Abismos de uma realidade sem saídas

Resenha do livro "Dicionário de pequenas solidões", de Ronaldo Cagiano
Ronaldo Cagiano, autor de “Cartografia do abismo”
01/05/2007

Na página 92 de Formas breves, Ricardo Piglia observa uma de suas teses sobre o conto: “Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta, e narra sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano”. Os contos da antologia Dicionário de pequenas solidões, de Ronaldo Cagiano, bebem de maneira fértil nessa fonte citada por Piglia e outras mais — João Antonio, Samuel Rawet na narração e Augusto dos Anjos, Drummond e Torquato Neto na poesia, pois o autor também é poeta. Vai além: reproduz e revela de maneira implacável e lúcida o resto, a sobra de um Brasil trágico e dramático, cenas que povoam uma sombra ingrata e incômoda aos olhos do Planalto Central.

Dicionário de pequenas solidões é um labirinto descontente. Ficções profanas, extremas e brutais, castigadas pelas patologias de uma certa urbanidade, na qual transitam, lado a lado com a história oficial, personagens corroídos pelo silêncio, partidas, idas, vindas e o vazio de suas vidas ordinárias. Consumidos e cuspidos pela voraz realidade de um país que desconhece o seu povo. Desesperança pura.

São 15 histórias de dois livros: o premiado Dezembro indigesto (2001) e Concerto para arranha-céus (2004), o mais pungente e maduro de Cagiano. Para a antologia foram escolhidas as histórias mais consistentes do autor. No geral, uma série de narrativas em primeiro plano e com toda a naturalidade, entretanto movediças e dolorosas, fincadas numa realidade espinhosa e intercambiadas pela visível denúncia social e (con)fusão de gentes num mar de cólera e espanto em suas vias-crúcis.

O reino dissonante e paroxismo de um crepúsculo banhado por óbitos, tédios, descrenças, condenações, êxodos, decadências e hemorragias cerebrais crônicas. Derramadas numa lógica veloz, tumultuada e vulcânica. Inundadas por epígrafes, referências, interlocuções e pontuadas por uma imaginação criativa. Um painel digno do pintor flamengo Hieronymus Bosch.

Há contos exemplares: O abuso, Golpe de misericórdia, Solidão, Todas as estações, No último Natal do milênio”, Fígaro, Horizonte de espantos. O melhor deles, cuja temática é a morte, chama-se A marca. Uma trajetória impotente, desencantada e desesperançosa do filho que volta à cidade natal para enterrar o pai. No seu delirante retorno, o protagonista é embalado por uma sublime perturbação, um recôndito desejo, fazer o que queria quando mais novo: visitar o túmulo de Baudelaire em Paris. Mas teve que se contentar com o sepulcro de Augusto dos Anjos — sepultado em Leopoldina, cidade vizinha à terra de Cagiano: Cataguases, Minas Gerais.

A marca é um mix de encontro real e fictício para um anônimo enigmático, acinzentado, obscuro e carcomido pelos sofrimentos da procura da essência em suas crises existenciais. O remorso atinge o clímax a partir da lembrança das manchas de sangue no cimento, a nódoa que não diluiu, sinal de uma culpa irremediável: a morte do irmão menor, na infância, esmagado por um caminhão de areia.

Fundamentalmente poeta, entretanto regido pela máxima de Baudelaire, “Seja poeta, mesmo em prosa”, o escritor desde 1979, quando chegou em Brasília (onde trabalha como bancário), não parou de escrever — ofício que faz desde a adolescência. Na ficção, por mais que as temáticas dos inúmeros livros publicados, sejam as frustrações e as incoerências deste tempo coroado for falsas imagens de leituras fáceis, Cagiano sempre acreditou que a “literatura é sobrevivência; pulmão e evangelho; exorcismo e apaziguamento; catarse e reflexão”.

Impaciente, aprendeu a reinventar as coisas. A dizer não. Navega por uma trilha esclarecedora — com fluxos da memória, diálogos e consciência dos acontecimentos — que realmente faz sentido neste mar de mundo que são as contradições humanas.

Dicionário de pequenas solidões
Ronaldo Cagiano
Língua Geral
136 págs.
José Aloise Bahia

Nasceu em Bambuí (MG), em 1961. Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta, colecionador e crítico de artes plásticas e literatura. Autor de Pavios curtos (2004). Participa, dentre outras, das antologias O achamento de Portugal (2005), H2HORAS (2010), Poemas que latem ao coração! (2009).

Rascunho