Os outros e Deus

O cineasta italiano Antonio Monda reúne a opinião de 18 celebridades sobre a existência de Deus
Antonio Monda: “Se você crê, você precisa de uma religião”.
01/04/2007

O título engana. Quem se depara com Deus e eu, como num ato reflexo, logo pensa: lá vem mais um daqueles livros de auto-ajuda. As livrarias, em especial as grandes redes, ainda não sabem bem como situá-lo. Nas prateleiras dos esotéricos ou ao lado das mais novas edições da Bíblia, a obra do cineasta italiano Antonio Monda aparece em todos os setores. Menos, ou raramente, na classificação (besteira aderida pelo mercado editorial) que, de fato, se inclui: a dos livros de não-ficção. Para fugir aos rótulos — ou criar mais um — a Casa da Palavra lança, com o título de Monda, a linha “auto-reflexão”.

Não que a maioria dos livros ou leituras não provocasse certa reflexão. Pelo contrário. Mas a nova linha da editora carioca — parece — quer destacar o movimento inverso: obras que são resultado específico de uma determinada reflexão. Se essa for a “função”, Deus e eu é uma inauguração certeira.

Católico convicto, Monda, radicado nos Estados Unidos há 12 anos, começou a pesquisa, que resultaria no livro, sem sequer notar. Colaborador do jornal italiano La Repubblica, em 2003 publicou uma série com seis perfis de grandes personalidades. O foco das matérias: a ligação daqueles homens do mundo da arte com Deus. Ainda sob efeito de tudo que ouviu nas entrevistas para o periódico — em especial do Nobel de Literatura Saul Bellow, falecido em 2005 —, ao fazer a curadoria de uma exposição sobre a divindade no cinema, no MoMA, em Nova York, notou que seu trabalho não havia se encerrado com os perfis do La Repubblica. Sentiu necessidade de ir além.

Convidou mais 12 personalidades a responderem a pergunta-chave do livro: “você acredita em Deus?”. De um ateu convicto como Paul Auster à Jane Fonda e seu feminismo cristão, as mais diversas defesas da presença religiosa trocaram experiências com Monda. Spike Lee, Toni Morrison, Salman Rushdie, Jonathan Frazen, entre outros, também embarcaram no desafio. Mas teve quem saísse pela tangente. Agradeceram educadamente ao convite do italiano, mas recusaram participar da coletânea. É o caso das duas mulheres de maior expressividade política na atual conjuntura americana: Hillary Clinton e Condoleezza Rice.

Tal recusa leva a outra reflexão bastante presente no livro: a relação entre Igreja e Estado. Conflito antigo que, a cada dia, como atestam os entrevistados por Monda, está mais vivo. Ou nos movimentos fundamentalistas ou na chamada nova era. E na tentativa de justificar uma crescente religiosidade contemporânea, associada a extremismos e partidarismos, a maioria das personalidades entrevistadas chega a seguinte conclusão: o fundamentalismo como fruto de uma institucionalização da fé, de uma Igreja organizada.

O roteirista italiano e professor da Universidade de Nova York respeita a convicção de seus convidados. Mas, em entrevista ao Rascunho, na breve passagem que fez ao Brasil em março, rebate: “Com uma igreja no meio, o risco do fundamentalismo é menor, já que há uma orientação do que pode e deve ser feito ou não”.

Pela primeira vez no Brasil, Monda revela ter sofrido uma experiência única: em uma semana encontrou pastores, padres, místicos, pais de santo, judeus. Mais: todos juntos, lado a lado, debatendo a sua obra. O que o italiano leva do Brasil? Como o próprio disse, um grande respeito pela multiplicidade da fé.

• Depois de todas as entrevistas que fez para o livro, sua crença mudou de alguma maneira?
Não, a minha fé e as minhas crenças religiosas não mudaram. Mas, depois das entrevistas, o meu respeito em relação a outras religiões e às pessoas aumentou muito.

• O senhor tentou entrevistar Hillary Clinton e Condoleezza Rice. Ambas não aceitaram. Acredita que o fato de serem personagens importantes na política americana as inibiu de participar do livro?
Elas negaram, sim. Mas foram muito educadas. Elas me perguntaram sobre o que se tratava exatamente, me pediram para lhes encaminhar as perguntas e depois negaram com um “não, obrigado”. Acho que pesou muito o fato de serem mulheres muito poderosas em termos políticos. Qualquer coisa que fosse dita poderia se voltar contra elas em um determinado momento de suas carreiras políticas. Poderia ser perigoso para elas falar abertamente sobre fé e religião. Foi o que senti. Há também toda uma questão política envolvida. Há estados americanos mais religiosos do que outros e com diferentes crenças. Uma opinião delas formada e fechada sobre Deus poderia lhes prejudicar. Infelizmente, o discurso religioso ainda atrai votos. Espero, no entanto, que elas sejam sérias em relação à fé e não usem a religião para se fortalecerem na política.

• Polêmica como de costume, Jane Fonda disse que Cristo foi o primeiro feminista. Como reagiu à afirmação?
Jane Fonda é uma mulher fascinante e inteligente. O fato de ela sempre ter negado a fé e agora parecer quase uma cristã, não no sentido católico, é quase uma conversão.

