Sinto informar, mas está completamente enganado quem pensa que infância é algo fácil de encontrar. Você percebe crianças, mas infância é outra coisa. Pedófilos, publicidade, pedagogia caduca e as loiras apresentadoras de tevê acabaram com a infância e a inocência. Aqui ou ali ainda se percebem focos de resistência, cada vez mais raros, infelizmente.
A infância é algo muito frágil, acaba da forma mais agressiva para as crianças de rua, inalada junto com a cola de sapateiro, ou da forma mais estúpida, como alertou o cantor Lobão, “ao se vestirem de miniputas”, ou na belicosidade dos jogos eletrônicos. Estas as que têm casa, comida e escola. Geralmente pais ausentes e tevê sempre presente.
Resta correr para a adolescência e é exatamente esse o alvo deste Adeus conto de fadas (minicontos juvenis), de Leonardo Brasiliense.
O livro pode ser encarado de duas maneiras: como conto infanto-juvenil, conforme indica a ficha catalográfica, ou como um livro de contos cujo tema são a infância e a adolescência. Neste caso, tem seus méritos se o objetivo for o humor. Se a tentativa for seguir a indicação catalográfica, não passa de uma sucessão de equívocos. É melhor ficar com os clássicos — Ana Maria Machado, Ziraldo, Ciça Fittipaldi, Lygia Bojunga, os minicontos de Criança meu amor, da Cecília Meireles, Fausto Wolff (quem não leu Sandra na terra do antes, Tristana, O ogre e o passarinho, sua tradução e comentários aos contos dos Irmãos Grimm, não sabe o que está perdendo).
Na dúvida, vale o que está escrito. É assim que vamos encarar a criação de Leonardo Brasiliense.
Antes de tudo um aviso: este avô-aprendiz não credita à literatura infanto-juvenil o compromisso com o escapismo ou com um mundo cor-de-rosa, ao mesmo tempo não cerra fileiras com os niilistas de boutique. Daí a discordância com a orientação, ou cacoete, desses minicontos que não passam de variações sobre a mesmice.
O autor escolheu a rejeição, a solidão, a frustração e a resignação para emoldurar situações óbvias, que conduzem, em alguns momentos, ao patético e raramente ao cômico. Mas é disso que o leitor infanto-juvenil precisa? Posso garantir que não.
Insisto, se mudar a ficha catalográfica, o livro terá seus méritos. Não, não ignoro a sutileza do título, sei o que quer dizer adeus. No entanto, não entendo como justificativa para a piada. Será que os adolescentes estão interessados em rir daquilo que lhes causa sofrimento?
Mas no título, para ser mais exato, o adeus foi bem escolhido pelo autor, demonstra que de contos de fadas ele não conhece quase nada. Do contrário, não usaria da ruptura para justificar sua obra. Quando em seus minicontos ele aponta para a realidade e se curva aos ditames mais tolos de uma modernidade consumista e embrutecedora e imbecilizante, esquece que o que produz não tem nada a ver com contos de fadas. No entanto, poderia ser o ponto de partida a ser subvertido. A relação que poderia se estabelecer — enriquecedora para o autor e seus leitores — acaba virando comparação. E aí o escritor Leonardo Brasiliense não passa do médico Leonardo Brasiliense.
Os contos de fadas permitem ao leitor fazer suas opções. Eles anunciam simplesmente, não decretam o que deve ser. Permitem ao leitor imaginar o que o destino reserva àquelas personagens sem esquecer a presença de uma realidade, até mesmo agressiva, em grande parte dos contos de fadas. Apesar de anunciar o adeus aos contos de fadas, o autor deixou rastros profundos, perceptíveis na ausência de complexidade conferida às suas personagens. Mesmo assim, os contos de fadas permanecem. Atualmente, a psicanálise os utiliza na intenção de explicar isso ou aquilo ou ver isso e aquilo no Chapeuzinho Vermelho, no Lobo Mau, no Gato de Botas e muitos outros. Bettelheim aumentou sua fama e conta bancária analisando contos de fadas.
