Henrique Rodrigues

Leitores, grandes leitores, são homens atordoados pelo que lêem
Henrique Rodrigues, autor de “A musa diluída”
01/04/2007

Meu caro Henrique

Não é fácil ler um escritor jovem. É bem mais simples, na verdade, ler um “grande escritor”. Quando lemos Pessoa, ou Drummond, ou Rimbaud, temos à disposição uma longa série de interpretações, de estudos críticos, de biografias, de comentários alheios; nunca se está realmente sozinho. Mas em que me amparar, de que recursos me valer, quando leio pela primeira vez um poeta de trinta anos como você? Um jovem autor que, enfim, faz sua estréia em uma grande editora?

Sinto-me, não nego, bem distante dos leitores profissionais, daqueles que lêem, sempre, “em nome” de alguma teoria, de algum saber consagrado, ou de alguns princípios. Creio, ao contrário, que o melhor leitor é aquele que, quando lê, esquece do que sabe para se entregar, sem reservas, ao livro que tem nas mãos. A leitura metódica, austera, professoral, que realiza medições rigorosas e afere resultados, não me interessa, nunca me interessou. Procuro conservar um pouco do menino que, aos dez anos de idade, abriu pela vez o Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, e levou um grande susto. O menino que, terminada a leitura, nunca mais viu o mundo com os mesmos olhos.

Luto, sempre — numa dura luta interior —, para descartar as interpretações consagradas, os procedimentos recomendáveis, os cânones. Aferro-me a minha liberdade extrema de leitor, ainda que isso me leve a avançar às cegas, e me faça, com freqüência, tropeçar. Prefiro simplesmente me expor ao impacto do livro que escolhi ler. Creio, Henrique, que a leitura é uma experiência secreta, na qual o leitor está sempre sozinho. Leitura sem liberdade interior não é leitura. Pode ser adestramento intelectual, transmissão disciplinada, educação literária, exercício de bons modos — leitura, no sentido extremo da palavra, não é.

Mas, é claro, minha solidão de leitor se agrava quando leio um escritor pela primeira vez. E foi assim, na mais absoluta solidão e sentindo uma inquietação difusa, mal-estar de quem não sabe bem onde pisa, Henrique, que li seu A musa diluída. Apresso-me a defender, aqui, minha posição de aprendiz. Pensa-se, em geral, que o crítico experiente (mas eu seria mesmo tal coisa?) tem, sempre, muitas coisas a dizer, conselhos a transmitir, conclusões a reter, lições a dar. O crítico seria o mestre, que clareia e orienta; o jovem poeta, o discípulo, que sorve um pouco de sua luz, e com ela se fortalece. Esta é uma idéia descabida, que inverte por completo o que é uma leitura e, o que considero mais grave, deprecia a literatura, reduzindo-a à noção de um bom desempenho. Todo leitor é sempre um aprendiz. É o leitor quem se expõe ao abalo da escrita, é ele quem se deixa convulsionar pelas palavras, é ele quem “sofre” do que lê.

E é essa a posição, de quem “sofre” de literatura, que desejo conservar. E foi a partir dela, e não por uma gentileza minha, ou qualquer outra estupidez, mas porque não poderia de fato ser de outra maneira, que li seu livro. Um livro que, atestando a potência da literatura, só agravou meu sentimento de solidão. Pior para mim, leitor — e melhor para o livro. Porque o leitor, eu penso, sempre leva a pior. Daí o fracasso dos que classificam livros, dos que lhes atribuem notas, ou submetem a julgamentos. É o contrário: é o livro que “enquadra” o leitor, é ele que o submete.

Seu livro, Henrique, me deu muitos sustos — e é isso o que importa aqui relatar. Primeiro susto: um jovem poeta, na primeira década do século 21, que escreve para falar de musas, que pratica sonetos, que se preocupa com os rigores da métrica. Um poeta, ainda, que, na contracorrente dos modismos e das imposições de grupos, e sem se intimidar pelos procedimentos de consagração, não se interessa pelas novidades rápidas, pelo prazer fugaz da ruptura, pelo escândalo intelectual. Não posso negar que, num primeiro momento, cheguei a pensar: de que exatamente esse rapaz foge? Por que se recusa a sincronizar com seu tempo, a dialogar com seus pares, por que se põe na posição de fugitivo?