• Ateístas, agnósticos, cristãos. Independentemente da crença, todas as personalidades entrevistadas alertaram para o perigo do fundamentalismo. Em especial, como um reflexo das organizações religiosas. O senhor concorda?
Acredito que o fundamentalismo é um dos grandes riscos da religião hoje, junto à nova era. No entanto, acredito que, quando se tem uma igreja, como a católica, fundamentalismo é menos perigoso. Porque o fundamentalismo significa uma interpretação literal das palavras de Deus. Com uma Igreja no meio, o risco é menor, já que há uma orientação do que pode e deve ser feito ou não.

• Dostoiévski e Flannery O’Connor foram citados como autores que usaram a religião como um importante elemento em seus livros. Qual a relação entre arte e religião? Como a religião afeta a sua arte?
Estou escrevendo um romance que tem muito pouco de religião visível, mas é construído por minha crença religiosa. Não dá para escapar da sua fé no que quer que faça. Está em você. Vai estar na sua obra.

• Alguns dos seus entrevistados, como Paul Auster, não acreditam em Deus, mas em uma redenção através da arte.
Acredito que qualquer maneira de se chegar a Deus é respeitável. Não creio que a arte é Deus, mas que a arte seja um caminho para Deus. Não gosto de abusar do termo redenção.

• O senhor perguntou a Spike Lee se ele acreditava que um “ateísta de verdade” cria ídolos para suprir a não existência de Deus. Concorda com esse pensamento?
Acredito. Não acredito que haja ateísta de verdade. Você sempre acredita em algo, cria mitos, ídolos. No lugar de Deus, muitas pessoas colocam outras crenças: seja no dinheiro, no sexo, corpo e o que seja. O ateísta verdadeiro substitui Deus por ídolos.

• Logo na introdução, o senhor apresenta alguns números de uma pesquisa feita pelo instituto Beliefnet. O levantamento indica que muitas pessoas distinguem religião de espiritualidade. Como analisa essa recorrente separação?
Religião é uma palavra que vem do latim, e o núcleo significa busca (?). Se você é religioso, você está descobrindo, procurando, está junto à igreja. A espiritualidade é um meio que qualquer um pode aderir para evitar essa busca. Pode até ser uma tendência, ser espiritualista, sem religião, mas não acredito nesta idéia. Se você crê, você precisa de uma religião. Caso contrário, você escolhe apenas o que gosta desta ou daquela crença e não segue um dogma. Mas todos são livres para fazer o que quiserem. Cada um acha qual o melhor jeito de encontrar Deus.

• Acredita que seja uma tendência as pessoas se classificarem como religiosas, mas sem seguir um dogma específico?
É um mistério para mim as pessoas que dizem que não acreditam em Deus, mas têm fé. Scorcese disse algo diferente: “Não sei se acredito em Deus, mas sou católico”. Ele quer dizer que ele tem uma religião, mas mantém suas desconfianças. É um outro pensamento.

• Na conversa com Richard Ford, vocês falaram sobre um renascimento religioso que estaria tomando conta do mundo. O que realmente quis dizer?
Quis dizer que, agora, a religião está no centro das discussões mundiais. Todos os tipos de religião. Algumas vezes por motivos errados, como no caso dos separatismos e conflitos religiosos.

• É a primeira vez que vem ao Brasil? Como acha que os brasileiros, reconhecidos por uma intensa religiosidade, vão receber seu livro?
Estou totalmente seduzido pelo Brasil. É um país incrível. Conheci, inclusive, uns pastores bem diferentes. Com muita paixão na fala. Pensam muito diferente de mim. Mas respeito.

FRASES
“Não. Não acredito em Deus. Mas isso não quer dizer que não considere a religião um elemento culturalmente fundamental da existência.” (Paul Auster)

“A imagem de Deus para mim é a de uma mulher negra. Quando eu era criança, a minha babá era uma mulher grande, negra, pela qual eu nutria um amor fora do normal. Quando penso em Deus, penso nela.” (Michael Cunningham)

“Penso que Cristo foi o primeiro feminista e é graças a isso que aprendi com esses ensinamentos a definir-me, hoje, como uma feminista cristã.” (Jane Fonda)

“Considero que aquilo que é definido como Deus é a resposta que cada um de nós encontra para obedecer a uma lei interior própria.” (Paula Fox)

“Posso responder de maneira jocosa que a minha religião são os livros e os crentes são aqueles que lêem.” (Jonathan Franzen)

“Penso que a arte representa a tentativa humana de sublimar-se e carrega consigo as fraquezas dos respectivos autores. Mas o resultado nos oferece muitas vezes a intuição da perfeição. Talvez seja Deus.” (Spike Lee)

“Cada um tem dentro de si a potencialidade da revelação e a capacidade de intuir a existência do divino.” (David Lynch)

“Contesto a imagem de Deus como genitor protetor: se me esforço para intuir sua essência e penso, por exemplo, na infinidade do tempo, eu me perco com um misto de angústia e excitação.” (Toni Morrison)

“Creio que nunca acreditei.” (Salman Rushdie)

“Tornei-me diretor para expressar-me integralmente e também a minha relação com a religião, que é determinante.” (Martin Scorsese)

Deus e eu
Antonio Monda
Trad.: Eliana Aguiar
Casa da Palavra
168 págs.
Paula Barcellos
Rascunho