Aconteceu em Goiânia, no início dos anos 70, num bairro da cidade chamado Fama. O nome vinha de uma instituição bastante conhecida naqueles tempos: a Fundação Abrigo ao Menor Abandonado.
Eu era ainda bem pequeno para perceber a ironia que viajava clandestina na sigla da fundação. O que aqueles garotos tinham de famosos? O que neles poderia se aproximar de algo sequer parecido com fama? Eram garotos sem pai nem mãe, deixados à míngua por motivos diversos, eram moradores de rua. Não tinham nome ou sobrenome que os abrigasse, e mesmo o nome de batismo era muitas vezes esquecido, trocado por um apelido qualquer, tragado pelo turbilhão do anonimato ou adormecido sob o manto nada generoso da expressão: menor abandonado.
Era na Fama que morava um certo Fausto, ex-jogador do Vila Nova, ponta-direita de chute poderosíssimo. Dizem que chegou a matar um zagueiro adversário. O cara ficou de costas na barreira, Fausto chutou com força e a bola atingiu os rins do zagueiro, que morreu poucas horas depois de hemorragia interna. Pois esse Fausto era também, ironicamente, um quase anônimo. Pouco importava se seu nome carregava séculos de história. Não almejava o sobre-humano, não fez pacto com o diabo, não teve a glória do personagem de Goethe, eternizado para todo o sempre. Era apenas o Fausto, dono de bar e esquecido ídolo do Vila Nova.
E eis que o destino quis juntar as duas ironias e fez com que Fausto tivesse uma idéia: criar um time de futebol com os meninos do bairro e arredores. Raspou as economias do bar, conseguiu aqui e ali uma ajudazinha do açougueiro, do dono do armazém, do gerente do posto de gasolina, e com isso comprou as camisas amarelas, imitando as da seleção brasileira. Depois conseguiu comprar alguns metros de brim azul, com que sua mulher costurou os calções. Sobrou algum, que ele investiu na compra de três bolas de couro e alguns pares de meiões, também amarelos (nunca soube por que amarelos e não brancos, para fechar de vez com os da seleção). As chuteiras foram compradas com a ajuda de alguns pais e com o que restou do fundo do pote das doações.
Na tal Fundação de Abrigo ao Menor Abandonado, havia um campo de futebol bem razoável para os padrões da época, com um gramado regular, traves, redes e tal. Fausto conseguiu de graça o uso do campo para treinos e jogos, com a condição de convocar para seu escrete alguns dos meninos da instituição. Ele aceitou (até porque isso já fazia mesmo parte dos seus planos) e em breve estava fundado o glorioso Selefama Esporte Clube.
O nome, desnecessário dizer, acrescentava mais uma volta à espiral das ironias. Juntava-se aos garotos anônimos e ao ídolo esquecido uma palavra mágica: seleção. Quer dizer, aqueles garotos mirrados, alguns passando fome, que nunca tinham calçado uma chuteira na vida (as chuteiras foram doadas por um vereador ligado ao governo militar), aqueles sem-nomes liderados por um ex-famoso eram agora nada mais nada menos que os selecionados! Eram os eleitos, os craques da seleção da fama!
Eu tinha onze anos e era o ponta-direita do Selefama. Morava num bairro vizinho e, se minha família não era exatamente pobre, rica também não era. Éramos de classe média, quem sabe tendendo a baixa, meu pai dava aulas de datilografia e minha mãe era balconista numa loja de tecidos. Fui a um dos primeiros treinos do time e de repente me vi o dono da camisa 7, sem dúvida um dos maiores orgulhos da minha vida.
Depois de alguns treinos e da papelada toda em ordem junto à Federação, entramos num campo de terra, terra vermelha, campo duro e esburacado, do Criméia Leste, cuja torcida tinha ficado famosa pelas pedras, paus, laranjas e outras coisas inomináveis que atiravam no juiz, nos bandeirinhas e nos jogadores do time adversário. Naquele dia nos pouparam e só recebemos mesmo uns tomates podres (eu tive que mudar o esquema traçado pelo Fausto, não dava para ficar aberto na ponta, os caras da torcida deles ali pertinho de mim, convenhamos!).
Era nossa estréia no campeonato estadual, categoria Tampinhas. Ninguém, claro, botava fé naquele time, ainda mais que o campeonato contava com as divisões de base dos quatro grandes da capital: Vila Nova, Goiás, Goiânia e Atlético.
Pois de jogo em jogo, de surpresa em surpresa, o Selefama foi se aproximando do verdadeiro sentido de seu nome iluminado, e quem não esperava ficou boquiaberto quando chegamos à final.
O jogo era contra o bicho-papão: o Goiás. E era na Serrinha, o campo deles (onde os profissionais treinavam!). Precisávamos de um empate e eles acharam que iríamos jogar na retranca. Ledo engano. Fomos direto para o ataque, os caras ficaram assustados, começaram a ficar nervosos, a errar passes, a entrar de sola, e a gente só ali, tum-tum-tum, tocando bola de pé em pé, numa boa, com classe, como convinha aos seletos.
Final do jogo: 0 x 0. E o Selefama Esporte Clube consagrado como campeão goiano de tampinhas, no inesquecível ano de 1973.
Tomamos muito guaraná Antarctica e comemos muito frango assado no bar do Fausto naquele dia. E antes de acabar a farra, o Fausto pediu silêncio e anunciou que um repórter de O Popular (o maior jornal da cidade) tinha pedido a ele para fazer uma foto do time, uma foto oficial, com troféu e tudo. Tinha pensado em fazer lá no campo mesmo, mas a gente fez tanta zona depois do jogo, e ficou todo mundo tão sujo, e depois saímos todos tão misturados até o caminhão — que tinha levado o time (já uniformizado) até o estádio, jogadores e torcedores se espremendo na boléia —, foi tanta bagunça que ele preferiu marcar um outro dia e fazer uma foto mais limpinha.
Tiramos a foto. Uma foto muito estranha, hoje sei. Todo mundo de pé, uma longa muralha de moleques extremamente bem comportados e limpos (vestimos o uniforme só para a foto), o capitão segurando a taça. Foto estranha, tudo bem, mas era nossa chance de finalmente fazer jus ao nome do nosso time e adentrar o reino da mídia.
Dias depois lá estava a foto, no caderno de esportes de O Popular (e aí nem me atrevo a cansar o leitor falando de mais essa ironia, a do nome do jornal).
Estávamos quase todos na foto. Para caber no jornal, cortaram um pedaço e alguns dos valorosos atletas do Selefama Esporte Clube ficaram de fora (dois deles, os das pontas, foram cortados ao meio) e do Fausto não se viu nem a sombra. Para os que ficaram, o destino reservava ainda um toque de classe, uma bola debaixo das pernas, um lençol com que nos mandaram de uma vez por todas ao nosso lugar. E esse toque foi o seguinte: na legenda da foto, não vinha o nosso nome.