Aí, antes que eu pudesse responder a essas perguntas, me veio o segundo susto: ainda que aferrado a uma estratégia do recuo, eu descobri, Henrique, você não se recusa a enfrentar o mundo e o presente. Ao contrário: você faz uma meia-volta, simula um passo atrás para, na verdade, avançar — avançar ainda mais que tantos poetas para quem basta uma linguagem de ponta para que o futuro surja, ato contínuo, logo à frente.

Dias antes de abrir A musa diluída, Henrique, eu lia uma longa entrevista, transformada em livro, do escritor António Lobo Antunes, o mais inquieto ficcionista português. Celebrado por sua linguagem radical e por sua destemperança intelectual, Lobo Antunes, nem por isso, se esquiva de dizer que o Ulisses, de Joyce, a grande obra que divide a literatura modernista ao meio, o “aborrece”. Diz, com uma serenidade assustadora, que só confirma sua grandeza: “Com Joyce, estamos sempre a sentir a sua habilidade, a sua perícia como escritor é-nos imposta e estamos todo o tempo a notar que é ele, o próprio Joyce, que está por detrás de tudo”. E conclui, aniquilando o mito do escritor bem equipado: “Não és tu que tens de ser inteligente, é o livro que tem de o ser”.

Dias depois, lá estava eu a ler A musa diluída, Henrique, e as palavras de Lobo Antunes ecoavam atrás de cada linha. E, a cada passo, a cada página, eu me impressionava, mais e mais, com a coragem que descobria em você. Não é fácil assumir a posição que você escolheu — de independência, de liberdade para repisar caminhos antigos, ou para avançar em direções vedadas. Não é fácil, não deve ser nada confortável, mas é a única maneira de ser livre. Em outras palavras: é a única maneira que alguém tem de se tornar um escritor.

Posso aqui, é claro, fazer comentários sobre um, ou outro poema. Dizer, por exemplo, o quanto gostei de Grito surdo — e o quanto eu também me senti, como você, Henrique, preso em um “aquário”. E ainda como me agradaram, em particular, as referências que você faz a Vinicius de Moraes, a quem biografei — e biografar alguém é, necessariamente, passar pela experiência (talvez a mais radical) da impossibilidade de dizer uma vida e, mais ainda, da impossibilidade mais extrema de aprisioná-la em um livro. Falar, ainda, do quanto gostei dos fortes versos que abrem um poema como Lugar: “viver se faz em si — própria poeira” — e como neles ecoa, ao menos para mim, a voz solar de Alberto Caeiro, que é um de meus poetas favoritos. São reflexos do impacto que seu livro provocou em mim. São maneiras de dizer o quanto e como seu livro “me leu”.

Mas, mais do que do livro, Henrique, eu prefiro falar da atitude que o preside, e que o gera. Só por causa dela, estou certo, pude sentir o soco de seus versos. E só porque eles me desestabilizaram e romperam minhas expectativas de leitor, achei que devia — que podia, que estava autorizado a — escrever sobre eles. A leitura, tal qual a entendo, é uma experiência que não inclui a transmissão. Ensina-se a ler — às crianças, aos velhos, aos pobres. Mas ninguém ensina “como ler”. Quando leio um livro, essa leitura é “só para mim” — e por mais que lute para reproduzi-la, o principal está sempre de fora. Leitores, grandes leitores, são homens atordoados pelo que lêem. É esta a leitura que me interessa: a que deixa seqüelas, a que abre feridas, aquela que muda alguma coisa de essencial em quem lê. A que perfura, a que deixa rombos.

Por isso apreciei seu livro, Henrique. Ele me levou, de novo, à posição de perplexidade, dúvida e desamparo que define o leitor. Os grandes livros se fazem por aquilo que neles não se pode ler — por aquilo com que eles desafiam a serenidade do leitor. O melhor leitor é um aprendiz que, em vez de esconder isso, se orgulha disso. Luto para preservar essa capacidade de ler. Para não perdê-la para minha maturidade. Obrigado por reafirmar essa escolha.

O abraço de seu leitor,

José Castello

A musa diluída

Henrique Rodrigues
Record
97 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho