Todo escritor, quando perguntado sobre o processo criativo de determinada obra, gosta de fazer um pouco de firula. É comum a afirmação que certos personagens ganham vida própria e saem das rédeas do autor. Em Viagens no scriptorium, Paul Auster mostra que não é bem assim.
O romance é um grande diálogo entre autor e personagens, com reclamações, revelações e pedidos mútuos de desculpas, mas, no fim, Auster mostra que quem manda mesmo é o autor. A vida própria dos personagens, cantada em prosa e verso por muitos escritores, pode até servir como inspiração para o desenrolar do romance, mas não há como discordar de Auster, haja vista que o mais bravo guerreiro de uma trama pode ser eliminado com apenas uma frase.
Naturalmente, Paul Auster é sempre o enigmático Paul Auster. O desenvolvimento de Viagens no scriptorium não é linear nem simplório. Somente na última página do romance é que o autor dá seu parecer sobre a questão. Antes de mostrar o poder do escritor, Auster exibe o seu costumeiro e esquisito talento, odiado por alguns, mas idolatrado por muitos, principalmente por seus leitores cativos.
Em princípio, Viagens no scriptorium parece apenas a história do senhor Blank, um velho condenado a estranho tratamento de isolamento num quarto vigiado por microfones e máquinas fotográficas, que são disparadas a todo instante para registrar cada passo do personagem. O que parecia ser apenas um big brother sem qualquer originalidade segue dois rumos distintos, que se cruzam para um inteligente desfecho unificador.
O senhor Blank faz jus à tradução literal de seu nome do inglês: vazio. Ele não entende por que está sozinho no quarto, não sabe o que lhe aguarda fora do isolamento e nem mesmo se tem autorização para sair de onde está. Sua vida começa a ser preenchida com uma série de visitas, pessoas que Blank não reconhece, mas que estão todas em uma coleção de fotografias que está no quarto. As fotos são todas antigas, mostrando as pessoas muito mais jovens, selecionadas para instigar a memória do velho.
Esta parte da trama de Viagens no scriptorium induz ao que seria um saboroso e ardiloso reencontro de um escritor (possivelmente Auster), encarnado por Blank, com alguns personagens do próprio Auster, muitos anos depois de eles terem sido criados. Por meio de Blank, ficamos sabendo um pouco da inverossímil vida futura de alguns personagens de Auster abandonados à própria sorte após a finalização de obras como A trilogia de Nova York (1985) e Noite do oráculo (2003). Esta parte do livro é Auster em seu estado mais puro e, por si só, já vale a leitura de Viagens no scriptorium.
Mas surpresas aguardam o leitor. Propositadamente, o romance nunca afirma claramente que Blank é Paul Auster. Também não é revelado que os personagens que visitam Auster fazem parte de alguma outra obra literária. Eles apenas têm uma relação muito próxima com Blank, que os envia para determinadas missões que, por sua vez, transformam suas vidas.
Paralelamente ao reencontro do autor com os personagens, Blank também tem sua missão. Na escrivaninha, é deixado um manuscrito com um relato inacabado sobre fatos pseudo-históricos dos Estados Unidos. Um visitante estimula Blank a dar linhas finais ao relato. A tarefa revigora Blank e delicia o leitor de Viagens, convidado a acompanhar tão proximamente o processo criativo de uma história que, também, por si só, tem seus atrativos.
Além do ajuste de contas de um escritor e seus personagens e da boa história paralela, Viagens no scriptorium tem em Blank um personagem profundo, contemporâneo e real. Blank é a expressão mais depressiva da velhice. Ele é debilitado, sem memória, e sua luta contra a fragilidade do corpo e da mente é angustiante.
Situações deprimentes
Auster foi duro ao compor Blank. As cenas que descrevem as dificuldades do velho para ações simples como levantar, ir ao banheiro e recompor as calças são deprimentes para um ser humano. O quarto de Blank é, na verdade, um asilo parafernal, em que seu ocupante é vigiado e tratado como um animal cuja razão já se deteriorou. A janela não abre, os objetos têm tiras de esparadrapo identificando-os e a porta parece fora de alcance para Blank, que nem sabe se ela está aberta ou trancada.
Ao receber a visita de Anna, que deixa transparecer uma relação de afeto com Blank, a decrepitude do velho é tratada com compaixão pela mulher, que o masturba durante o banho. Outra visitante feminina, Sophie, atende à súplica de Blank e lhe deixa observar e tocar partes nuas do corpo. Mas o prazer de Blank só é obtido mediante chantagem, pois ele se recusa a tomar seus comprimidos enquanto a moça não tirar a roupa. Nestas cenas, Auster semiplagiou Junichiro Tanizaki em Diário de um velho louco, em que o protagonista do livro do autor japonês tem o mesmo tipo de relacionamento com sua nora.
O declínio de Blank fica mais acentuado em suas recordações da infância. Ao sentar-se numa cadeira de balanço junto à escrivaninha, ele lembra de momentos de alegria de um garoto que usava Branquinho, um cavalinho de balanço, para “atravessar desertos”. Quando Anna o ajuda a se vestir, Blank recorda de sua mãe colocando-lhe a roupa para dormir. São sensações saudosistas que o fazem lamentar a impossibilidade de voltar a momentos que não soube aproveitar.
Viagens no scriptorium pode ser apreciado isoladamente nestas diferentes partes: na divertida, original e enigmática relação entre autor e personagens; na história americana em aberto, em que amizade entra em conflito com traição e interesses políticos; e na caracterização realista e dramática do senhor Blank.
À medida que vai alinhavando as partes, Auster conduz o leitor a um labirinto cuja saída nunca é vislumbrada, daí a boa surpresa ao final do livro. Na verdade, em Viagens no scriptorium, Auster desafia o leitor para um jogo literário, mas só no final se percebe que era um jogo de cartas marcadas. Resta-nos reconhecer a vitória ardilosa do adversário e bater palmas.