Perda de tempo
Quanto as histórias de Brasiliense, tente conversar, com respeito, com seu filho, com seus alunos, ou com você mesmo, e busque uma justificativa para tamanha perda de tempo, tinta e papel. A infância e adolescência, paciente leitor, é coisa muito séria!
Sobra aos contos de fadas aquilo em que acreditava La Sale, a literatura como terapia e prazer. Em adeus conto de fadas, percebemos um esboço de literatura. O miniconto é campo minado para os pseudo-humoristas. Se existe terapia, talvez se destine a alimentar o masoquismo da garotada; e o prazer só aparece quando é vencida a última página.
Justiça seja feita, anticlímax é mesmo com o Leonardo Brasiliense. Não se percebe o menor respingo de otimismo em seus contos que alternam o narrador, ora masculino, ora feminino. Da insistência em pegar o carro do pai, embora a idade não permitisse, ao esperado passeio dos primos, o resultado é a desolação, a frustração e, em alguns casos, o trágico. E justamente esse aspecto, o trágico, pode ser visto em dois contos lamentavelmente “quase iguais”: Sábado de tarde e Destino.
Sábado de tarde
Atílio, 16, encheu o saco do pai dele pra pegar o carro, embora, obviamente, não tivesse carteira de motorista. Marquinhos, 12, fez chantagem emocional com o dele para ganhar uma bicicleta. Os dois tanto insistiram que conseguiram. Moravam no mesmo bairro, e era sábado de tarde quando saíram pra inaugurar os brinquedos novos. O encontrão entre eles provou que neste mundo nem todos podem ter o que querem.
Destino
Quando o pai do João se deu conta de que o relógio tinha parado, saiu de casa voando e esbravejando pelo atraso. Estava num emprego novo e não podia deixar má impressão logo no início.
Quando viu que o filho mais velho amanheceu com febre, a mãe da Patrícia pediu que ela desse o passeio matinal com a cachorrinha Kelly. A pobrezinha já estava ansiada e não podia esperar.
O relógio do pai do João e a febre do irmão da Patrícia não tinham nada a ver um com o outro. João e Patrícia também nem se conheciam. Já o fato que os fez chorar, ela a morte da cadelinha, e ele a do pai, foi o mesmo, antecedido por um descuido no volante e por um defeito na fivela da coleira que também, mais uma vez não tinham nada a ver um com o outro.
Creio que a ânsia em fazer oposição aos contos de fadas tenha levado o autor a optar por finais nunca felizes em seus minicontos. Esquece que, embora sua simplicidade, os contos de fadas permitem ao leitor continuar a história. Sim, foram felizes para sempre, mas também poderia ser de outro jeito.
Enquanto os contos de fadas ajudam crianças e alguns adultos a compreender a vida, Leonardo Brasiliense e seus contos viajam na contramão, na velocidade esdrúxula da pseudopós-modernidade em que o fim quer ser o começo. Caro Leonardo Brasiliense, nunca diga adeus a um clássico.
Paciente leitor, os minicontos de Cecília Meireles destinados às crianças são obrigatórios, os minicontos do Dalton Trevisan atestam preguiça, os minicontos de Leonardo Brasiliense são tropeços, e quando alguém tropeça não falta quem ache graça. Espera-se que antes do próximo, caso insista, leia pelo menos a Tânia Zaguri. Qualquer um. Todos servirão.
Antes de concluir, um esclarecimento: o espaço destinado à literatura infantil e infanto-juvenil em nossos cadernos de cultura é lamentável. Felizmente, este Rascunho insiste em marchar com “o passo errado”.
Mas já que o espaço é pouco, por que gastá-lo apontando os pontos negativos de um livro? Para mostrar que a exigência e o rigor também conduzem o exame de tais obras e que esse território não admite aventureiros. Nesse território, responsabilidade e talento se confundem.
Isso explica o porquê de citar aqueles autores no começo deste texto. E, para não parecer um amargo mal-intencionado, preferi não mencionar Monteiro Lobato.
Depois reclamam do Harry Potter!