Livro do avesso

Mesmo irregular, coletânea de contos "O brilho do sangue", de Diter Stein, apresenta um autor com originalidade, imaginação e texto de muita qualidade
Diter Stein, autor de “O brilho do sangue”
01/06/2007

Um homem e uma mulher se casam porque não sabem o que fazer com si mesmos. Esta frase de Anton Tchekhov poderia ser um bom argumento para a composição do protagonista de O grande crash, o principal conto de O brilho do sangue, de Diter Stein. Este conto é o mais importante do livro não apenas pelo tamanho (58 páginas), mas também porque é nele que Stein se destaca, ao relatar com frieza, ironia e pragmatismo a vida conturbada de um casal.

Já no início, o marido dá sinais de que não sabe o que fazer com si mesmo ao anunciar para a esposa que vai virar padre. A decisão não tem cunho religioso, mas apenas o fato de que o rapaz considera a vida de padre o modelo que quer depois de um casamento frustrado. Não teria mais compromissos, seria sustentado pela igreja e não teria que sustentar ninguém. (“Invejava nos padres o fato de pertencerem ao nada e ao mesmo tempo a toda a humanidade. E sobre eles apenas Deus. Deus e nada mais .”)

Ironicamente, a esposa começa a pensar em qual será sua função a partir do momento que o marido se tornar padre. Ela leva alguns minutos de reflexão até se dar conta de que o marido estava querendo dizer que o casamento tinha chegado ao fim.

No outro dia, o rapaz pega suas coisas e vai para um hotel, antes de iniciar a busca por seu novo objetivo de vida. Leva pouco tempo até que ele descubra que não pode virar padre, pois na igreja católica há um rito de formação que não está mais a seu alcance. E só a igreja católica lhe serve, pois ele quer ser padre justamente porque padres não podem casar.

A frustração faz com que o protagonista decida criar sua própria bíblia, um livro de hábitos e procedimentos para ele passar a seguir. Assuntos como comida, amigos, trabalho e mulheres são incluídos no Manual do Uso, com uma rotina semanal definida para cada dia da semana.

A agenda funciona bem até chegar a sexta-feira, noite dedicada às mulheres. A meta era muito clara: flertar, ir a um motel, transar e depois nunca mais ver a garota, para não perder o controle de sua desejada solidão.

Acontece que, para atender de forma fiel e regular o que determina o manual, o rapaz opta por uma prostituta escolhida em anúncio de jornal. A partir de então o conto versa o iminente relacionamento do protagonista e sua prostituta, pois ele não consegue mudar de garota nas semanas seguintes. Sem querer, o rapaz volta a viver uma rotina próxima à do casamento do qual havia se libertado após anos de indecisão e submissão.

O grande crash é o grande conto de O brilho do sangue e serve como cartão de apresentação de Diter Stein. Cartão bastante necessário, pois a foto e o currículo do autor que estão na orelha do livro não são muito animadores. Stein tem nome alemão porque é filho de alemães. Nasceu em Petrópolis (RJ) e mora em Lavras (MG). É apresentado como egresso da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e como promissor designer gráfico. Na foto, no entanto, tem mesmo é cara de engenheiro alemão.

E o começo do livro não anima muito, pois há alguns contos muito insossos, como O gráfico; O arabesco; Bem-me-quer…Mal-me-quer; e O método, nos quais o autor desperdiça algumas páginas em conflitos pouco entusiasmantes. Mas os persistentes que lerem O brilho do sangue até o fim verão que estes contos fracos prejudicam o conjunto do livro, mas camuflam um autor com originalidade, imaginação e texto de muita qualidade.

Além de O grande crash, Stein se sobressai em A auditoria, narrativa curta escrita em 1992 e que conta com um prêmio de uma revista do México. Neste conto, o autor transforma um assunto extremamente burocrático — a auditoria em uma empresa recém-falida — numa história intrigante e de muita fantasia.

Um auditor percebe que, antes de falir, a empresa teve períodos de muito lucro e administração ousada e eficiente. Pesquisando o desempenho do último presidente, herdeiro do dono da empresa, o auditor nota que todos os antigos funcionários foram substituídos por gente com formação em artes plásticas ou filosofia. Os gráficos financeiros da companhia remetem ao conteúdo de obras de arte do acervo do proprietário e acabam por revelar ao auditor a estratégia administrativa, que no fundo é o que dá vida ao conto.

No conto O brilho do sangue, uma mulher fica fascinada e apaixonada ao perceber um salpico de sangue que à luz do sol brilha como uma estrela do céu. O brilho do sangue a excita porque está na glande de um tigre. (“Era assustador para a mulher viver lado a lado com a morte. Ela tinha muito medo que ele a matasse, que a destruísse.”)

Em A jovem reclinada, Stein constrói o conto por meio de personagens femininas nuas de quadros de pintores famosos. Na história O médio, o autor caracteriza um homem que tem a auto-estima tão baixa que foge de todas as mulheres das quais se apaixona. Acontece que ele se apaixona por todas, mas prefere fugir por medo da rejeição. Ox, o médio, decide fazer com que um colega de trabalho viva as paixões em seu lugar. O plano dá certo até o dia em que Ox acaba ficando com ciúmes de seu alter ego real. No conto O domador, volta o animal, desta vez um leão, que toda noite participa de um espetáculo com seu domador. Um dia, o público vaia o show e o domador se vinga virando o leão, literalmente, do avesso.

Virando O brilho do sangue do avesso, dá para se dizer que Diter Stein fez um bom livro.

O brilho do sangue
Diter Stein
Record
141 págs.
Diter Stein
Nasceu em Petrópolis, filho de pais alemães. Cursou a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. É designer gráfico, autor também da edição de arte da capa do livro O brilho do sangue. O conto A auditoria foi premiado em 1992 no concurso da revista de literatura Plural, do México.
Paulo Krauss

É jornalista.

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