativa curta que mantenha a tensão e a atenção do começo ao fim é irresistível. E, ao fim, depois do deleite que vem com a conclusão da historinha, você fatalmente pula para a outra. A ordem das histórias também é importante. É uma questão de timing. Acho importante tentar entender os gêneros literários. Tento entender o conto que, na minha opinião, não é mais fácil nem menos importante do que o romance. Sou um apologista do conto. Nele está o futuro da literatura. Este O homem que não gostava de beijos é seguramente um livro de contos e cada história tem todos os elementos do gênero conforme descrito pelos formalistas russos, pelos melhores argentinos, enfim.
• Você estudou literatura?
Não sou especialista em literatura, longe disso. Cursei o programa de mestrado em Teoria Literária na Unesp, mas não cheguei a defender meu trabalho de Literatura Comparada. Também passei pela graduação em Letras, na mesma Unesp, mas não terminei o curso. Nunca fui estudioso. Tenho muitos amigos acadêmicos, eles são especialistas.
• Sua linguagem não se parece com nada que circula por aí. Apesar do iceberg, do know-how, de sinais sutis, não soa como isso nem aquilo. Acredita que encontrou a sua embocadura literária, a sua própria dicção?
Nem pensar. Estou absolutamente ciente de todas as minhas limitações. A primeira delas é escrever em português. O que é o português, não é mesmo? Tiraram-no agora do currículo de Cambridge. Invejo fervorosamente quem escreve bons diálogos, quem escreve metodicamente, quem escreve com clareza. Tenho muito a aprender. Hoje sou apenas candidato a receber a pecha de escritor cult, o que não deixa de ser um charme.
• Fale um pouco do seu primeiro livro.
Meu livro anterior, Duas histórias, foi publicado em 1995, num impulso bastante juvenil de reunir os primeiros escritos. Não teve distribuição, a tiragem foi mínima e, por isso, ninguém leu. Mesmo assim não o renego nem me arrependo de tê-lo publicado, embora seja bastante irregular e irrefletido. Não tem nada muito a ver com O homem que não gostava de beijos. Foi escrito sob o impacto da leitura de A náusea, romance de Sartre que, na época, me acachapou.
• O que te impulsionou a criar HC? Você escreve a partir de impulso? Escreveria ficção sob encomenda? Ou atende apenas demandas interiores?
Não tive de abrir mão de nada ao escrever O homem que não gostava de beijos. Foi muito legal. Mas a questão da encomenda depende muito do projeto. Você pode receber belas encomendas e aí vale a pena. É uma questão de afinidade. Uma outra coisa é escrever com prazos bem definidos. Isso é muito bom. Tanto que o processo todo deste livro demorou dois anos: escrevi metade em um ano e meio, sem nenhum compromisso. A outra metade saiu em menos de seis meses, quando já sabia que seria publicado.
• O que te impulsionou a escrever ficção?
Um dia meu pai chegou com um exemplar de A metamorfose, de Kafka, uma edição da Brasiliense. Eu tinha 13 anos. Lia, e pouco entendia, o Paulo Francis na Folha de S. Paulo. Todas as indicações de leitura, de filmes, as referências culturais vinham daquelas duas páginas semanais, a coluna Diário da Corte. São as lembranças mais claras do despertar para as letras.
• Acredita em oficinas literárias?
Nunca estive numa oficina literária. Nem como professor, nem como aluno. Acredito que a prática é muito importante para o desenvolvimento das habilidades de um escritor.
• O que acha da literatura brasileira hoje?
Vivemos um bom momento. Temos escritores maduros ainda produtivos e muita gente jovem publicando. Essa mistura é boa. O último livro do Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo [leia resenha na página 6], é muito bom. Há uma geração muito promissora de poetas, gente como Marcos Siscar e Angelica Freitas.
• O que acha da interferência do escrever na mídia e escrever ficção? O que um lance ajuda o outro, e o que atrapalha, se é que atrapalha?
Há quem diga que jornalistas acabam contaminando sua literatura com um estilo menor, um grau abaixo. Pode ser. Mas só vão notar isso num Hemingway, prolífico, que chutava bem com as duas pernas. Não é o meu caso, obviamente. Não sou desse tipo de jornalista que faz investigação, embora já tenha feito. Gosto de escrever sobre coisas pelas quais me interesso. Gosto de editar. Enfim, jornalismo é um meio de vida interessantíssimo, mas nada comparável ao prazer de escrever literatura. Não sei se as carreiras se complementam, mas certamente coexistem em harmonia.
• Fale sobre a sua trajetória profissional?
Passei minha infância no interior de São Paulo, entre Monte Alto, Rio Preto e Mirassol, esta última minha cidade natal. Voltei a Rio Preto, graduei-me em jornalismo e direito e freqüentei os bancos da Unesp tanto na graduação quanto na pós-graduação em Letras, sem nada concluir, mas aprendi muito com alguns professores queridos. Tenho bons amigos, trabalhei com muitos jornalistas da velha e da jovem guarda em Rio Preto. Fui professor de jornalismo e publicidade por três anos e fui dono de um jornal semanal em Mirassol por cinco anos. Foi muito divertido. Há quase três anos, moro em São Paulo com minha mulher, Laura, e minha filha, Cecília, de 5 anos. Vim para cá em agosto de 2004 para trabalhar como editor de Treinamento e Desenvolvimento Editorial da Abril. Em resumo, desenvolvo treinamento para os 700 e poucos jornalistas da casa. O processo começa no Curso Abril de Jornalismo, quando os talentos recém-formados são selecionados no mercado, depois temos diversos programas internos para aprimoramento dos profissionais, cada vez mais investimos em capacitação em web e vídeo digital. São jornalistas, designers e fotógrafos em diferentes níveis de carreira. Sou responsável pelo Portal Abril do Conhecimento, braço eletrônico da minha área que armazena e disponibiliza treinamento on-line para os funcionários, e pelo site do Curso Abril de Jornalismo, que se transformou num portal de conteúdos para jovens jornalistas. Um dos nossos programas internos, o Curso Livre de Humanidades, virou programa de televisão na TV Cultura. Colaboro com as revistas Bravo!, VIP, Viagem e Turismo e Superinteressante, entre outras.
• O que acha do jornalismo brasileiro atual?
Acho bom. Não devemos nada ao jornalismo praticado nos EUA e Europa. Temos boas coberturas. A imprensa brasileira séria tem desempenhado um papel muito importante para a manutenção da democracia, trazendo à tona, com riqueza de detalhes, os esquemas de corrupção e as nossas eternas mazelas.
• O que acha da mídia cultural, jornalismo literário, crítica, essas coisas?
Se você der uma rápida olhada para traz, verá que nos últimos dez anos somaram-se ao cenário do jornalismo cultural diversas publicações, com características muito próprias. Neste mesmo período, a internet possibilitou que leitores, críticos e autores se organizassem em sites e blogs em torno da literatura. Portanto, vejo que caminhamos bastante bem.
• Qual a sua rotina?
Sou desorganizado para escrever. Anoto idéias. Escrevo de madrugada. Só consigo me organizar melhor quando tenho prazos.
• Horace Catskill pode se tornar um personagem recorrente para os próximos projetos literários? Aliás, você já pensa sobre esses próximos passos depois de O homem que não gostava de beijos?
Pode. Aprendi isso com Paul Auster. HC poderá atacar de novo. Devo lançar o próximo livro em 2008 e creio que será novamente de contos. Quero insistir na idéia de que o conto, como gênero literário, não é menos importante do que o romance. Quero aprender mais à medida que for produzindo novas histórias.