Dentro da morte

Conto de Júlio Damásio
01/04/2007

A pior experiência que Boris viveu foi a de se ver dentro de um caixão, lacrado e enterrado.

Ao abrir os olhos e se deparar com aquela escuridão macabra, e ao identificar a situação em que se encontrava, Boris tentou de todas as formas se libertar, mesmo com o exíguo espaço que lhe restava para se mover. Tentava chutar, acotovelar e arranhar com todo ímpeto as paredes de madeira maciça de seu novo abrigo, como se sua vida dependesse de suas garras. O ar faltava-lhe, o cheiro da madeira de cerejeira envernizada e envelhecida com betume impregnava-lhe o nariz e agredia-lhe os olhos. Em meio ao desespero, Boris tentou não se ver como morto. Acreditou que talvez o tivessem enterrado por equívoco. Dentro daquele silêncio sepulcral, ouvia o bater descompassado do seu coração, a respiração ofegante de um desesperado, e sentia o latejar das veias. Tentou organizar os pensamentos, mas não encontrava razão para estar dentro da morte, não lembrava de nenhum acidente, não estava doente, nem mesmo que houvesse tido um mal súbito que justificasse sua morte. Por um momento, refletiu sobre sua vida e, principalmente, sobre seus enganos, o de trabalhar em demasia deixando de lado o prazer que a vida pode oferecer, o de deixar de se cercar das pessoas que amava para acumular bens que de nada lhe serviriam naquele momento. De correr atropelado, de correr atropelando, corria ele contra o tempo, teve em toda vida em seu pulso o marcador das horas, não como aliado mas como um escravizador. Ao passar a mão direita sobre o pulso esquerdo, percebeu seu relógio de ouro, fora enterrado com ele. Sorriu de si mesmo, de que lhe valeu tanta riqueza, de tanta pressa na vida, quando o espaço na morte não permite nem mesmo o corpo em movimento? A vaidade e a ganância também não têm vez naquele espaço. Outro engano, o pior deles, o que deu origem a todos os outros, o de não acreditar que um dia sua morte chegaria e que houvesse vida dentro dela.

Com muito esforço conseguiu, levantar a cabeça, e trazer o braço para próximo de sua visão. O marcador do tempo, em seus ponteiros iluminados, apontava meia-noite.

Entristeceu-se ao lembrar das pessoas que sentiriam sua falta, mais triste ficou ao concluir que não teria ninguém para derrubar uma lágrima sequer pela sua passagem.

Tentou se conformar com o sepulcro, mas seu desespero aumentou quando imaginou seu corpo sendo devorado e decomposto lentamente pelos vermes. Seu corpo exalava mau cheiro. De nada lhe adiantava o perfume francês que sempre usara, a combinação da essência com o aroma do seu corpo não diminuiria o odor fétido. Quanto tempo ainda lhe restava de consciência da vida na morte. Seria ela permanente?

Veio-lhe à cabeça a imagem das cervejas tomadas com os amigos, quanto ainda os tinha. Imaginou-se brincando numa manhã ensolarada, brincando com a filha e namorando a esposa. Era somente imaginação, pois não tinha como lembrar de fatos não acontecidos, nunca se casou e tão pouco teve filhos, não queria ser incômodo, julgava seu tempo precioso demais para dividi-lo. Quarenta anos, essa era sua idade final.

No funesto episódio, Boris teve ainda a consoladora idéia de que podia se tratar de um pesadelo. Seria este o pior de todos os pesadelos, pois parecia nunca chegar ao fim. Novamente olhou para o relógio, passava das três horas. (Depois de tanto se debater, exauriu-se, gastas todas as suas forças.) Sentia que por seus dedos esguichava sangue, por tentar inutilmente lascar as paredes do caixão para se ver livre dele. Boris gritou, buscando acordar com o som de seu horror, mas percebeu o som abafado. Vencido pelo desespero, apagou.

Ao acordar, Boris se viu despertar em seu amplo quarto. Os olhos passaram por toda a parede recém-pintada de azul-piscina, respirou fundo e, pela primeira vez, percebeu que o ar da primavera que entrava pela janela entreaberta era aromatizado. E que seu perfume inebriava a alma. Viu a luz do dia claro que invadia seu quarto. Ouviu o cantar dos sabiás, o chilrear dos pardais. Percebeu o quanto o simples fato de estar vivo era espetacular. Seus olhos estavam diante da verdadeira beleza da vida, estar vivo. Olhou para o relógio de vidro rachado, apontando nove horas, perdera a reunião de negócios. Pensou em levantar-se abruptamente, mas, resistiu lembrando-se dos momentos de horrores.

Mesmo aliviado, sentia dores no corpo como se realmente houvesse estado por algum tempo preso e enterrado em um caixão. Levantou-se, foi com certa dificuldade até o banheiro para lavar o rosto e viu a imagem do pesadelo.

Ao abrir a torneira, notou que jorrava dela mais sangue em seus dedos do que água. Olhou para as mãos e, ao ver suas unhas e parte de seus dedos carcomidos, levou-as com dificuldade para o rosto. Gritou para, quem sabe, acordar de um outro pesadelo. Quando tirou as mãos da face, viu-se de novo dentro de seu definitivo espaço, dentro de sua pior experiência.

Júlio Damásio

É autor de Conto dos contos e outros contos (2003). Atualmente, ministra oficina de contos pela Fundação Cultural de Curitiba.

Rascunho