Zezé, Dinim

Trecho da história Zezé & Dinim, do romance O livro das impossibilidades, quarto volume da série Inferno provisório.
01/04/2007

Zezé bebericava a caipirinha, arranchado a um canto da ampla varanda recoberta por telhas de amianto, paredes sem reboco, piso ainda-laje por acabar, terceiro andar de uma modesta construção sem alvará, monte de areia esparramando-se do passeio para a rua, uma pá esquecida, as operárias casas da Taquara Preta espichando-se ao longo da curva do Rio Pomba. No centro do salão, sobre uma enorme mesa — três pares de bíceps guindaram-na amarrada a uma corda, abandonada serpente — duas pilhas de pratos-colorex âmbar, dois pacotinhos fechados de guardanapos, um tupperwear com facas e garfos cabo de plástico creme, alguns copos-americanos limpos, alguns babujados, duas garrafas-plásticas semivazias de guaraná, uma tigela de vinagrete, uma travessa de farofa. À esquerda, o freezer empanturrado de cerveja. Próximo, no fogão-a-gás, uma mulher, grisalhos cabelos, lata de Skol na mão, observa o frigir do arroz em duas caçarolas. Mosquitos voejam. A fumaça da churrasqueira defuma mudas de roupa estendidas num varal improvisado. O calor derrete a manhã.

O pagode, que irrompe das duas caixas-de-som de um três-em-um Gradiente, chacoalha três adolescentes, short e top, e duas mulheres, bermuda e blusa. Quatro rapazes catam marra em volta do Renatim — cumprimentou-o ao chegar —, faca na mão retalha pequenos pedaços sangrentos de picanha, que vorazes consomem em meio a exaltada contenda futebolística. Quatro crianças sobem-descem as escadas atropelando o esquipático vira-lata que, resignado, transmudou vários lugares — ralham, puxam orelhas, ameaçam castigos, as mães. Seu Procópio, pai do Bolão, dono da festa, ainda ausente — Foi na Rua comprar mais sal-grosso, já-já ele está de volta —, espalma o braço explanativo: Aqui vai ter um puxadinho, o Adroaldo — Adroaldo, o Bolão — quer colocar uma mesa de sinuca e um totó separado… Ah, ali onde está o tanque, do lado ele vai botar uma bancadinha pra colocar a roupa lavada em cima, ele não quer que a mãe dele fique baixando e levantando, coitada… o reumatismo… Aqui, onde não tem nada, ele…

À frente do prédio, cobrindo toda a extensão da parede do segundo andar, grita uma faixa, esburacada para o vento não arrancar, em vermelhas letras garrafais, BENVINDO DINIM!, e, traços menores, pretos: SEUS AMIGOS TE RECEBEM DE BRAÇOS ABERTOS.

Com o indicador, Zezé remexe o limão e o gelo que o fundo do copo forram. O Bolão apresentara-o o Dinim, parceiro na Cadeia Pública de Muriaé, adjunto ao Besame-Mucho, ainda lá, pagando pena pela estrangulação da mulher, Uma bisca, Zezé, um atraso de vida! Desde a primeira visita, vão-se os anos!, em que aportara com cigarro, maçã, banana e laranja descascada (Lembra de mim, Dinim?: Zezé…) se acamaradara com os desinfelizes. Suspeitoso, de-começo não queria se sujar com aqueles tipos, sabe lá que histórias ocultavam por detrás das lamentações domingueiras!, mas pouco-a-pouco aprendera a entender-se com eles. E se para lá se dirigia eventualmente, em fuga das desgraceiras domésticas em Cataguases — a mãe arrastava os dias doenças enfora —, mais-depois um fim de semana por mês baixava as pestanas na Rodoviária Novo Rio e abri-as às margens do Rio Muriaé. O tempo esclareceu-o que, se desejavam, mal algum havia em empurrar para a cela miasmos de maconha contrabandeados na meia, sacolés de cocaína na cueca. Um pulo, o Dinim dizer, o Bochecha, Ponta firme, cara, na boa, poderia assistir, chutação de lata, mãe dos médicos desenganada, Troca umas idéias com ele, cara, quem sabe… A empreitada, isso: quinta-feira esbarrava um fulano no Largo do Machado — nunca percebia daonde —, sexta-feira embarcava no ônibus para Cataguases, a bolsa de napa marron. Finzinho do sábado, instruíam a entrega da mercadoria — nunca perguntou o quê —, embolsava o envelope, o cachê. Tantas idas-e-vindas tornara amigo o motorista, o Lopes, e os passageiros mais assíduos, dona Glorinha, que fazia tratamento — contra câncer? — no Hospital do Servidor, o Jonas, que diz-que estudava engenharia no Fundão, a Carmen, morena vistosa revendedora de badulaques na Vila Reis, o Volnei, que distribuía queijo-minas em Bangu, a Virgínia e suas mensagens-de-luz da Seicho-No-Ie… Com o que arrecadava imaginou adquirir um teto para a mãe, tarde, porém, comprou mesmo, a prestações, um terreno no cemitério municipal, o montículo informe vazado por uma cruzeta Maria de Nazaré Teixeira aguarda tempos melhores Alá!, alguém aponta, pernas buscam a janela Chegou! Chegou! a escada. Embaixo, um táxi, Dinim sobranceiro, um vira-lata abana o rabo.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho